segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Crítica: "DESCONSTRUINDO HARRY" (1997) - ★★★★★


Além de ser um dos filmes mais geniais e engraçados de Woody Allen, Desconstruindo Harry é uma obra maior do cineasta, um trabalho preciosíssimo e valioso. Seguindo à reta do personagem neurótico de sempre que vive numa cômica e profunda onda de azar e insatisfação, Woody monta uma fabulosa história que auto-imortaliza como uma das mais bem feitas dele. Não à toa é fácil rir em certos momentos do filme. Notavelmente Desconstruindo Harry provém do clássico humor Alleiano, mas a perspectiva do humor negro que é reinventada por Woody aqui além das proporções divertidíssimas que a louca jornada de Harry ganha rendem ao público um bom momento enfeitado por risadas. Um monumento cômico como nenhum outro jamais feito por esse invencível gênio, Desconstruindo Harry merece ser visto, com toda a certeza.

Muita gente acusa descaradamente o trabalho de Woody como autobiográfico, que se utiliza da metalinguagem. Bem, levando em conta que o diretor é um profano admirador da obra de Fellini que baseou-se na metalinguagem para a elaboração de alguns filmes, como o enigmático e admiravelmente belo Oito e Meio, quem sabe tal inspiração do italiano tenha produzido efeito em Allen e feito com que a sua filmografia fosse preenchida por grandes filmes com uma aparência tão realista? Ou será que Woody é mesmo tão talentoso e mágico a ponto de fazer o espectador imaginar que o personagem interpretado por ele realmente é a sua pessoa traduzida para o filme, ou então a grande maioria de seus personagens? Neste quesito, o longa pode despertar algumas dúvidas. E nos faz repensá-las. Harry Block é um escritor que se baseia em episódios de sua própria vida para montar seus livros, e isso causa a maior frustração nas pessoas que convivem com ele, ameaçadas pelos detalhes extremamente autobiográficos de seus livros. 

Não minto: há determinados filmes de Woody que carregam consigo material metalinguístico. Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, Memórias (inspirado no já citado Oito e Meio de Fellini), A Era do Rádio, Maridos e Esposas e outros que possuem dados autobiográficos escondidos. Talvez a proposta de Woody seja deixar tais elementos à mercê para a decisão do público. Pode parecer esquisito, mas somos nós quem fazemos o filme. Se há identificação, o filme funciona como um espelho. Se há surpresa, é algo nunca visto para nós, e em ambos os casos há a aprovação. Se ficamos surpresos, identificados, assustados, mesmerizados, indiferentes ou confusos depois de uma sessão do Woody, é o que o filme nos passou. 

A filmografia de Woody é muito livre, e isso a torna efetivamente móvel, e isso é um dos principais ingredientes para o estrondoso sucesso dele: por mais que pareça, seus roteiros não ficam presos à uma única tese. A cada filme, ele vai renovando a sua visão em busca de mais resoluções para a sua dúvida existencialista, que mais parece uma indecifrável incógnita. A missão de seus filmes é descobrir o x. Seus filmes são como problemas matemáticos: de longa, parecem a mesma coisa, nada de novo e tal, sempre com a mesma aparência, mas vistos mais de perto, interpretados, ganham um novo sentido. E esse é Woody. Nenhum filme é igual ao outro. Parece, mas no fim não é. Sejam esses filmes do mesmo gênero, ou de histórias semelhantes. Se seus trabalhos soam demais influentes da mesmice, é o resultado da nossa visão diante deles. A mobilidade filmográfica de Woody ora funciona para alguns e ora não funciona para outros.

Desconstruindo Harry, por abordar mais pronta e diretamente, pode meio que intimidar o espectador. É um filme inusual de Woody. Afinal, não é todo dia que uma avalanche de palavrões e sexo invade a tela de um filme do cineasta (é um dos únicos filmes do Woody a ter cena de nudez). Isso aqui não significa necessariamente evolução/maturidade. Creio que é mais uma transição. Mais aí é que está a dúvida: será que este filme é autobiográfico, e que todos os filmes anteriores de Woody praticamente são revelações da sua vida? É meio irônico, mas faz sentido. Ou será que esse filme é apenas uma metáfora precedente dos filmes anteriores de Woody, como se Harry fosse um personagem à parte dono de todas as aventuras criadas por Woody. Ou será que Block simboliza a imaginação do diretor? 

Em meio à tantas dúvidas, o filme ganha crédito. Afinal, é para isso que a arte é feita: para causar indagações, novos conhecimentos e distintas abordagens. Numa versão mais literal do prazo, Desconstruindo Harry pode sim ser visto como um novo passo da filmografia de Woody Allen. Um passo mais firme, embora renovadamente cômico e abusador da ironia. Seja em qualquer hipótese, apenas digo que é uma obra simplesmente brilhante. Eu digo: bravo! O elenco, que inclui o próprio Woody numa das últimas e melhores performances cinematográficas dele, conta com o auxílio de um pessoal de valor: Richard Benjamin, Billy Crystal, Paul Giamatti, Stanley Tucci, Judy Davis, Kirstie Alley, Demi Moore, Elizabeth Shue, Robin Williams (especial destaque às grandiosíssimas Judy Davis e Kirstie Alley, donas das melhores interpretações femininas do filme). A fotografia excelente de Carlo Di Palma brilha em cenas mais intensas, de um elevado cunho dramático e até em algumas mais descontraídas, como aquela lá da qual Harry visita o inferno (talvez a cena mais cômica do filme). Palmas à Woody. Palmas à todo esse louco mundo de Harry. Palmas à, enfim, Desconstruindo Harry!

Desconstruindo Harry (Deconstructing Harry)
dir. Woody Allen - 

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