sábado, 30 de abril de 2016

Crítica: "FATAL" (2008) - ★★★


Sou o tipo de cinéfilo que costuma digerir bem os melodramas. Não tenho nenhum tipo de problema com esse subgênero, até porque sou bem suscetível, presa fácil, a filmes com uma tendência dramática mais elevada, ou até mesmo apelativa, como alguns referem. Muito embora esteja distante de ser um "melodrama exemplar", Fatal bem que pode ser descrito como um exercício melodramático nato, ainda que irregular. A dupla de protagonistas é potencialmente comovente e cumpre a missão de impressionar e estarrecer o espectador.

E a cada filme a diretora espanhola Isabel Coixet cresce em meu pensamento. Fatal, se é não é seu melhor filme (levando em conta que não conferi ainda Minha Vida Sem Mim nem A Vida Secreta das Palavras), fica entre os melhores, digamos. O grande problema de Fatal é seu andamento arrastado e sem jeito, sem naturalidade, sem acompanhar a história. Acho que o problema esteja em mim. Eu não consegui conciliar a trama ao andamento. É desajeitado, e isso não me agradou muito.

Ainda sim, se sobressai entre os muitos méritos de Fatal sua força, a capacidade de mexer com a gente com uma delicadeza ímpar, capaz até mesmo de levar às lágrimas os mais emotivos. A maturidade de Coixet em traçar uma história de amor delirante e inusualmente emocionante, sem desbandar no piegas. E, se não chega a ser aquela maravilha de filme que poderíamos esperar, Fatal conta com a participação de um elenco excepcional que dá conta do recado. Ben Kingsley e Penelope Cruz estão fenomenais. Em Fatal, os dois interpretam professor universitário e aluna sexy, respectivamente, que se entregam de corpo e alma a um caso de amor fervente e repleto de reviravoltas. Os dois amantes começam a questionar o sentido dessa relação, que com o passar do tempo amarga.

Também estão no elenco Dennis Hopper, como um amigo de David (Ben), Patricia Clarkson, que faz uma amante do homem (ela que recentemente esteve ao lado de Kingsley em Learning to Drive, também dirigido pela Isabel Coixet). O roteiro é de Nicholas Meyer, adaptado do romance "The Dying Animal", de Phillip Roth.

As cenas mais eróticas do filme envolvem a bela personagem da Penelope Cruz, Consuela, em cenas carnais ao lado do professor Kepesh. Coixet faz uma romantização belíssima dessas cenas, sensual e belo sem ser vulgar ou debochado. O final do filme guarda uma surpresa de cortar o coração. É um dos finais mais melodramáticos que já se viu. Algumas das cenas exalam um certo ar onírico, como aquelas sequências onde o David e a Consuela estão na praia. Falando nisso, o trabalho de fotografia do filme é excepcional. O diretor de fotografia de Fatal, aliás, é Jean-Claude Larrieu, velho colaborador de Coixet, e que é o diretor de fotografia do mais novo filme de Almodóvar, a estrear em Cannes mês que vem, Julieta.

Fatal termina dando a impressão de indiferença, de fraqueza. O filme certamente é fenômeno dramático, mas termina desse jeito, sujeito ao esquecimento fácil. Ainda sim, vale conferir. É um filme muito bonito e prazeroso de se acompanhar, quase um poema em filme.

Ah, e depois quando eu tiver um tempinho vou ver se dá pra conferir o mais novo filme da Isabel, Ninguém Quer a Noite, com a Juliette Binoche, e passo aqui pra comentar. O filme ainda tá sem previsão de lançamento aqui no Brasil, mas o título em português foi confirmado como Ninguém Quer a Noite (o título original é Nobody Wants the Night, a mesma coisa) e o filme já chegou à internet. Acho que eles vão deixar pra lançar em DVD. Aliás, já que entramos no assunto, não se deixem enganar pelo título nacional Fatal, que é uma farsa completa, levando em consideração que esse título horrendo não tem relação alguma com a trama em si muito menos com o título original, que é Elegy. Distribuidoras e a absurda falta de criatividade. Afinal, o que há de errado com o título Elegia, que é bem mais coeso e conectado à história?

Fatal (Elegy)
dir. Isabel Coixet - 

terça-feira, 26 de abril de 2016

Crítica: "AS VOZES" (2014) - ★★


A estreia live-action da iraniana Marjane Satrapi, diretora da belíssima animação Persepolis, é uma grande decepção, pra não dizer que é um total desastre de vez. Levando em consideração o resultado catastrófico desse filmezinho maçante e sem pé nem cabeça, o debut internacional de Satrapi é um fracasso. E a culpa nem chega a ser dela, mas sim do roteirista inexperiente (Michael R. Perry), já que o único crédito da Marjane é o de direção. Quer dizer, a premissa até que aparenta ser bem promissora, mas ao fim não supera tais expectativas (nem um pouco, pra ser mais exato). É um filme que tinha tudo para dar certo. À primeira vista, é claro. 

O filme nem chegou a ser lançado nos cinemas (consta-se apenas que o filme foi lançado diretamente em vídeo). Fui ver no NET Now nesse feriadão e tinha em mente boas expectativas quanto a ele, tudo em vão. Ryan Reynolds é Jerry, um rapaz esquizofrênico que mora em uma pequena cidadezinha do interior pacata, onde ele é empacotador. Ele é convidado para uma festinha do escritório, e, sabendo da presença de Fiona, uma linda contadora, ele logo se interessa em comparecer ao evento. Jerry e sua obsessão pela moça acaba por desencadear num destino fatal para a beldade. Completando as doideiras, o cara ainda conversa com seus animais de estimação, um gato e um cachorro, que "refletem" os pensamentos e as emoções do personagem, como culpa, satisfação, medo, arrependimento, maldade...

O Ryan Reynolds finalmente entrega uma boa performance, ainda que num filme tão desprezível. Anna Kendrick, quem eu há pouco tempo detestava, veio ganhando mais a minha atenção desde que conferi Amor sem Escalas. Ela até que está boa também. A Bond girl Gemma Arterton, embora seja belíssima, nem está tão sedutora assim no filme. Se bem que as bizarrices do filme atrapalham um pouco esse quesito, anyway.

Jacki Weaver faz a psiquiatra do homem. Pra começar, eu nem sabia que ela estava no elenco do filme, o que me surpreendeu um pouco. Não tenho muito o que dizer de As Vozes. De fato, há certas coisas que me agradaram, mas trata-se de um filme muito transparente e incompetente para ser considerado, no mínimo, um bom trabalho. Quero dizer, acho que a única coisa que realmente me agradou em As Vozes foi a sequência final, dos créditos, com a canção "Sing a Happy Song" de fundo, que é uma sequência um tanto engraçada e que combina com o clima bizarro do filme. Fora isso, nada impressiona muito. O diretor de fotografia de As Vozes é o mesmo do suspense Maníaco, com Elijah Wood, visto há algum tempo.

As Vozes (The Voices)
dir. Marjane Satrapi - 

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Crítica: "ÁLBUM DE FAMÍLIA" (2013) - ★★★


Não deixa de ser um filme interessante, mesmo com todos os seus defeitos, esse Álbum de Família. A questão é que trata-se de um projeto cativante, mas sem força, facilmente esquecível, passível, sem novidades. Álbum de Família segue a cartilha dos filmes com famílias perturbadas, até se entregando a certos clichês toleráveis do subgênero com certo charme. Não traz nenhuma inovação e está bem longe de ser notável, mas bem que merece certa atenção se formos levar em conta o elenco, por exemplo, e outros quesitos menores.

O elenco é, sem dúvida, o grande atrativo de Álbum de Família. Julia Roberts, Chris Cooper, Ewan McGregor, Margo Martindale, Sam Shepard, Julianne Nicholson, Juliette Lewis, Abgail Breslin, Benedict Cumberbatch... E, é claro, a excepcional Meryl Streep, cuja performance no fim das contas acaba sendo a melhor coisa desta produção. Nem mesmo Julia Roberts, em uma atuação enormemente plausível e indicada ao Oscar, foi capaz de superar a querida Meryl, mais uma vez brilhante na pele de uma matriarca problemática enfrentando os conflitos familiares que surgem embutidos a um tempestuoso reencontro. 

Muito embora seja a adaptação de uma peça, o filme em si não é nada, digamos, teatral, ou adequável ao ambiente teatral. E isso dá corda para certas limitações, que complicam o andamento do filme e transtornam um pouco as coisas, e isso inclusive afeta um pouco o elenco, que fica desproporcional. Apesar disso, a autora do roteiro adaptado é a mesma que escreveu a peça, Tracy Letts. O diretor do filme é John Wells, que coleciona, contando com este, três filmes. John trabalha mais como diretor de TV. Seu primeiro longa foi A Grande Virada, com Ben Affleck. Seu mais recente é o odiado Pegando Fogo, que ainda não conferi.

