sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Crítica: "BEASTS OF NO NATION" (2015) - ★★★★


Ninguém acreditou quando a rede Netflix anunciou que estava produzindo seu primeiro filme de ficção. E não é pra menos. A empresa que iniciou como locadora de DVDs por correio e que hoje é dona de uma grade produtora aplaudida e bem financiada, que inclui séries e alguns filmes (todos espalhados em documentários e curtas-metragens) ganhou, em pouco menos de vinte anos, uma expansão assustadora e um poder extraordinário. E é merecido, já que a Netflix possui o melhor serviço de streaming, um catálogo admiravelmente variado e bem selecionado, e um grande número de assinantes, que cada vez mais cresce. É, minha gente. O que era tão temido virou realidade. A Netflix agora entra para o negócio cinematográfico com o lançamento de Beasts of No Nation, e já busca o Oscar para o filme, tendo o mesmo sido exibido mês passado dentro da competição do Festival de Veneza, além de também ter sido escolhido para o Festival de Toronto. E, felizmente, o filme é uma obra-prima. 

Cary Joji Fukunaga, quem eu conheci com Jane Eyre e mais recentemente recebeu a gloriosa missão de dirigir a série da HBO True Detective, é quem assume a direção, o roteiro, a produção e a fotografia (excepcional) de Beasts of No Nation, e firma diante de nós o seu impecável talento, não totalmente visível em Jane Eyre, que levou o diretor à fama e às duas produções seguintes que viriam a consagrá-lo como um cineasta maturo, flexível e bem-disposto. Dando adeus ao clássico cenário inglês do século 19 que serviu de fundo à história de Eyre, e também aos delirantes suspenses de True Detective, Cary ousa e surpreende num profundo e pesado drama ambientado num país africano dividido por uma violenta guerra, e a trajetória de um garoto que, reagindo à perda da família, entra num submundo rebelde que aniquila a sua infância e, consequentemente, sua percepção do mundo quando introduzindo àquela atmosfera preenchida por horror, sangue, abusos e perdição.

Agu, o menino-soldado, ainda parece estar dividido entre seu lado criança e seu lado adulto, rejeitando os impulsos do passado, e sendo forjado a integrar um colossal inferno. Apenas uma criança, entregue a um irreversível terror, uma experiência tão impactante e inesquecível quanto assistir a esse filme, de modo com a qual as marcas dessa guerra fiquem para sempre no seu consciente, piorando quando se afasta do episódio. Enquanto ele se vê exaurido de tanta dor, encontrando na vingança sua única saída, sabe que a vida que leva ali, ao lado de amargurados homens cobiçando o mesmo sucesso, não é a vida real, a vida que gostaria de estar levando ao lado da família, dos irmãos, da mãe e do pai. Sabe que é um mal caminho, e mesmo assim é sua única saída. Não há como fugir dele. Agu, em seu espírito determinado e corajoso, também é liderado pela confusão, de estar ali não por querer, e de não estar aonde carecia. Não é a vida? Não é o ser humano confrontando seus demônios e se perdendo no irreversível gole do mais azedo absinto? A morte, a miséria, a solidão, a falta de escolhas. Tudo é tão premeditado. 

O pior é que tudo isso é uma triste realidade. Não só essa pequena fantasia metafórica que se instala sobre o personagem de Agu, mas também a dura frieza que essa realidade o impõe. Isso se conecta a um grande mérito de Beasts of No Nation: a repreensão da educação moral dentro da trama, o que já descontaria muitos pontos para o filme. 

Acredito que esse era o meu maior medo quanto a Beasts of No Nation, porque eu não queria ver, de novo, a culpa da desgraça que habita na África recaindo para o resto da Terra. E não que eu esteja insinuando minimizar a parcial sinceridade presente em tal argumento. Só que é preciso também explorar alguns aspectos dentro da África que a levaram a essa turbulenta série de conflitos, levando em consideração os problemas enfrentados com a má distribuição do território africano e a unificação de distintos grupos num mesmo espaço, episódio da história que bem declara esse problema que até hoje contribui para essa desavença social. Esse é o máximo do filme.

Se bem que eu não sei se teria estômago suficiente para rever esse filme tão cedo. Tudo o que vocês ouviram sobre polêmico a partir de Beasts of No Nation deve ser levado em consideração, até porque até onde eu sei a tradução de polêmico é verdade, e isso não falta nem um pouquinho aqui. Vai ter um bando de veio-aqui-fazer-o-que-então? reclamando do filme, disso e daquilo, cena de violência, cena de estupro, tal, tal, tal... Mas, gente. Tá na hora de parar de querer rotular tudo com polêmica e escutar mais a voz da verdade. Afinal, tudo isso é fato. E Agu não é a primeira, a única e nem a última criança a estar envolvida com a guerra, com as armas, com a violência. Isso, infelizmente, existe, e sempre existiu. Então, ficar com frescura e nhê-nhê-nhê é, minimamente, uma piranha falta de vergonha na cara, poxa! Isso é cinema. Se não gosta, então não volta a perturbar com suas infames hipocrisias. 

O que faz de Beasts of No Nation esse filmaço é seu impacto, sua força, seu indomável realismo, que nos presenteou com segmentos triunfais e violentíssimos, como a cena do esfaqueamento, uma das primeiras, e também a do estupro, ou até mesmo aquela do bordel. Mas, não é só na violência física que o longa nos afeta. É também nos choques psicológicos, como o discurso do destemido guerrilheiro (o desempenho brilhante e articuladamente bem-feito de Idris Elba, que consegue ser duplamente simpático e cruel num personagem nem tão fácil assim de se fazer) sobre a revolta, e também na cena anterior à final, particularmente emocionante em todos os sentidos (quem conferir o filme, já disponível na Netflix, saberá do que estou falando). 

Afinal, não é muito difícil se emocionar num filme cujo fervilhante teor dramático dá impulso a uma sensação histérica de revolta, fúria e trauma, que atinge com energia o público. Cary, que já tinha mostrado sua competência com a violência na série True Detective, aqui se esforça para dar vida a um dos retratos mais violentos vistos ultimamente, e também desconcertantes. Beasts of No Nation é um grande filme. Grande pra valer. Mais que uma experiência necessária. Uma meditação sobre a reação do homem quando exposto à guerra e ao sofrimento. Melhor: uma overdose fatal de realidade. 

Beasts of No Nation
dir. Cary Joji Fukunaga - 

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