Chega a ser engraçado ver como o cineasta mexicano Alejandro González Iñárritu foi recebido com uma enxurrada de críticas boas e aclamação internacional com seu filme debut, o excepcional Amores Brutos, e veio minguando desde então aos olhos da crítica, que passaram mais a odiar o trabalho do diretor do que prestigiá-lo. E não que Amores Brutos seja um filme ruim ou superestimado: se formos fazer um ranking, é bem provável que Amores Brutos apareça entre os 3 ou 2 primeiros, talvez, ou quem sabe até em primeiro lugar. O filme me pegou de surpresa. É uma obra-prima incomparável e inestimável. Filme de estreia do Iñárritu, o filme teve uma recepção calorosa no mundo inteiro e recebeu inúmeros prêmios e indicações, muito justamente. É um espetáculo cinematográfico, completamente e absurdamente explosivo, uma obra a ser aplaudida e comemorada. Nunca se viu um filme assim, profundo na sua premissa e autêntico na sua construção e trama. Inesquecível. Imensuravelmente colossal.
A sequência que abre Amores Brutos, uma perseguição confusa e que acaba resultando num acidente de trágicas proporções, é o ponto de partida de uma trama eletrizante envolvendo um disperso grupo de pessoas, interligadas por esse acidente automobilístico, envolvendo uma supermodelo e uma dupla de amigos desesperados em fuga. É uma história sobre redenção, conflito, angústia, niilismo, e, principalmente, sobre amores e cães. Um rapaz cujo cachorro é um fenômeno em lutas de cães em um subúrbio da Cidade do México, sua bela cunhada, por quem ele é apaixonado, e seu irmão desnaturado, marido dela. Um homem que deixa a família por uma modelo, que, após um acidente, revela sua verdadeira personalidade, pondo em teste a agressiva relação deles. Um ex-guerrilheiro libertado após 20 anos na cadeia que trabalha como matador de aluguel e vive como um mendigo, tentando encontrar a jovem filha que nunca o conheceu e reatar com um passado irresolvido.
Iñárritu dirige fabulosamente este conto moderno multifacetado com uma astúcia excepcional. No que diz respeito à direção, todos os filmes do cineasta são nota 10, mas Amores Brutos é realmente digno de nota 1.000. A estrutura é recheada de qualidades, que vão desde a fotografia inspirada de Rodrigo Prieto até a edição miraculosa. Os ângulos irregulares e tortos da câmera dão um gostinho de ação e amadorismo brilhantes ao filme. O roteiro de Guillermo Arriaga é versátil em todos os sentidos, o melhor trabalho roteirístico dele. O desenvolvimento da trama, os personagens, as temáticas que a história abraça... Só tenho elogios para o roteiro de Amores Brutos. O elenco é uma pérola. Todos estão triunfais, mas merecem menção honrosa Gael García Bernal (Octavio), Emilio Echevarría (El Chivo), Vanessa Bauche (Susana) e Goya Toledo (Valeria). Os quatro são os melhores do elenco, devastadoramente estupendos.
Considerado por muitos o Pulp Fiction do cinema mexicano, Amores Brutos é um filme que dificilmente sai da nossa cabeça tão fácil. Algumas cenas são tão desconcertas que ficam gravadas na nossa memória. Amores Brutos, que é um drama, também guarda elementos do horror, por conta do conteúdo ultra-violento e do impacto transmitido ao espectador. Iñárritu, que filma o sofrimento como ninguém filma, fez de Amores Brutos um dos dramas mais ricos, tristes e desoladores de todos os tempos. É tentador, memorável, exemplar. A filosofia moral que se instala em Amores Brutos funde-se aos brilhos do drama dos personagens e da peripécias do roteiro de Arriaga, que empurra à trama certos pontos de vital importância para a montagem de um pensativo caleidoscópio reflexivo. Amores Brutos também é, inclusive, uma crítica feroz à desigualdade, ao perpetuar em um mesmo acidente de carro pessoas de diferentes classes, uma top model e dois jovens da periferia, que, caso não tivessem colidido, nunca iriam ter a chance de interagir em suas vidas. É uma coisa assombrosa, mas ridiculamente verídica.
Aliás, o adjetivo "assombroso" define bem Amores Brutos. É um filme no mínimo chocante, intenso, espesso, pesado. Não fui às lágrimas, mas tem certos segmentos, como por exemplo a sequência final e as cenas das brigas caninas, e também a do acidente, que são fortíssimas, emocionalmente carregadas o suficiente para transtornar e perturbar a quem assiste, e até mesmo levar às lágrimas. O clima de tensão e de constante tenebrosidade nos impulsiona a acompanhar com atenção e nervosismo, num sentido de inquietude, o filme, até mesmo em momentos nem tão propícios, onde gera-se uma tensão inebriante, ora boba, ora densa.
Iñárritu disseca com genialidade a tragédia e a plenitude do sofrimento em Amores Brutos. Há algo de muito humano em Amores Brutos também. O filme intervém a violência de uma maneira bastante rude mas humana. O filme é inteiramente cruel, mas que faz o uso de artifícios violentos para entreter ou divertir o espectador, mas sim para encarar, encurralar, pressionar, realmente emocionar. Dessa forma, a violência se materializa em rígido impacto dramático, ocasionando geralmente a humanidade, a dura reflexão.
E a cada filme que vejo, respeito e endeuso mais e mais Iñárritu. O homem mal quase completou duas décadas de carreira, sequer uma filmografia numerosa, e já beira a maestria, muito justamente. O primeiro filme dele, aliás, é uma das provas mais certeiras e dignas de seu talento e sua unicidade cinematográfica, o estilo, a forma de filmar, os personagens e as tramas sempre instigantes, apreensivas, densas e que despertam a admiração em quem vê. Discutindo a "Trilogia da Morte" do Iñárritu, Amores Brutos só perde em "sofrência" (o que talvez não seja um problema) para 21 Gramas e complexidade para Babel (é lógico!), mas é definitivamente o melhor, mais impactante, profundo e sensível filme não só dentre esses três mencionados, mas talvez de toda a filmografia do Iñárritu. Amores Brutos é magnífico, poderoso, doloroso, mais que uma obra, um filme para não se esquecer jamais. Sua força é comovente.
Amores Brutos (Amores perros)
dir. Alejandro González Iñárritu - ★★★★★
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