Embora digam que é um drama, Álbum de Família está mais para comédia, o que explica um pouco terem nomeado a Meryl em Comédia/Musical ao Globo de Ouro ano retrasado, nomeação que causou espanto, já que muitos levam a interpretação dela para o lado dramático. Mas acho que não dá pra dizer se é dramática ou se é cômica. Digo cômica porque a maior parte do tempo lá estava eu rindo das presepadas da personagem doida dela cujas bizarrices são engraçadíssimas, ainda que o clima dramático pinte no ar em certos momentos. O diretor de fotografia do filme é o brasileiro Adriano Goldman (ele já trabalhou em filmes como Jane Eyre, Trash, 360 e no cinema nacional Xingu e O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias). A trilha sonora é de Gustavo Santaolalla. Enfim, Álbum de Família deixa a desejar um pouco quanto a certos aspectos, porém acaba sendo uma maravilha, muito por conta do elenco, que só tem gente fina e talentosa. A escolha não poderia ser melhor. E a Meryl está excelente, novamente. 

Álbum de Família (August: Osage County)
dir. John Wells - 

domingo, 24 de abril de 2016

TRÊS CURTAS DE KLEBER MENDONÇA FILHO


Abaixo, comento três curtas do cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho, diretor de O Som ao Redor.


Vinil Verde

Visto em 25/01 desse ano. Rapaz, nunca saberia que ficaria tão encantado com o lado curtametragista de Kleber Mendonça Filho, cujo longa de estreia (O Som ao Redor) é um baita de um filmaço! Fiquei mesmerizado com Vinil Verde, um dos curtas mais famosos de Kleber e muito possivelmente um dos melhores curtas que eu já vi. É a historinha de uma garota que ganha de presente da mãe um toca-discos. A mãe lhe diz que ela pode tocar quantos discos ela quiser, menos o disco verde. O filme foi realizado no formato fotomontagem, como La Jetée, e é uma maravilha estupenda. Fico imaginando o que o diretor quis passar com esse curtinha tão enigmático e tenebroso. Confesso que até eu fiquei assustado em certos momentos. De qualquer forma, é mesmo um "doce curta de horror para crianças", como o subtítulo sugere. Fiquei instantaneamente estonteado por essa pequena fábula fílmica, adaptação de um conto infantil russo conhecido como "Luvas Verdes". Bonito, estremecedor e encantador. 


Eletrodoméstica

Esse eu conferi hoje. Trata-se de um curta engenhoso e tão enigmático quanto Vinil Verde, embora, se formos ver de perto, bastante simplista e sem exageros. Outra semelhança com Vinil Verde é a qualidade. Eletrodoméstica lembra bastante uma sequência de O Som ao Redor, dando a entender que o diretor praticamente retirou aquela cena, estrelada pela dona de casa entediada (Maeve Jinkins), deste curta. Como a personagem da Jinkins em O Som ao Redor, a protagonista de Eletrodoméstica é uma dona de casa que realiza tarefas da casa durante o dia e que cultiva certas "diversões" e rituais em seu cotidiano doméstico, bem como "masturbar-se na máquina de lavar" e "baforar no aspirador de pó". É um trabalho bastante curioso e interessante, uma observação inquietante e perceptiva sobre a solidão e a rotina. Embora a Maeve não estrele o curta, temos a atriz Magdale Alves, tão talentosa e memorável quanto, no papel da dona de casa. Aliás, quem interpreta a filha dela neste curta é a mesma atriz que fez a menininha de Vinil Verde, Gabriela Souza (taí outra semelhança com Vinil Verde). A direção de fotografia do curta é extraordinária (taí outra semelhança com Vinil Verde).


Recife Frio

O melhor dos curtas de Mendonça Filho que conferi foi, certamente, Recife Frio. Ah, como eu amei Recife Frio. Um curta futurista, Recife Frio pode bem ser considerado o La Jetée nacional. Embora esteja distante do clássico quanto ao formato, Recife Frio, que já em sua introdução nos lembra La Jetée, se baseia numa premissa bastante graciosa e estranha: Recife, num futuro próximo, ser abalada por um profundo transtorno climático, que deixa o litoral de Pernambuco sob um frio intenso e incessante, extinguindo o calor e alterando a vida da população. Mas, diferentemente do que poderia se esperar, Kleber brinca genialmente com os elementos da trama, dando a ela um gostinho mais cômico e inesperadamente delicioso. Quase o curta inteiro é como se fosse uma pequena reportagem televisiva, com um jornalista hispânico (?) debatendo e discutindo a onda de frio que abala o litoral do Nordeste e que transforma os hábitos da população pernambucana, inclusive dos cidadãos de Recife, como é analisado. A maior parte do tempo a trama é explorada com um olhar afiado e minucioso, de forma com a qual o diretor aborde diversas temáticas, como desigualdade (a sequência do apartamento dos ricaços, onde um adolescente expulsa a empregada do quartinho dela, é uma das minhas sequências prediletas), turismo, choque social... A sátira e a crítica estão presentes, mas também há a impressão de que tudo seja mesmo uma grande brincadeira, uma grande de uma descontração, com momentos de comicidade excêntrica e agradáveis simbolismos, que não passam de uma grande brincadeira do diretor, uma perspectiva cômica e sarcástica sobre os hábitos e os problemas da sociedade dos tempos atuais. Ainda sim, é um filme bastante especial e que merece atenção. Eu gostei pra caramba. É pura perfeição. O formato é genial, as sacadas do roteiro são brilhantes, a direção do Kleber é formidável. Recife Frio é primoroso. Eu adorei, sinceramente. Um trabalho fabulosamente bem-feito. Ah, e só pra constar, o curta foi dedicado a Chris Marker e Terry Gilliam, o que explica um pouco as referências a La Jetée e ao trabalho do Gilliam em geral (Monty Python, Brazil, 12 Macacos...) e o climão sci-fi debochado. 

-- "Socialite revela: 'Agora os pobres estão mais 'chic' passando frio'". 

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Crítica: "INTERIORES" (1978) - ★★★★★


Os mais chegados conhecem o Woody Allen dramático de filmes como A Rosa Púrpura do Cairo, Match Point (que -- coincidentemente? -- são os meus dois filmes prediletos dele), Crimes e Pecados, Simplesmente Alice, Maridos e Esposas, Setembro, A Outra e os recentes O Sonho de Cassandra, Blue JasmineHomem Irracional entre outros trabalhos, que são exemplares bem-sucedidos da boa manobra e concepcionalidade do diretor com o gênero drama, visto acima competentes amostras da finura e a astúcia com a qual Woody o tece nesses filmes. Interiores, talvez não tão famoso quanto estes outros títulos, ironicamente é o melhor exercício dramático do Woody. Particularmente, Match Point é meu drama favorito dele, mas Interiores é tão bem-feito nesse ponto quanto. De qualquer maneira, Interiores vale cada segundo e merece ser enaltecido como um dos melhores filmes do Woody. 

O mais provável é que o Woody tenha escrito e dirigido Interiores sob uma embriaguez braba de Bergman. Não à toa este também é seu filme mais semelhante ao estilo fílmico do mestre sueco o qual Woody é fã assumido e tem uma porção de filmes inspirados ou com algum tipo de referência nele. Homem Irracional, seu último, emula uma síntese filosófica bastante Bergmaniana, muito embora não seja comparável a nenhum filme dele ou possua um estilo minimamente assemelhável, mesmo que tenha sim uma ideologia similar. Dos recentes, é bem crível que Match Point e O Sonho de Cassandra estejam mais ligados à essa linha, não só pelo gênero, mas pela temática, pela abordagem, pela filosofia que carregam... 

Interiores é aquele tipo de filme que intimida e deprime a gente. Intimida porque põe o espectador à frente de uma trama carregada capaz de provocar as mais diversas reações, como tristeza, raiva, esperança, medo, ou sendo até mesmo capaz de nos levar à identificação e à reflexão acerca a relação dos personagens e o desfecho. 

Sei que é errado julgar, mas a maior parte do tempo senti uma raiva de dar tapa na cara daquelas duas irmãs depressivas, a Renata (Diane Keaton) e a Joey (Mary Beth Hurt) e a mãe problemática com tendência suicida (Geraldine Page, numa performance digna e excepcional). A cena em que eu mais me estressei foi naquela onde a Joey grita com a nova mulher de seu pai, uma extravagante e alegre dona de casa, quando ela derruba um vaso, artefato feito por Eve, quem Joey idolatra. Mas é bem provável que tudo dependa do meu humor. Às vezes dá uma baita raiva desses personagens caídos e sem rumo, maldizendo a vida e sempre em conflito, de mau humor, mas depois, se eu for rever o filme num dia ruim, é bem capaz de eu acabar é me identificando com elas. Vai saber. 

