quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Crítica: "DOIS DIAS, UMA NOITE" (2014) - ★★★★★


Os irmãos Dardenne são famosos por seus filmes cujas observações se demonstram lentas e orgânicas. Em Dois Dias, Uma Noite, não foi diferente, porém, os dois diretores belgas, diferentemente de seus outros filmes, concluíram desta vez um longa virtuoso focado na crise econômica que afetou a Europa inteira através de uma história individual, lançando Dois Dias, Uma Noite em maio desse ano no Festival de Cannes. Em 2011, ao assistir a O Garoto da Bicicleta, realmente me surpreendi com os Irmãos Dardenne, apesar de ter assistido a outros grandes filmes, como O Filho e A Criança, e por ter reconhecido o talento dos dois diretores que há tanto tempo não se via. O que realmente me levou a assistir a este filme foi, confesso, a performance de Marion Cottilard. A francesa veio me surpreendendo nos últimos tempos, e sua parceria com os aclamados Irmãos Dardenne funcionou, como eu tanto expectava. 

No longa, Marion Cottilard interpreta Sandra, uma mulher curada da depressão, que acaba por descobrir que seus colegas decidiram aceitar um bônus no lugar de sua vaga na fábrica. Encorajada por seu marido, Sandra decide procurar todos os colegas que votaram contra sua vaga e tentar mudar a escolha deles. E assim, nossa protagonista usual inicia sua jornada. Uma mulher abalada, iludida, triste, melancólica e calma. Alguns dos objetivos que caracterizam Sandra, que tinha tudo para ser clichê. Mas Marion Cottilard provou que é uma das únicas atrizes que conseguem reverter a história num simples piscar de olhos. Em relação à performance de Marion Cottilard, descrever simplesmente com palavras seria uma tarefa incondicionalmente impossível. Enquanto maneja com habilidade e sutileza, ao mesmo tempo, se nota um anseio por respostas na face de nossa protagonista. 

O filme, inevitavelmente, é sustentado por uma moral: Para se conseguir algo nesse mundo, é preciso batalhar. Usar suas melhores armas, desfrutar dos truques, inventar armadilhas, a sobrevivência não é fácil de se conquistar, mas é preciso batalhar por algo. O mundo é feito disso. Feito de batalhas, desafios que nos fazem refletir, e alcançar nossos objetivos é o maior triunfo. Ás vezes, é preciso derrotar e ser derrotado. É preciso aceitar o destino, e aceitar a sorte como defesa. O mundo é um lugar predatório. É necessário lutar por algo. Sempre. Entendo que essa moral pode até forçar um pouco, como já citei antes, mas ela é algo que sustenta Sandra a todo o tempo, e não falar dessa singular característica ao comentar o filme seria bem incomunicativo. É a grande luta do ser por reconhecimento, tempo e vida. Senão, nós seremos o nada. A trilha operária é governada por uma insistente exigência e dedicação. Tudo conta dentro dela.

Outra coisa interessante em Dois Dias, Uma Noite é a interessante proposta que os Dardenne nos introduz. Enquanto estamos ao lado de Sandra quase todo o tempo de filme, apoiando-a sem cessar na sua missão de conseguir, num fim de semana, retomar seu emprego depois da ausência e evitar que os colegas recebam o bônus, também ficamos divididos quando entramos em contato com as situações atravessadas pelos amigos da Sandra, alguns deles num estado pior que o dela. Aí é que nos damos conta dessa duplicidade que a história encarna, voluntariamente para a nossa compreensão de que poderíamos estar tanto no lugar da Sandra quanto no lugar no receptor do bônus, e defenderíamos de forma igualitária ambas as situações. É meio emblemático. Por exemplo, o cara do futebol, que chega desesperado para a Sandra quando é recebido por ela no campo, entrega sem pestanejar o voto para ela. Ao contrário do cara fechado, que agrede ela, que talvez não queria dar o bônus por simplesmente não querer mesmo. Mas tem gente que também não abre mão da oportunidade por conta da família, ou de outro grupo em que está envolvido, mas não apenas por vontade pessoal, como a Juliette, que, depois de falar para Sandra, insistente, que iria dar o voto para ela na segunda, é recebida com gritos pelo namorado, dentro de casa, reclamando da escolha. Não é possível negar identificação em cada uma das situações. Afinal, é a reação de cada um. Poderia ser a minha, a sua, a dele, a nossa reação à essa proposta. É uma qualidade que faz de Dois Dias, Uma Noite, um trabalho interessante e devidamente rico: a flexibilidade. É um abraço e um tapa na cara ao mesmo tempo.

