domingo, 24 de janeiro de 2016

Crítica: "O REGRESSO" (2015) - ★★★★★


Alguns filmes são desprezados e minorizados por bobeira. Esse é o caso de O Regresso. Sem querer tirar a razão de quem achou de O Regresso um trabalho menor (até porque o filme tem sim certas imperfeições, pra ser honesto). E da mesma forma vejo a relação do público e da crítica com o cineasta mexicano Alejandro González Iñárritu. Um dos maiores diretores em atividade dos últimos tempos, Iñárritu tem mais haters do que seguidores. Isso é fato. E uma pena também, tratando-se de um diretor talentoso, com filmes bons (e raros; no bom sentido) no currículo, uma ideologia miraculosa e bem-vinda. Só é mal-compreendido e subestimado. 

Na melhor das hipóteses, o diretor, mesmo já tendo trago ao mundo tantos títulos apetitosos e primorosos, tais como o maravilhoso Birdman (yeah, bitches, eu gostei sim de BatBirdman, viu?), o profundo 21 Gramas, os da terra natal, Amores Brutos e Biutiful, e também o do Planeta Terra inteiro, o razoável porém potente Babel, ainda tem mais a nos mostrar. Ele ainda está engatinhando. O Regresso não é seu melhor filme, mas não deve e sequer pode passar despercebido na sua filmografia. É poderoso e bonito pra cacete e, vencedor ou não do Oscar, resplandece como definitivo merecedor da estatueta, ainda que não seja o melhor filme dentre os candidatos desse ano.

Depois de um ano de muitos sucessos, Iñárritu nos presenteia novamente com um filmaço estremecedor, fortemente delicado e intenso ao mesmo tempo. O Regresso não supera Birdman, mas acho que não era pra superar mesmo, sabe? A gente costuma achar à toa que todo filme novo de um diretor tem como objetivo ser melhor do que o anterior. E, em partes, isso é verdade. Afinal, é com os erros que se aprende. E a carreira do Iñárritu é principalmente caracterizada por essa ordem evolucional. Ainda que este seja o provavelmente filme mais ambicioso dele, lá no fundo O Regresso é regado a modéstia. O longa se sustenta numa premissa despretensiosa, e com ela consegue reverter audácia em naturalidade. Iñárritu passa a impressão de que modelou O Regresso na singeleza de uma obra de arte, uma pintura, de veia complexa e multifacetada.

Em O Regresso (que titulozinho mais horrendo, hein? Traduzido do original, ficaria mais ou menos O Ressuscitado ou O Renascido), Hugh Glass (o homem existiu de verdade, foi um explorador de descendência irlandesa que realizava expedições em territórios indígenas) deseja fazer fortuna caçando e conquistando territórios no indócil oeste americano, até que é gravemente ferido por um urso numa floresta e fica à beira da morte, com seus companheiros de caça cogitando sacrificá-lo para evitar o sofrimento (a tão comentada cena do ataque do urso é excepcionalmente eletrizante). 

Após uma decisão, o capitão da trupe desiste da missão e recruta três membros de sua equipe para tomar conta do moribundo Glass até a sua partida. Entre esses três homens, está o filho de Glass, de origem nativa, um outro membro da turma de exploradores (Jim Bridger) e o carrasco vilão John Fitzgerald, que trabalha na expedição e vive reclamando e confrontando Hugh. 

Por conta do diretor de fotografia Emmanuel Lubezki, O Regresso é um filme que lembra distintamente de diversos filmes oriundos do diretor Terrence Malick, entre eles Além da Linha Vermelha, O Novo Mundo e A Árvore da Vida. Indiretamente, O Regresso adquire esse ar Malick que perdura até o final. Entre semelhanças e diferenças, O Regresso se assemelha bastante a O Novo Mundo, muito até pela temática quase que gêmeas dos dois, o Lubezki, e por aí vai. O filme fica até mais confortável de se ver com essa referência muito justa à Malick.

Leonardo DiCaprio declarou recentemente que O Regresso foi o filme mais difícil que ele já fez na sua vida. Quem dera ele dissesse que foi o mais fácil! A performance do DiCaprio é realmente uma joia rara. Um dos prazeres mais colossais de O Regresso fica por conta da sua atuação estrondosa, capaz de silenciar a voz de até mesmo outras performances da carreira do intérprete. Quem vê pensa que é exagero, mas essa é realmente a melhor performance do Leonardo. Diga-se de passagem (pelo menos), já que ainda estou digerindo o efeito avassalador da obra, assim como o do desempenho do Leo, e isso meio que ofusca a minha memória quanto às demais grandes performances que ele já nos brindou.