O elenco ajuda muito nisso. A competência desses profissionais chega a ser invejável. Geraldine Page, Maureen Stapleton, Diane Keaton, Mary Beth Hurt... Todas estão delirantes e simplesmente excelentes. 

Há três cenas em Interiores que são muito especiais para mim. [spoilers à frente] A cena da tentativa de suicídio da Eve em seu apartamento, apesar de rapidíssima, me deixou eletrizado. A sequência da igreja também é bastante impactante. E, é claro, a sequência final, irreparável. Bem filmada, bem editada, bem fotografada, os atores exalando um realismo estético avassalador... É a cena mais arrepiante do filme, a melhor de todas. Também dou destaque à cena da garagem, quando o marido de Renata, Frederick, dá em cima da belíssima irmã dela, Flyn. 

A fotografia de Gordon Willis, abusando de tons cinzas e opacos, em escalas escurecidas e amarguradas, conferindo ao filme um ar melancólico e profundamente sombrio, é sublime. Uma das mais memoráveis parcerias entre o Woody e o lendário diretor de fotografia. Se eu não tivesse me informado sobre isso antes, poderia até pensar que Sven Nykvist fosse o diretor de fotografia de Interiores. Ah, e um fato interessante é que Sonata de Outono foi lançado no mesmo ano que Interiores. Que coincidência, não?

Woody testa mais uma vez seus dotes dramáticos numa obra impecável e inesquecível, um de seus melhores trabalhos. infelizmente esquecido com o passar do tempo. Interiores, seu elenco, sua fotografia, sua trama, sua direção... Tudo funciona plenamente. Nem parece que é um filme dele, francamente. É claro, daria até pra reconhecer a overdose de existencialismo, mas o Woody de Interiores não é aquele Woody que a gente vê a cada filme, num bom sentido. É bem bacana adentrar em sua filmografia um filme tão excêntrico e inusual como Interiores, repleto de qualidades, nos surpreendendo misticamente. 

Interiores (Interiors)
dir. Woody Allen - 

terça-feira, 19 de abril de 2016

Crítica: "FLORES PARTIDAS" (2005) - ★★★★


Sério, eu não achava que esse negócio de Impeachment era pra valer. A Dilma? Sofrendo impeachment? Isso jamais passou pela minha cabeça, de verdade. Desta vez, eu estava bem desinformado. E não que eu seja um petista ou simpatizante do governo dela, mas impeachment é, no mínimo, uma decisão repreensível e pra lá de absurda. Tirar a Dilma? Pô, cara, quanta anti-democracia! E acreditar que a maioria é a favor da saída dela. Que país é esse, alguém me explica? É tanta frustração, tanto medo do futuro (como disse um amigo meu), que eu mal posso descrever em palavras o que sinto em relação a esse processo. É muito doido. Enfim, domingo à noite, justo quando dei um pause em Flores Partidas, bem após os créditos, no comecinho do filme, passei pela sala de estar e me deparei com a insana votação do Impeachment acontecendo. Foi um momento particularmente estranho pra mim. Eu paralisei na hora e comecei a acompanhar, me esquecendo completamente de Flores Partidas. Com todos aqueles infames ali reunidos numa cena horrorosamente lamentável exibindo orgulho em discursos patéticos, me recusei a acompanhar -- sei lá, bateu um nojo, uma repugnância de testemunhar aquele acontecimento horrendo. Ainda bem que deu pra ver o filme antes do domingo terminar, lá para as onze da noite. A questão é que eu ando ficando com sono muito cedo de uns dias pra cá, rapaz, e se logo ponho um filme à noite é certeza que eu irei, de uma forma ou de outra, acabar cochilando, independente da qualidade do longa. E olha que, quando eu tinha terminado de ver Flores Partidas, a votação ainda estava rolando.

Mas, enfim, o filme. Flores Partidas leva a direção e o roteiro do celebrado Jim Jarmusch, diretor dos ainda mais cultuados Estranhos no Paraíso, Daunbailó, Homem Morto e Sobre Café e Cigarros. Creio que Flores Partidas seja seu filme mais famoso, no entanto. A comédia dramática estrela Bill Murray no papel de um mulherengo 'Don Juan' (o nome do cara, Don Johnston, é uma referência), que trabalha no ramo da informática e que, certo dia, recebe uma carta rosa dizendo que ele é pai e que seu filho está à sua procura, carta essa provavelmente da autoria de uma de suas ex-amantes. 

Don, "incentivado" pelo carismático vizinho Winston (Jeffrey Wright), parte em uma viagem pelo país reencontrando suas antigas namoradas para desvendar esse misterioso paradeiro. A jornada do homem pelo país, indo de casa em casa, visitando ex-amantes, é desconstruída com um astral meio melancólico, um ar parado, que geralmente não vemos sendo atribuído a típicos road movie. Ainda sim, o mistério agita a trama e não deixa ela azedar. A gente também vai observando, nos pequenos detalhes, o desvanecimento daquele Don Juan que outrora foi um mulherengo cobiçado e que hoje se sustenta em casos quebradiços e insatisfatórios, em olhares vazios e desejos inversos. A perspectiva desanimada por sobre a natureza dos relacionamentos humanos nunca foi tão anti-bon vivant como em Flores Partidas.

O elenco é notável. Flores Partidas é decorado por participações (muito) especiais de diversas estrelas, como a Sharon Stone, a Jessica Lange, a Frances Conroy e a querida Tilda Swinton (muito linda, por sinal, apesar da rápida aparição), que interpretam as ex-amantes do homem, a Chloë Sevigny, que faz a secretária de uma das ex-amantes do homem, e que quase não tem falas, a deusa Julie Delpy (a Celine da trilogia Antes) que também conta com uma rapidíssima aparição bem no comecinho do filme, o Jeffrey Wright, que também não tem muitas cenas... O filme é praticamente o Bill Murray. E não à toa a performance dele é primorosa.

Flores Partidas é um trabalho graciosíssimo e uma figura radiante dentro da filmografia de Jarmusch. O andamento lento proporciona ao espectador sequências deliciosamente estonteantes e exímias. O desempenho de Bill Murray é certamente adorável, e prova mais uma vez o talento de Murray como intérprete, numa das atuações mais potentes da carreira do mesmo. Ora melancólico, ora dono de uma doçura discreta, o personagem Don Johnston não dificilmente remete ao Bob Harris de Encontros e Desencontros (muito embora este último seja bem mais melancólico, convenhamos), reforçando o conceito de grande atuação que esta exala comparada à performance que nomeou o grande Murray ao Oscar, na (injustamente) única indicação do ator ao prêmio até a data.

Eis um filme que merecia mais atenção e reconhecimento do que obteve. Não chega a ser um filme menosprezado (ufa!), mas foi esquecido e deveria ser, digamos, enaltecido e comemorado, o que ao meu ver não é. De qualquer maneira, a presença de Bill Murray faz toda a diferença. O cara é um ator fabuloso, um dos meus prediletos, e vê-lo em boa forma num filme tão brilhante como esse me deixa muito emocionado.

Flores Partidas (Broken Flowers)
dir. Jim Jarmusch - 

sábado, 16 de abril de 2016

Crítica: "AMOR PLENO" (2012) - ★★★★


A gente não vê Amor Pleno. A gente sente Amor Pleno. A gente sente Malick. A gente sente a fotografia de Emmanuel Lubezki. A gente sente o amor. A gente sente a beleza. A gente sente a vida. Malick é o mestre da arte de se fazer poesia com o cinema. Amor Pleno não é seu melhor filme, mas certamente trata-se de uma peça singular dentro da sua diversa filmografia e um filme interessantíssimo e fabulosamente grandioso. Digam o que quiser, mas eu adorei. É mais que belíssimo. É a oportunidade única de testemunhar um exercício de beleza poética riquíssimo e excelentemente bem-feito. 

A começar pela esplendorosa fotografia de Lubezki. O mestre da imagem firma mais uma parceria com Malick e o resultado é, na melhor das definições, divino. Os ângulos panorâmicos, o paisagismo visual, os planos lentos, a movimentação suave... Lubezki dança com a câmera, entregando uma fotografia atmosférica soberba, graciosa, perfeita. É a melhor coisa de Amor Pleno. Não dá pra resistir sob nenhuma hipótese.

