sábado, 29 de maio de 2021

Mangrove / Lovers Rock


MANGROVE é necessário. Pela indignação, mas sobretudo por seu retrato poderoso do descontentamento contra a parcialidade, e o semeio da luta pela afirmação, defesa da identidade, do ser, através da afirmação do espaço. Identidade, aliás, que as autoridades investem em reprimir. É um exemplar ativista, nada contido, da movimentação por justiça, pulsando raiva, mas também entendendo o que move seus personagens, dando um tratamento muito honesto a eles num filme cercado por pretensões bem definidas. McQueen encontra espaço tanto para um quanto para outro. Um filme feito para esses tempos, com uma urgência que transmite bem essa indignação, mas não se impregna dela. Ele quer encontrar lugar pra respirar, e o filme nunca deixa de passar essa mensagem, de reafirmar o que a luta é sobre. 

Já LOVERS ROCK se inclina para o romance, a música, a nostalgia, os detalhes de uma noite de festa, um "baile", regado a reggae, movimento e muito amor. Se MANGROVE pulsa a energia da revolta, LOVERS ROCK pulsa muitas energias diferentes, afetuosas, rítmicas, corporais, espaciais. O filme é movido por isso, lembrando que ele gira em torno de um único dia, mais especificamente a noite desse dia, e extrai dele toda uma gama de emoções bastante ricas e particulares. É um conto de amor, conto de expurgação, conto de convergência, conto do corpo e da mente também, da dança, da musicalidade. Sempre exalando essa intensidade que é toda dele, meio que convida o espectador a se tornar íntimo dela. Provavelmente seja a melhor coisa que o Steve McQueen já fez, porque como cinema é muito verdadeiro em sua fluência, na força desprendida das sequências. Nos dois filmes, os atores dominam a cena. Ambos fazem parte da antologia SMALL AXE.

Small Axe (ep. 1 & 2)
Steve McQueen
Reino Unido, 2020

sexta-feira, 28 de maio de 2021

Antiga Alegria


Antes de fazer o belo WENDY E LUCY, Reichardt foi explorar a retirada de dois amigos para a natureza, um programa pra sair um pouco da rotina da cidade e das obrigações adultas. O contato com a natureza traz à tona a intimidade dos dois amigos, que começam a pesar o andamento de suas vidas, um está prestes a se tornar pai, o outro vai se mostrando, de algum modo, aturdido pela paternidade do amigo, mas de um jeito muito compassivo e discreto. Reichardt vai permitindo que as paisagens que servem de cenário, o diálogo entre os dois atores e a trilha, de uma ternura agridoce, preencham ANTIGA ALEGRIA com vida. Observa-se os desdobramentos do encontro, cheio de significado, e do quanto ele tem a dizer sobre a amizade daqueles dois homens. A cidade, a natureza, o isolamento, a coexistência urbana, as palavras, o filho, a parceria. Os pequenos contrastes contrastam com a particularidade da amizade, que é o grande tema do filme. O resultado é um filme que acerta em cada movimento, uma das primeiras provas das habilidades de sua diretora em tratar da vida, do comum, como fonte do cinematográfico.

Old Joy
Kelly Reichardt
EUA, 2006

No Tempo das Diligências


Um filme que, por instinto, é fundador. A viagem de diligência dos personagens, incumbidos a atravessar uma turbulência no meio da viagem, com o ataque dos apaches, mas também as próprias turbulências da interação entre eles, é costurada com muita vivacidade pelo John Ford. Cada cena se supera, nada está fora do lugar. NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS parece que descobre a grandeza do cinema dentro de suas próprias maquinações. Ele usufrui de técnicas riquíssimas, respeita a importância da narrativa, é fascinante, encantador mesmo, toda a coleção de lindas cenas, e a maneira como se filma, com uma grandiosidade natural, está ali nos lembrando as possibilidades do western. Gosto de como ele se torna uma pequena parábola das convulsões que ele testemunha e como sua premissa é, no fundo, bastante simples, mas muitíssimo bem trabalhada. Gostaria de ter mais palavras, talvez até venha a ter, mas é isso, é de uma beleza...