Para deixar esse retrato ainda mais realista e vivo, os diretores vetam a existência de qualquer alternativa comunal, que serviria de base para uma reviravolta quente e pretensiosa, fervilhada por segundas intenções. É uma escolha bastante inteligente deles. Você pode ver que Sandra, em nenhum momento, incita sexo, chantagem ou qualquer outro método para obter fácil, e forçadamente, o apoio do pessoal. Ela chega e sai humilde. Se ela conseguiu, parabéns. E se não, coitada. Eu também acho que não seria muito favorável colocar a pobrezinha vulnerável à esses atalhos carregando tantos problemas nas costas, como a depressão e o nervosismo de ter apenas dois dias à frente para retomar seu lugar. Acredito que o filme nem faria tanto sentido caso tal inclusão fosse concordada. Quero dizer, para o objetivo de Jean-Pierre e Luc, aqui fazer deste filme algo monumental, nu e cru, isso certamente não teria cabimento. Afinal, na vida real, a que nós enfrentamos, não é muito usual ver gente se prostituindo, chantageando a outra ou se vendendo para acertar seu alvo. Ninguém, caso fosse personagem de novela, faria isso ainda mais nessa situação, tratando-se de colegas de trabalho, praticamente no mesmo barco que você. Trata-se da maneira mais eficiente possível de mantar o clima, a imprevisibilidade dos eventos.

Mais uma vez, os Irmãos Dardenne filmam um drama humano impecável e altruísta. Um filme que busca aprofundar a análise do comportamento humano, com um toque marcante e uma influência digna de Bergman (em alguns aspectos, mas não geralmente). Diante de tal situação, Sandra se desola e ignora até o próprio marido, sinais do ressurgimento da depressão, que vai lutando contra ela mesma, e ela vê que não consegue reagir de maneira completamente racional diante de tais ataques, e isso gera uma enorme confusão em sua cabeça. Nunca vi o desespero de uma forma tão caracterizada em um filme dos Irmãos Dardenne (senão em O Silêncio de Lorna ou A Criança, uma vez que conferi poucos títulos da filmografia dos diretores) num filme cuja principal intenção é intensificar nossa torcida pela vitória incerta de Sandra. Aqui, o roteiro se centraliza em pequenos detalhes propagados pela trama. Este é outro filme que necessita de cuidados especiais por narrar algo tão especificamente delicado. Necessita ser visto por quem entenda de verdade todo o processo atrás dele, ou caso contrário, seu resultado não será identificado. Alguns o acharão chato pela falta de conteúdo e pela lentidão. Quem não está acostumado com as obras dos Irmãos Dardenne, nem se aproxime de Dois Dias, Uma Noite. Um dos filmes mais memoráveis do ano, protagonizado por uma dama do cinema francês, dirigido por dois mestres do cinema contemporâneo e da sétima arte. Me arrisco: este é um dos melhores filmes do ano, e um dos retratos mais originais já feitos por esses gênios, cujo estilo documental ganhou totalmente minha aprovação, e em pouquíssimo tempo.

Dois Dias, Uma Noite (Deux Jours, Une Nuit)
dir. Jean-Pierre Dardenne & Luc Dardenne - 

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