No embalo, o elenco é primoroso. A performance de Olga Kurylenko é estupenda, a melhor da carreira dela e do elenco de Amor Pleno. A atuação é tão boa que dispensa falas, diálogos, para ser no mínimo o mais tocante possível, forte e densa, leve e explosiva, dinâmica e sensível. A bela ucraniana já nos presenteou em outros trabalhos cinematográficos com seus admiráveis dotes de beleza que tanto os enfeitaram e nos contentaram (por exemplo, 007 - Quantum of Solace ou Paris, Te Amo, onde fazia uma vampira num segmento que, apesar de rápido, foi o suficiente sensual para dar água na boca). Aqui, a atriz não só nos brinda com essa sua beleza ímpar e hipnotizante mas também fascina com uma atuação plausível e versátil. Suas expressões, seus olhares, seu andar, seu estado de reflexão, seu calor, tudo em conjunto contribui para um desempenho estonteante e inesquecível.

O resto do elenco está apenas "ok". Acho o Ben Affleck um diretor impagável, mas pra mim é geralmente um ator regular (é bem raro eu me surpreender com ele como ator) e a presença dele em Amor Pleno foi assim, "apenas ok", muito embora ele não seja indispensável e eu mesmo nem consiga ver outro ator no papel dele. A talentosa Rachel McAdams foi desperdiçada (não foi nada bacana) e aparece bem pouco pro meu gosto. Javier Bardem é um dos meus atores prediletos e a atuação dele foi uma coisa agradabilíssima, ainda que ele também apareça pouco, mais para o final. Bardem interpreta um padre questionando sua existência e em crise de identidade. O espanhol entrega uma atuação simples e sem exageros, na medida certa.

Autobiográfico, o filme relata a história de amor de um americano e uma francesa. Quando ele retorna aos Estados Unidos, se depara com uma antiga paixão e não consegue resistir à tentação. Seu casamento entra em crise e tudo caminha ao caos e à perdição. Fidelidade, razão, tempo, desejo, delírio, solidão, perdão, mudança, sentido, sentimento, catarse, devoção. Em meio a desconstruções filosóficas e questionamentos pragmáticos, uma inquisição prevalece: o amor sobrevive? Sobrevive o amor? Existem regras para o amor? Existem limites para o amor? Para a maravilha. O amor é a maravilha.

Malick põe a sua ambição pra trabalhar em mais um projeto complexo, que exige atenção aos detalhes e compreensão. Amor Pleno é a inquietante observação da natureza de espírito em conflito consigo mesma, tragando energia emocional e expelindo força racional. Malick brinca com a nossa interpretação e esculpe uma ode ao amor e à indecifrabilidade da vida com uma sagacidade excepcional. Amor Pleno nos maravilha, nos provoca, nos enigmatiza... E é ainda por cima lindo pra caramba. Sr. Lubezki, gracias!

Amor Pleno (To the Wonder)
dir. Terrence Malick - 

Crítica: "RABBITS" (2002) - ★★★★★


Em Império dos Sonhos, havia uma ou duas sequências retiradas de Rabbits, misturadas ao filme, que em si é a reunião de curtas-metragem do Lynch (com alguma coincidência entre eles). Desde então, meu interesse em conferir esse projeto do diretor, que inicialmente foi designado como uma minissérie de 8 episódios, aumentou. Na verdade, a versão "curta-metragem", que tem 42 minutos, são os 8 episódios juntos. Rabbits foi lançado nesse formato de minissérie no site do cineasta (hoje não está mais disponível, infelizmente), e logo depois foi disponibilizado em DVD como um curta, que é a versão mais encontrada hoje em dia do trabalho. 

Ainda nessa semana, assisti Cidade dos Sonhos e fiquei profundamente maravilhado pela obra. Foi hoje que me veio a ideia de assistir Rabbits. E olha que não foi tão difícil achar o filme. Encontrei um link em torrent, e em menos de 20 minutos o download foi efetivado. Eu estava planejando vê-lo mais tarde, à noite, mas não aguentei a ansiedade e logo coloquei o curta pra rodar. Fiquei abismado, sem chão. O curta tem umas cenas de deixar qualquer um aterrorizado. E mesmo de dia, é de deixar a gente realmente perturbado. Ainda sim, pretendo revê-lo à noite. Dizem que o medo e o choque é ainda maior se vermos no escuro e no silêncio da madrugada.

A sinopse é a seguinte: "numa cidade sem nome amaldiçoada por uma chuva contínua, três coelhos vivem com um mistério aterrorizante". O curta todo se passa num só cenário, um quarto, que está mais para uma sala, onde temos a Naomi Watts e a Laura Elena Harring, as belíssimas estrelas de Cidade dos Sonhos, fantasiadas de coelhas, e o ator Scott Coffey, também do elenco de Cidade dos Sonhos, fantasiado de coelho. Há também a Rebekah del Rio, que fazia aquela cantora do Club Silencio, que cantava aquela canção estremecedora que me deixou extasiado e comovido, "Llorando" (acreditam que a música é original do filme?) na de longa melhor cena do filme e uma das melhores e maiores que eu já vi na minha vida. Em Rabbits ela não canta, mas a presença dela é amedrontadora, sem falar naquela voz icônica e inebriante dela que faz qualquer um ficar eletrizado.

A câmera não muda de movimento, exceto por um único momento, e que não dura mais de segundos, que é quando a câmera foca num telefone que começa a tocar, perto do fim. Dá a impressão de que o curta faz referências à programas sitcom por conta das risadas, como se houvesse um público assistindo àquilo, o que é bastante comum nas produções sitcom norte-americanas, e também por conta de momentos onde um certo personagem-coelho entra e é ovacionado em off. Bem bizarro.

Também há uma baita falta de nexo entre as falas dos personagens, como se fossem diálogos picotados, entrecortados ou até mesmo misturados, sabe? Acho que isso era bastante notório na inclusão da sequência em Império dos Sonhos (a falta de sentido nos diálogos entre os coelhos -- dá a impressão de que faz sentido para eles, do jeito que eles falam como se as falas, que pra gente soam sem sentido, são completas). 

Há várias riquíssimas teorias e interpretações para o complexo e sombrio contexto de Rabbits atribuídos pelos espectadores e fãs de Lynch. Alguns dizem que os coelhos na verdade são almas de humanos que encarnaram em coelhos e que estão confinados numa espécie de Purgatório, enquanto outros dizem que os coelhos são na verdade brinquedos de uma criança, enquanto outros simplesmente contestam que o curta nada mais é que uma crítica à cultura pop moderna e ao universo do entretenimento, e também à televisão norte-americana, como se fosse uma alfinetada aos programas sitcom e reality show, que geralmente são providos desse formato. 

Vi o curta com a Ana Paula, minha prima, que já tinha visto um pedaço de Império dos Sonhos comigo e que ao bater o olho identificou os coelhos de Rabbits da sequência do filme. Pra ela, os coelhos testemunharam um crime, assassinato, ou algo do tipo, o que não deixa de ser uma possibilidade, do jeito que as falas dão mesmo para algo tão obscuro como um crime. 

Seria esse mais um pesadelo de horror fabricado pela mente Lynchiana sobre os nossos medos mais cruéis e nosso imaginário sombrio? Fica no ar esse intrigante desafio do diretor, que nos faz questionar e pensar a fundo as mil e uma possibilidades que o curta de pouco mais de 40 minutos oferece e se encaixa. No entanto, dos méritos de Rabbits sobressaem-se os de nos estranhar, nos intrigar e nos assombrar com uma ferocidade avassaladora e de tirar o sono. Além do mais, por conta das teorias e desses contextos estranhíssimos e de seu formato, Rabbits também não deixa de ser um tanto interessante, antes (pra quem viu Império dos Sonhos primeiro e ficou fascinado pela cena incluída) e depois da sessão.

Rabbits 
dir. David Lynch - 

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Crítica: "A COMÉDIA DO PODER" (2006) - ★★★★★


Acho que não é nenhuma novidade pra quem acompanha aqui o blog que eu sou um fã ávido da francesa Isabelle Huppert (e não me canso de repetir isso). Consegui a cópia do comentado A Comédia do Poder ano passado, quando comecei a procurar alguns filmes da atriz, bem no auge da minha fase de baixar filmes via torrent. Pra se ter uma noção, estou para ver A Professora de Piano, O Tempo do Lobo (os dois do Haneke), Minha Terra África, 8 Mulheres, Em Nome de Deus, e por aí vai. Sem falar que a cada ano é uma estreia nova. Aliás, ela tem dois novos filmes em cartaz aqui no Brasil, que são Mais Forte que Bombas e Fique Comigo. Enfim, talentosa e de uma filmografia (felizmente) extensa e lotada de filmes preciosos, Isabelle Huppert é uma deusa. Merece todo o carinho do mundo. E vê-la num filme absurdamente espetacular numa atuação de ouro é uma oportunidade incrível. É assim que acontece em A Comédia do Poder, de Claude Chabrol.