Se em Birdman tínhamos como protagonista um ator iludido e perdido em seus devaneios sem rumo e sem enxergar uma razão para continuar a viver em meio ao fracasso, e que justamente mantinha nesse contexto angústia, depressão e tortura, o Hugh Glass de O Regresso, no que diz respeito à esse contexto, supera bastante o Riggan Thomson de Birdman. E eu não tô brincando não, cara. Até parece que o Alejandro convidou o Lars Von Trier pra co-dirigir o filme. O sofrimento do explorador no filme é sem tamanho. Ele fica praticamente confinado a um coma depois de um perverso ataque por uma fera, depois disso volta a se acidentar e assustar o espectador novamente numa sequência de perseguição adrenalística, sem contar no final e, enfim. Sofrimento é o nome de Hugh Glass. Mas o cara permanece fiel ao seu lema (Enquanto você continuar respirando, você continua lutando) desde o primeiro momento de vida de O Regresso até a mortífera sequência de combate que encerra o longa, a melhor cena de todas do filme, particularmente. 

Salvo pelas cenas de ação bem filmadas e pelos cenários, O Regresso foi relacionado ao gênero faroeste, o que ele em partes surpreendentemente é. Muito embora seja adepto deste, O Regresso é mais um drama do que um faroeste em si. E, tratando-se de um western, isso pode desapontar muita gente, ainda que o filme seja um exemplar dilacerante do gênero. Um olhar renovado, digamos. O diretor enquadra O Regresso no seu padrão estético visual e o resultado é admirável. Essa atenção especial com o visual se conecta perfeitamente à autenticidade western que o filme assina. Tudo a partir daí só passa a conspirar mais para o sublime. 

O Regresso mexe muito com os nossos sentimentos. Isso meio que faz parte da natureza do filme, então não é bizarro se emocionar diante dos belos momentos que a câmera capta, sendo estes os surreais landscapes que enchem os olhos ou até mesmo um rápido fragmento (exemplo disso é a cena em que um pombo branco sai de dentro de uma perfuração no peito de uma mulher indígena morta, perfuração provocada por um tiro). A narrativa de O Regresso estuda e reflete sobre o luto, as faces da coragem, o instinto de sobrevivência, a adrenalina, espíritos que rondam a perplexa jornada de Glass. Todos esses elementos somados sintetizam numa química brilhante e abismadora.

Mais uma vez, Lubezki capricha no visual, e vem nos encantar com esse vendaval de emoções que é a fotografia de O Regresso, a cada passo, a cada movimento uma paisagem do paraíso no inferno, um céu lilás cobrindo uma superfície branca de neve. É impossível não amar. Visualmente falando, O Regresso é um estrondo, uma experiência exótica e fabulosa, rara vez em que se vê na beleza de um cenário, de um reflexo, a perfeição aos olhos. É uma magia tão poética e tocante que não consegue ser descrita em palavras. Só vendo é que se percebe. Mítico.

Algumas sequências chegam a ser tão inacreditáveis (como a já icônica cena do ataque do urso), falando em tecnicismo, que a gente, tentando encontrar uma resposta na mente, se perde. É tão inexplicavelmente certinho, no bom sentido. Não há erros, nada parece falso em O Regresso. E não é pecado imaginar, diante da já mencionada cena do urso, que realmente colocaram a fera em cena para lutar com o DiCaprio. Vai saber, não? O Regresso carrega nitidamente uma inspiração revolucionária, lotada de detalhismos. Tão natural e realista, inimaginavelmente criativo, que não há como se sentir, mesmo aqueles que não gostaram do filme, presenteado, privilegiado. O Regresso contribui imensamente à arte que serve, em diversos formatos, sob muitos ângulos. Iñárritu conclui mais um trabalho firme e sadio, primoroso e sem igual, selvagem ao máximo, ricamente emocionante. O espetáculo da vida em forma de aventura. Plausível. O Regresso é demais. Não ousem perder por nada.

O Regresso (The Revenant)
dir. Alejandro González Iñárritu - 

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