Stagecoach
John Ford
EUA, 1939

A Regra do Jogo


Lançado às vesperas da 2ª Guerra Mundial, eis um filme que quis dialogar com o seu tempo mostrando as contradições de uma sociedade e de relações marcadas por regras sociais e pela fragilidade do status. Ao mesmo tempo, ele consegue ser honesto ao falar sobre as emoções de seus personagens, íntimo até. É tido como um dos grandes clássicos do cinema, e de seu diretor, Renoir, essa crônica contundente de um capítulo marcante, trágico da História e a convergência de diferentes relações interpessoais e amorosas em uma reunião burguesa marcada por desavenças, confissões, conciliações, revoltas sentimentais e intrigas. O filme é dotado de uma delicadeza que aproxima o espectador dos retratados, sendo ora cômico, romântico, violento e amargo. Deixa a gente com um sentimento estranho, mas ao mesmo tempo um sentimento de proximidade, de certa forma. Também o engrandece mais ainda seus atores, com interpretações gigantes vindo de todos os lados. Trata-se de um exemplar importantíssimo de cinema em uma época que o mundo beirava transformações sociais e políticas estremecedoras, e isso começava a se refletir até nas mais "simples" das relações pessoais, cuja aparente normalidade foi chacoalhada, sacudida. 

La Règle du Jeu
Jean Renoir
França, 1939

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Escondida


O canto que tentaram sufocar. Jafar Panahi volta ao ideário do seu filme anterior [3 FACES] para compor uma alegoria similar, um reforço ao que ele tinha trabalhado nele: é um clamor por resistir diante das barreiras. Ele acha um jeito muito bonito de filmar a dor de viver cercado das imposições e de ter sua voz calada, sejam por motivações de ordem política, social ou religiosa. Que bom que a gente ouviu essa voz aqui, e que bom que o cinema dele continua empenhado em mediar a resistência e o resgate da liberdade. É o que faz até trabalhos menores como esse curta uma verdadeira pérola. O curta integra a antologia CELLES QUI CHANTENT.

Hidden
Jafar Panahi
Irã, 2020

domingo, 23 de maio de 2021

O Encouraçado Potemkin


O nascimento da revolução. É um filme obrigatório porque tem todo esse vigor em torno do cinema que ele faz, dá pra ver que é auto-explicativo porque se diz tanto que se trata de uma obra tão importante. Inspirado em um motim que realmente aconteceu, e o massacre também, "O Encouraçado Potemkin" resgata um episódio revolucionário com paixão e também com euforia, já que ele abraça toda a sequência de eventos, e ao mesmo tempo vai desmascarando a agressividade do desenrolar deles, como tudo vai acontecendo de forma sangrenta e sofrida. O antagonismo entre opressor e oprimido, violência e violado, cada vez que o filme explora esse embate é muito ricamente, usando o máximo que ele pode do cinema pra discorrer em cima dele, com cenas que vão de raivosas a claustrofóbicas. É claro, a cena das escadas é icônica, mas me impressiona muito a força das primeiras partes, do levante no navio, de uma energia que é comovente. Talvez cinema seja isso, uma cena dando lugar à outra, preservando a mesma força, sem depender dela, cada parte da construção dilacerante por si mesma.

Bronenosets Potyomkin
Sergei Eisenstein
Rússia (União Soviética), 1925

sábado, 22 de maio de 2021

Trens Estritamente Vigiados


Fábula da liberdade/descoberta sexual em tempos de autoritarismo e barbárie. O contraste entre a repressão de costumes, o clima de perseguição e a afirmação sexual acontece, mesmo em cenas decisivas, num tom risonho e brincalhão, revelando a surpresa de comédia deliciosa que esse filme é, mesclando cenas cheias de um humor espontâneo com outras cenas carregadas: questões comportamentais, o clima da época e a intimidade das pessoas em estado de sítio. As cenas funcionam com naturalidade, os atores estão ótimos, e o humor, despudorado, é encantador. Sua sutileza em entregar, aliás, cenas que dialogam perfeitamente com suas intenções, com temas que ganham um tratamento simpático e repleto de uma ingenuidade saudável, encanta muitíssimo.

Ostře sledované vlaky
Jiří Menzel
Tchecoslováquia, 1966

Desejo e Reparação


Uma nuance dá lugar à outra, e se estabelece um diálogo entre paralelos: as consequências, e o papel que o destino vai exercer naquelas vidas, à maneira que os personagens vão se invadindo, dentro do desenrolar daquela história em particular, e como dois eventos tão distintos, um de ordem mais pessoal, familiar, o outro extremamente mais coletivo, se confundem, se alinham. É a visão de um acontecimento histórico contada através daquilo que o destino fez interromper, separar. Muito bonita a sua tentativa de incorporar, construir e reconstruir, misturar realidades, tudo de maneira muito delicada, no estilo de um romance escrito mesmo, mas em cinema.

Atonement
Joe Wright
Reino Unido, 2007