A Isabelle é a dona do filme. Sua personagem é uma renomada juíza, Jeanne Charmant-Killman, uma mulher que não mede esforços a fim de acabar com a corrupção, realizando diversas investigações, liderando vários mandatos e pondo na cadeia charlatões descarados. Qual é o apelido de Jeanne? "A piranha". Se por um lado sucesso é o que não falta para Killman, do outro sua vida pessoal é uma bagunça. A mulher não tem uma vida, praticamente. A gente só vê ela trabalhando, ela não faz outra coisa. Chega a soar como obsessão. E isso implica e muito no casamento dela com um médico que sempre anda deprimido, e que não mantém uma relação saudável com Jeanne. Eles mal quase se falam.

É A Comédia do Poder uma comédia propriamente dita? O que Chabrol quis dizer com esse título? A Comédia do Poder justamente se dispõe a seguir a linha de uma comédia moral, de uma forma impessoal e estupendamente irônica, propondo exibir os absurdos do universo do poder e da justiça nos dias atuais, fazendo deste retrato uma comédia irreal e sarcástica sobre a posição da figura feminina dentro do campo da justiça e todo o processo que engloba uma investigação criminal.

A indelicadeza da abordagem, o humor moderado, os diálogos marcantes e cenas ainda mais inesquecíveis. Isabelle Huppert em um de seus melhores desempenhos. A atriz se entrega de corpo e alma à uma juíza, "charmosa assassina de homens", determinada e maníaca-por-justiça cuja vida beira o sucesso e o vazio. O elenco todo, de parabéns, merece destaque, mas o brilho da Isabelle é transcendente.

Os méritos de A Comédia do Poder repousam justamente na construção de uma trama singular e que foge do lugar comum, a atenção ao elenco, a intervenção de elementos como os recursos de fotografia (do português Eduardo Serra) e a trilha sonora no design do filme em si como uma definitiva comédia, os truques de direção e de roteiro, inovações na fórmula, o desfecho, a complexidade da metáfora que envolve a escolha de um anti-gênero para uma nova montagem.

Outra coisa bacana em A Comédia do Poder é que o filme é propositalmente inconvencional (no bom sentido). Mesmo que muita gente não assuma, muitos ainda pensam da mesma forma quanto à política, à justiça, às relações de poder e à corrupção, sempre enquadrando esses quesitos num viés regado a seriedade. E o pior é que é desse jeito mesmo. Por mais que uma hora ou outra há alguns piadistas que brincam a respeito, são quatro coisas extremamente levadas a sério, ainda mais nos dias de hoje. O diretor brinca com esse nosso pensamento num jogo audacioso e cheio de peripécias, que tem por objetivo descontração e reflexão sobre essas temáticas e a influência delas nas nossas vidas.

O filme tem um andamento lento, calmo, minucioso, paciente aos detalhes e aos diálogos, bem como a disposição dos atores e os cenários. É raro vermos alguma sequência tensa. Eu acho que de tensa, profunda mesmo, só tem a sequência da briga entre a Jeanne e seu marido, e olha que a cena é bem rápida e sem exageros. Ela deixa a casa friamente, sequer pestaneja ou fica intimidada pelo ato do marido e simplesmente deixa o apartamento. Acompanhada pelos dois guarda-costas, quando perguntam para onde ela quer ir, ela responde: "Para o escritório. Para onde mais eu iria?". É aí que a gente reflete, trabalho é uma faca de dois gumes. Alguns adoram se gabar, e tem outros que só reclamam, mas a verdade é que trabalho não fede nem cheira.

À medida em que o filme evolui, fica a sensação de vazio, de nada. Acompanhar a jornada de Charmant-Killman vira uma tarefa vazia, pouco tumultuada, sem teto nem chão. Eu me pergunto se é possível viver assim, na paranoia e sem nenhum prazer, só trabalhando, trabalhando e trabalhando. Qual é, nem dormir a mulher dorme! E pensar que tem um pessoal que é assim mesmo, que não faz nada além de trabalhar. Eu, hein. Get a life, folks!

A Comédia do Poder acumula qualidades e nos faz refletir fundo a respeito de várias temáticas, bastante naturais à nossa geração e atuais, como a valorização da mulher na área profissional e o papel dela dentro da família reformulado, os abusos e efeitos colaterais do mundo do poder, esquemas da justiça, guerra dos sexos, casamento. Mas, dentre todas as coisas maravilhosas de A Comédia do Poder, vence uma: a querida e lindíssima Isabelle Huppert, em plena forma num trabalho vigoroso e excepcional quão memorável.

A Comédia do Poder (L'ivresse du pouvoir)
dir. Claude Chabrol - 

domingo, 10 de abril de 2016

Crítica: "FIM DOS TEMPOS" (2008) - ★★★★


Os filmes de M. Night Shyamalan tem algo de... huh... como descrever? Profundos? Tocantes? Tudo isso também, mas primeiramente: poderosos. Os filmes desse inigualável mestre são extremamente poderosos, potentes, firmes, chocantes (de uma perspectiva mais afetiva/humana, de romper essa casca e partir para um questionamento ainda mais aprofundado). É uma característica em comum entre os seus trabalhos. Todos eles, de uma forma ou de outra, ostentam poder e sempre transmitem um monstruoso impacto em quem vê (ou melhor, em quem sabe ver -- como A Dama na Água, o filme anterior do diretor, Fim dos Tempos do que tem de filme bom também tem, à mesma medida, de filme subestimado). O resultado é mais uma pérola grandiosamente espetacular vinda de um dos maiores cineastas do cinema contemporâneo. Fim dos Tempos é excepcional. 

A cena de abertura é bizarra e ao mesmo tempo escandalosamente tenebrosa. Estamos no Central Park, em Nova York. Duas amigas estão sentadas num banco. "Esqueci onde estou", diz uma moça. Ela carrega um livro. A outra a lembra sobre o segmento ao qual ela está se referindo. Um grito fulmina e a jovem se assusta. É aí que tudo começa. A região nordeste dos Estados Unidos é tomada por um surto de um perigosíssimo vírus que afeta o sistema neurológico das pessoas, fazendo com que elas, numa reação auto-destrutiva, se matem. Não demora muito e o vírus, "transmitido" pelo ar, já predomina em vários estados e grandes cidades do nordeste do país. 

Metade suspense, metade terror (em menor escala -- o clima constante de desespero inevitavelmente emula um ar de terror), Fim dos Tempos pode ser contemplado tanto como um marco na carreira de um diretor em ótima forma quanto um filme de proporções gigantescas, de mensagem estrondosa e comovente. Shyamalan faz de Fim dos Tempos seu protesto contra à destruição do meio ambiente e da degeneração da natureza pelos humanos. Ficção científica? Olha, não vale descartar. O legal é enxergar o filme do jeito que ele é. Não vim aqui pra entrar nesse território nem pra julgar, muito menos dar sermão mas, se a gente for ver bem de perto, é um dos massivos perigos dos tempos atuais [a destruição do meio ambiente]. Dá a impressão de até ser um filme pra criança (no bom sentido e tirando a violência) por conta da fórmula, só que pra adultos. Louco, né? Fim dos Tempos toca na ferida desse assunto problemático e o mais impressionante é que, mesmo radicalizando certas convicções "imprecisas", faz a gente pensar fundo a respeito dessa temática. Bem como a moça abre o filme, será que a gente "se esqueceu" de onde a gente vive -- de onde nós estamos? Essa questão da preservação ambiental é mais séria do que possamos imaginar. 

A proposta é uma grande de uma contribuição fantástica. E eu não vejo sequer uma mínima existente razão para a desaprovação de Fim dos Tempos. Será que existem tantos haters assim de M. Night Shyamalan? Deve ser a teoria mais provável para tanta falta de consideração com o trabalho do mestre do suspense e das tramas easter egg.

Muito embora a atuação excelente do Mark Wahlberg seja bastante notável e considerada uma "surpresa", pra mim esse posto é ocupado pela graciosa Zooey Deschanel, que no cinema de papel conhecido só tem mesmo pela comédia romântica (500) Dias com Ela (também tem o filme Sim, Senhor!, mas não chega a ser tão popular quanto o mencionado). A performance dela é uma grata surpresa, ainda mais quando se trata de uma artista tão cultuada pelo público e que eu mesmo, quando perguntado, digo que só conheço por "reputação" e fama, já que é bem difícil vê-la nos filmes (e olha que curiosidade irônica a respeito disso: o pai dela é o grande Caleb Deschanel, diretor de fotografia do visualmente estonteante A Paixão de Cristo e também do ainda-não-conferido O Patriota, indicado ao Oscar por ambos os trabalhos e eu creio que alguns mais). Aliás, o diretor de fotografia de Fim dos Tempos é Tak Fujimoto, o mesmo de O Sexto Sentido. A trilha sonora é executada por James Newton Howard.

E é isso aí. Sou fã de Shyamalan desde a primeira vez e a cada filme do gênio que vejo a minha consideração por ele aumenta. Impossível não amar. Impossível não pedir bis. Impossível não se fascinar e deliciar com um presentão desses. Valeu, Shyamalan, por mais um filme competente e simplesmente espetacular em cada aspecto!

Fim dos Tempos (The Happening)
dir. M. Night Shyamalan - 

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Crítica: "CASAMENTO GREGO" (2002) - ★★★★


Comédia romântica. Eu particularmente não acho que seja um gênero complicado. O problema é que fazem muitas comédias românticas sem originalidade atualmente, que sempre acabam beirando o clichê ou se marginalizando na falta de criatividade e competência (há muitos casos, quero dizer, muito embora existam inúmeras "exceções"). Mas eu não acho tão difícil apreciar um filme romântico. O pessoal de hoje maldiz o gênero como se fosse uma praga ou algo do tipo, mas não é. Seria a leveza do gênero, minha interpretação e reação, a história, a identificação que caracteriza esse meu fraco por comédias, ainda mais românticas? Eu sei que adoro de coração o gênero. E, por mais que existam filmes ruins, não dá pra dizer não quando a gente se depara com filmes do porte e do tamanho de Casamento Grego, referência dentro do gênero que habita.

A premissa dessa comédia romântica que eu amo rever é simples: Toula, descendente de uma família grega de raiz, passa seus dias lamentando o seu destino -- aos plenos 30 anos de idade, a moça, que ainda trabalha no restaurante "Dancing Zorba's", propriedade da família, nunca teve uma experiência amorosa antes e que está sendo alvo dos pais e dos tios para ser enviada à Grécia, onde deverá se casar com um "bom e honesto rapaz grego", como reza a tradição que paira sobre a família há várias gerações. 

No anseio de começar a viver, ela decide se arriscar, pedindo permissão ao pai para cursar informática na universidade. Não demora muito e ela se apaixona por um rapaz que conheceu no restaurante da família. O único "problema" é que Ian, este rapaz, não é um grego, ele é (nas palavras do pai rigoroso de Toula) um "xeno", o que atormenta a família "barulhenta" e "gigantesca" da moça.

Prazerosamente engraçado e cheio de vida, Casamento Grego é daqueles filmes que te pegam de surpresa e encanta profundamente e ingenuamente. É tão engraçado observar o discreto choque de culturas que se instala, por vezes com um ar cômico e comichão, e noutros uma levada grandemente interessante. Há quem ache desnecessário, mas pra mim é delicioso, muito engraçado. Aliás, graça é apelido em Casamento Grego. O filme é indescritivelmente brilhante como comédia. Não dá pra resistir. 

A surpresa mais grata de Casamento Grego é a sua protagonista excelentemente talentosa, Nia Vardalos, numa performance riquíssima. O roteiro da comédia romântica, levemente baseado nas experiências da atriz, que é descendente de gregos, também é da autoria dela (Nia, inclusive, foi indicada ao Oscar de Melhor Roteiro Original em 2003). O marido dela na vida real, Ian Gomez, aliás, faz uma pequena ponta no filme, como aquele professor que é o amigo do Ian, que aparece na cena em que os dois vão lanchar no "Dancing Zorba's" e em outras cenas. Ele é o carequinha.

Se vale como um filme sobre os valores da família? Porque não? Toda família é torta mesmo, maluca mesmo, não há segredo nisso. O importante é conviver fraternalmente, cultivar o respeito, a lealdade. Em certos momentos a gente chega a perder a cabeça mesmo se a gente for se preocupar com os defeitos das nossas famílias. Mas não dá pra evitar. Isso acontece nas melhores famílias, como diria a Chiquinha. Afinal, família é tudo o que a gente tem no fim das contas. 

Se você é ou se você não é grego, é impossível não se deliciar de rir com as presepadas dos Portokalos. O filme se beneficia demais de sua abordagem narrativa equilibrada, de mãos dadas com o humor sem ser babaca ou supérfluo. O resultado é uma comédias das melhores e mais extasiantes. 

O elenco também se salva como uma das melhores coisas de Casamento Grego. A fanfarrona família de Toula, a maioria constituída por atores norte-americanos, é de fazer a gente gargalhar até molhar as calças. Não sei se é porque revi demais, mas me lembro que da primeira vez foi uma coisa mágica ter visto Casamento Grego, realmente eletrizante e muito, muito, muito engraçado. 

Casamento Grego funciona, é de qualidade, tem um elenco magistral, uma protagonista e roteirista estrondosamente engenhosa e íntegra por trás do projeto inteiro, sequências que chegam a ser marcantes de tão engraçadas e deleitosas. É simplesmente um primor de filme, genialmente excepcional. Faz um tempinho tentei procurar a série do filme, My Big Fat Greek Life, mas nada encontrei. Vou tentar retomar minhas pesquisas. E Casamento Grego 2 já está nos cinemas, trazendo o elenco original do filme de 2002 de volta após quase quinze anos desde as gravações do primeiro. Estou ansiosíssimo, muito embora o que mais andam falando da comédia é que se trata de um filme "batido" e "ultrapassado". Tomara que não seja desse jeito. Nutro um carinho enorme por Casamento Grego e espero gostar de Casamento Grego 2 tanto quanto, apesar de tais desencorajamentos. Ah, e alguém aí sabia que o diretor do filme (Joel Zwick) é também o diretor da série Três é Demais? Fato curioso.

Casamento Grego (My Big Fat Greek Wedding)
dir. Joel Zwick - 

Crítica: "O DIABO VESTE PRADA" (2006) - ★★★


Hoje em dia, muitos atores são banalmente comemorados e idolatrados por motivos, no mínimo, irracionais ou simplesmente passageiros. Mas há lendas populares que realmente merecem ser celebradas, agraciadas, aplaudidas e veneradas como as melhores de todos os tempos. Eu já falei em outros posts e eu não me canso de repetir: a Meryl Streep é a melhor, incomparável. É a dona dos Oscars, é a dona dos melhores papéis, é a dona da pose, é a dona do talento! Ninguém jamais superará a gloriosa Meryl. E quando eu digo que a Meryl Streep é popular, quero dizer que ela é reconhecida, vangloriada por quase todos (muito merecidamente). Afinal, é raridade encontrar nos dias de hoje alguém do perfil dela, talentosa e reconhecida justamente por todos. 

Não vou dizer que é o melhor filme que ela já fez (nem de longe), mas interpretar a fria, sólida, rígida, incansável e vilanesca Miranda Priestly foi uma das melhores coisas que a Meryl Streep já fez enquanto atriz. Não à toa é ela quem mais brilha em O Diabo Veste Prada, muito embora ela esteja mais para coadjuvante do que uma propriamente dita protagonista (este posto, por sua vez, é de Anne Hathaway, que contracena ao lado de Meryl na pele de uma jornalista à busca de um emprego que cai nas mãos de uma difícil editora-chefe de uma revista de moda conceituada). 

O filme não é lá essas coisas. Tem seus prós e seus contras. Encaro O Diabo Veste Prada no geral como um filme leve, despretensioso e meramente astuto, mas que não consegue passar disso. Por exemplo, tem certas coisas que não me agradaram, e mesmo assim gosto dele do jeito que penso, leve e bobinho, artificialmente especial. 

E o que mais me agradou aqui foi, inevitavelmente, a Meryl Streep, no papel de uma dondoca do mundo da moda carrasca e desprezível, que quer que todos se curvem diante dela, fazer o que ela quer a qualquer momento e a todo custo. Chega a ter, em certos momentos, em que a gente fica nervoso com as atrocidades dela e o jeitão mandona (qual é, a mulher só ao morder o lábio faz com que um estilista mude sua coleção inteirinha -- quem tem esse poder?). 

E pensar que o filme é a adaptação de um livro escrito por uma jornalista chamada Lauren Weisberger baseado nas experiências da jovem ao lado de Anna Wintour, editora-chefe da Vogue americana, como sua assistente pessoal. Saber que a dona Wintour é como a carrasca Miranda na vida real a gente não sabe, mas alguns relatos de quem já atuou profissionalmente ao lado dela são bem assustadores e difamadores. 

À parte da Meryl Streep, que está pra lá de ótima, a Anne Hathaway está razoável, mas quem rouba a cena (?) é a estonteante Emily Blunt, que faz Emily, a escrava da Miranda Priestly, chegando até a se parecer com ele na personalidade em certas sequências do filme. A coitada sofre para obedecer às demandas da chefe, fisicamente e psicologicamente, e isso resulta na sua frieza e constante seriedade. Nunca é bom se focar demais no trabalho. A personagem dela se afoga no próprio ofício, que a impede de ter uma vida e construir uma carreira. 

Chega a dar pena, em certos momentos, do rumo que a personagem toma, e da vida dela, sempre encafifada no escritório da Miranda, estressada e inquieta consigo mesma. E olha que é só um filme. Imagine na vida real? A gente aprende que o mundo da moda é um mundo confuso, doentio e irreparavelmente cruel vendo essas coisas. Pra que, minha gente? Tanto dinheiro pra nada, tanto tempo pra nada. Não vou botar a culpa em ninguém, mas moda é pura perda de tempo. Um universo nojento, insustentável e supervalorizado. Não dá pra crer que a moda tem tantos seguidores assim. Mas, enfim, como eu disse, não posso julgar ninguém. 

O Diabo Veste Prada (The Devil Wears Prada)
dir. David Frankel - 

terça-feira, 5 de abril de 2016

Crítica: "MIAMI VICE" (2006) - ★★★★


Um dos cineastas mais cultuados dos tempos recentes, Michael Mann a cada novo filme que traz busca revigorar seu estilo, aprimorar a sua ação, imortalizar as suas obsessões. Confesso que no passado não cultivava esse apreço que hoje tenho por Mann e sua filmografia excepcional. É claro, não cheguei a ver todos os títulos dele, mas certamente vi o suficiente para reconhecer seu padrão e sua dignidade fílmica, o ritmo e outros aspectos marcantes de seu cinema, que vão desde o visual cadente à primorosidade das sequências de ação. 

Há muitas coisas que fazem a gente ficar fascinado com Miami Vice. O filme tem seus defeitos, mas é um trabalho tão bem-feito, pulsante e novo que simplesmente não dá pra deixar passar em branco. Chega a ser, arrisco, um dos melhores filmes do Mann (levando em consideração que ainda não conferi certos filmes bem badalados do diretor, como Fogo Contra Fogo -- vergonhoso eu não ter visto, né? --, Ali e O Último dos Moicanos, só pra citar alguns). Pra ser mais exato, só vi, dos filmes dele, de Colateral Hacker (à exceção deste, gostei de todos). E, já que mencionamos Colateral, Miami Vice fica um pé atrás do filme de 2004, que pra mim é, até agora, o melhor filme de Mann. Muito embora seja rítmico, estiloso e charmoso, Miami Vice não consegue alcançar a qualidade de Colateral.

Michael Mann foi, originalmente, produtor executivo do Miami Vice na década de 80, seriado que inspirou esse filme. Confesso que desconhecia a existência do programa até então, mas vou ver se o encontro mais tarde na internet (estou aberto a sugestões). O que interessa é que Miami Vice já é por si só um trabalho de primeira. Curioso ver que a maioria dos críticos caiu detonando no filme, que recebeu várias críticas negativas em seu lançamento, e teve uma aclamação bem turbulenta e, em consequência, também negativa. E o mais curioso de tudo isso é que Miami Vice está longe de ser um filme ruim. Tem seus defeitos, como eu já disse, mas não é tão grave assim.

Um dos maiores méritos de Miami Vice é a competente dupla de protagonistas, Colin Farrell e Jamie Foxx, que fazem dois detetives envolvidos em um sistema de contra-inteligência perigoso e complexo, envolvendo um contrabandista, e chefão do cartel de drogas colombiano conectados com um grupo neo-nazista, membros da Comunidade Ariana. 

O interessante de Miami Vice é que não se trata apenas de um filme de ação. A trama é mais que um desfecho de ação mastigado. Os diálogos são poderosos. A complexidade dos esquemas estabelecidos, o desencontro de personagens, o clímax enigmático. Sem falar na fotografia magnífica e exburante do Dion Beebe. Ainda que seja um extravasador filme de ação, não vale deixar de fora certos pontos de enorme contribuição para a qualidade de Miami Vice.

Miami Vice
dir. Michael Mann - 

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Revisão: "SCOOP: O GRANDE FURO" (2006) - ★★★★


Não sei o que deu em mim para não ter gostado de Scoop quando vi o filme da primeira vez ano passado. O filme não conseguia sair da minha cabeça. Tinha que rever. Ainda no ano passado, revi com minha irmã e apreciei bem mais do que da primeira vez. Vai saber. É cada uma que me acontece. Estava devendo de escrever sobre Scoop: O Grande Furo, há um bom tempo, muito por conta do mal-entendido com o filme. Eu sabia que era estranho demais para ser verdade, o Woody fazer um filme ruim. Corri atrás e decidi rever, e rever, e rever, para ver se o compreenderia melhor. E não é que eu simpatizei com o filme, rapaz? Puxa vida. Essas últimas revisões foram espetaculares, clarearam a minha mente e foi aí que me ocorreu de reformular a minha ideia a partir desse longa astuto e suntuoso que tanto me intrigou e encantou.

A questão é interpretação, ir além, saber distinguir a brincadeira da filosofia. Pode parecer banal, mas do que tem de cômico Scoop também é filosófico, tentador, multifacetado. É complexo, apesar das aparências. A começar pela linha tênue que separa a comédia do suspense, e que facilmente pode confundir a cabeça do espectador. Woody monta uma trama obscura, a de um serial killer à solta e uma estudante de jornalismo que, durante uma apresentação de mágica, encontra o espírito de um falecido repórter que quer que ela investigue o paradeiro do jovem filho de um rico lorde, suspeito de ser o "Assassino das Cartas de Tarô". A jovem universitária americana, com a ajuda de Sidney (Splendini, o mágico), vai atrás da história. 

Woody mistura elementos do thriller e da comédia bolando uma surpresa imediatamente estupenda. Cabe ao espectador com qual clima se identificar. Ou seja, nem vale julgar Scoop como uma comédia ou como um suspense propriamente ditos. O filme não é um e nem é outro, mas sim o derivado do mix dois, uma brincadeira ingênua e atrevida do Woody, que solidifica dois gêneros num só. A proposta do diretor é entregar uma experiência que beira o humor e a tragédia, capaz de tanto amedrontar quanto gargalhar o seu público.

Vale rir, vale questionar, vale entrar na história sem medo de ser surpreendido. O bacana é prestar atenção aos detalhes, à maneira como Woody costura a trama e apronta diante dos nossos olhos truques de mágica cinematográficos invencíveis. O que o diretor quis dizer com esse filme que tanto pode ser encarado como despretensioso e sério (ou, de um ângulo mais profano, é despretensioso, porém sério -- ou sério, porém despretensioso). 

Mas Scoop não é um filme ruim. O propício é relaxar e deixar o filme te levar. Woody faz de conta que é Hitchcock e tira sarro das empreitadas de seu suspense gritante e enigmático (embora despretensioso -- viram como é que funciona?), mas ainda sim vai levando ele sem deixar que a sátira tome conta e desvirtue os momentos mais obscuros, suspensos.

A química da "dupla de detetives" Woody Allen e Scarlett Johansson é fabulosa. Os dois funcionam plenamente. Não tem como não se deliciar diante das aventuras impagáveis deles adentro a investigação secreta que eles manejam. As participações de Hugh Jackman e Ian McShane são gloriosas. 

De uma forma mais lúdica, Woody brinca com a morte, ao encenar o repórter Joe Strombel no barco da morte, tentando chantageá-la, típico truque de jornalista, para descobrir o destino. Essa sequência é uma das mais memoráveis do filme. O final também reflete certo otimismo acerca a misteriosa passagem. Scoop é sobre a busca pelo sentido, a tentativa de compreender e codificar os acontecimentos que nos cercam, a consequência dos nossos atos, a intriga, os porquês. O furo jornalístico da estudante Sondra, os truques de mágica de Splendini e a curiosidade sobre o pós-morte que passageiramente instiga Strombel. Todos estão à procura, tentando rastrear as respostas para as suas questões, dando corda à enigmática existência. Também merecem menção, pela construção de uma atmosfera de suspense e constante escuridão tenebrosos, que tanto contribuem para esse lado obscuro do filme, a trilha, que faz uso de composições musicais bem intensas do naipe de "In the Hall of the Mountain King" e um trecho de "Cisne Negro", de Tchaikovsky, que abre o filme brilhantemente e a fotografia de Remi Adefarasin, o mesmo de Match Point.

primeiro post: Scoop: O Grande Furo
Scoop: O Grande Furo (Scoop)
dir. Woody Allen - 

domingo, 3 de abril de 2016

Crítica: "AMOR POR ACIDENTE" (2015) - ★


Não bastasse ter lançado o infame Joy - O Nome do Sucesso, David O. Russell também trouxe ano passado o ainda inédito nos cinemas nacionais Amor por Acidente, que demorou um tempão para ser concluído. O que acontece é que Amor por Acidente, essa descarada comédia romântica mal-feita e sem sentido, é mil vezes pior que o horrível Joy. Não me estranha o David O. Russell ter assinado a direção do filme sob o pseudônimo de Stephen Greene. Quem iria querer assumir um projeto desses? É muita coragem.

Olha só a confusão: consta-se que as filmagens de Amor por Acidente tiveram início em 2008 (sim, há 8 anos). Na época, o título da produção era Nailed. O filme foi refilmado aproximadamente 14 vezes, sendo todas essas 14 vezes cancelado, por complicações com os pagamentos do elenco e da equipe técnica. Dois anos depois, em 2010, um certo produtor pagou para reiniciarem as filmagens de Nailed, mas o Russell naquele ano desistiu de dirigir o filme. Só em 2014 foi que o Russell decidiu voltar com o projeto, depois da insistência de um produtor. O David O. Russell, espertinho como ele é, pediu para o Directors Guild of America renomear os créditos de direção e roteiro dele para Stephen Greene (ou seja, o David aceitou gravar o filme mas renunciou o seu nome diante dele -- e, acreditem, ele fez a coisa certa).

O filme é desnecessariamente frenético e esquálido Me surpreende alguém ter se interessado em produzi-lo. Amor por Acidente conta a história de uma garçonete de uma pequena cidade que, comprometida com um policial "boa-pinta" da região, vai à um encontro com um rapaz, que deseja se casar com ela, e acaba sendo acidentalmente atingida por um prego na cabeça, devido à uma reforma no lugar. Correndo diversos riscos, ela tenta fazer com que o plano cubra a cirurgia, mas o preço é altíssimo e nem o policial tampouco sua família conseguem custear. É aí que ela tem o plano de ir para Washington, onde irá solicitar a um político medidas em relação à assistência médica urgente e à saúde. 

O filme é um monte de nada, nada, nada e nada. Andaram comparando o filme com Huckabees, o que eu acho completamente vergonhoso, já que de semelhantes Huckabees e Amor por Acidente não tem completamente nada. 

No máximo, o elenco tem seus charmes, ainda que poucos. Por mais que eu nutra certa admiração pela atriz Jessica Biel, aqui ela está totalmente fora do eixo, toda enfeiada e insanamente perdida, sem pra onde ir (não entendi se isso faz parte da personagem dela ou se ela estava mesmo desorientada filmando). As participações do Jake Gyllenhaal e da Keener por pouco não passam em branco. Se salvam o Tracy Morgan, com poucas falas e o James Marsden, que faz o policial bonzão Scott. Fora isso, não vi graça em Amor por Acidente. Sem graça, uma baita perda de tempo.

Amor por Acidente (Accidental Love)
dir. Stephen Greene (David O. Russell) - 

Crítica: "AMORES BRUTOS" (2000) - ★★★★★


Chega a ser engraçado ver como o cineasta mexicano Alejandro González Iñárritu foi recebido com uma enxurrada de críticas boas e aclamação internacional com seu filme debut, o excepcional Amores Brutos, e veio minguando desde então aos olhos da crítica, que passaram mais a odiar o trabalho do diretor do que prestigiá-lo. E não que Amores Brutos seja um filme ruim ou superestimado: se formos fazer um ranking, é bem provável que Amores Brutos apareça entre os 3 ou 2 primeiros, talvez, ou quem sabe até em primeiro lugar. O filme me pegou de surpresa. É uma obra-prima incomparável e inestimável. Filme de estreia do Iñárritu, o filme teve uma recepção calorosa no mundo inteiro e recebeu inúmeros prêmios e indicações, muito justamente. É um espetáculo cinematográfico, completamente e absurdamente explosivo, uma obra a ser aplaudida e comemorada. Nunca se viu um filme assim, profundo na sua premissa e autêntico na sua construção e trama. Inesquecível. Imensuravelmente colossal.

A sequência que abre Amores Brutos, uma perseguição confusa e que acaba resultando num acidente de trágicas proporções, é o ponto de partida de uma trama eletrizante envolvendo um disperso grupo de pessoas, interligadas por esse acidente automobilístico, envolvendo uma supermodelo e uma dupla de amigos desesperados em fuga. É uma história sobre redenção, conflito, angústia, niilismo, e, principalmente, sobre amores e cães. Um rapaz cujo cachorro é um fenômeno em lutas de cães em um subúrbio da Cidade do México, sua bela cunhada, por quem ele é apaixonado, e seu irmão desnaturado, marido dela. Um homem que deixa a família por uma modelo, que, após um acidente, revela sua verdadeira personalidade, pondo em teste a agressiva relação deles. Um ex-guerrilheiro libertado após 20 anos na cadeia que trabalha como matador de aluguel e vive como um mendigo, tentando encontrar a jovem filha que nunca o conheceu e reatar com um passado irresolvido. 

Iñárritu dirige fabulosamente este conto moderno multifacetado com uma astúcia excepcional. No que diz respeito à direção, todos os filmes do cineasta são nota 10, mas Amores Brutos é realmente digno de nota 1.000. A estrutura é recheada de qualidades, que vão desde a fotografia inspirada de Rodrigo Prieto até a edição miraculosa. Os ângulos irregulares e tortos da câmera dão um gostinho de ação e amadorismo brilhantes ao filme. O roteiro de Guillermo Arriaga é versátil em todos os sentidos, o melhor trabalho roteirístico dele. O desenvolvimento da trama, os personagens, as temáticas que a história abraça... Só tenho elogios para o roteiro de Amores Brutos. O elenco é uma pérola. Todos estão triunfais, mas merecem menção honrosa Gael García Bernal (Octavio), Emilio Echevarría (El Chivo), Vanessa Bauche (Susana) e Goya Toledo (Valeria). Os quatro são os melhores do elenco, devastadoramente estupendos. 

Considerado por muitos o Pulp Fiction do cinema mexicano, Amores Brutos é um filme que dificilmente sai da nossa cabeça tão fácil. Algumas cenas são tão desconcertas que ficam gravadas na nossa memória. Amores Brutos, que é um drama, também guarda elementos do horror, por conta do conteúdo ultra-violento e do impacto transmitido ao espectador. Iñárritu, que filma o sofrimento como ninguém filma, fez de Amores Brutos um dos dramas mais ricos, tristes e desoladores de todos os tempos. É tentador, memorável, exemplar. A filosofia moral que se instala em Amores Brutos funde-se aos brilhos do drama dos personagens e da peripécias do roteiro de Arriaga, que empurra à trama certos pontos de vital importância para a montagem de um pensativo caleidoscópio reflexivo. Amores Brutos também é, inclusive, uma crítica feroz à desigualdade, ao perpetuar em um mesmo acidente de carro pessoas de diferentes classes, uma top model e dois jovens da periferia, que, caso não tivessem colidido, nunca iriam ter a chance de interagir em suas vidas. É uma coisa assombrosa, mas ridiculamente verídica. 

Aliás, o adjetivo "assombroso" define bem Amores Brutos. É um filme no mínimo chocante, intenso, espesso, pesado. Não fui às lágrimas, mas tem certos segmentos, como por exemplo a sequência final e as cenas das brigas caninas, e também a do acidente, que são fortíssimas, emocionalmente carregadas o suficiente para transtornar e perturbar a quem assiste, e até mesmo levar às lágrimas. O clima de tensão e de constante tenebrosidade nos impulsiona a acompanhar com atenção e nervosismo, num sentido de inquietude, o filme, até mesmo em momentos nem tão propícios, onde gera-se uma tensão inebriante, ora boba, ora densa. 

Iñárritu disseca com genialidade a tragédia e a plenitude do sofrimento em Amores Brutos. Há algo de muito humano em Amores Brutos também. O filme intervém a violência de uma maneira bastante rude mas humana. O filme é inteiramente cruel, mas que faz o uso de artifícios violentos para entreter ou divertir o espectador, mas sim para encarar, encurralar, pressionar, realmente emocionar. Dessa forma, a violência se materializa em rígido impacto dramático, ocasionando geralmente a humanidade, a dura reflexão.

E a cada filme que vejo, respeito e endeuso mais e mais Iñárritu. O homem mal quase completou duas décadas de carreira, sequer uma filmografia numerosa, e já beira a maestria, muito justamente. O primeiro filme dele, aliás, é uma das provas mais certeiras e dignas de seu talento e sua unicidade cinematográfica, o estilo, a forma de filmar, os personagens e as tramas sempre instigantes, apreensivas, densas e que despertam a admiração em quem vê. Discutindo a "Trilogia da Morte" do Iñárritu, Amores Brutos só perde em "sofrência" (o que talvez não seja um problema) para 21 Gramas e complexidade para Babel (é lógico!), mas é definitivamente o melhor, mais impactante, profundo e sensível filme não só dentre esses três mencionados, mas talvez de toda a filmografia do Iñárritu. Amores Brutos é magnífico, poderoso, doloroso, mais que uma obra, um filme para não se esquecer jamais. Sua força é comovente.

Amores Brutos (Amores perros)
dir. Alejandro González Iñárritu -