Em Império dos Sonhos, havia uma ou duas sequências retiradas de Rabbits, misturadas ao filme, que em si é a reunião de curtas-metragem do Lynch (com alguma coincidência entre eles). Desde então, meu interesse em conferir esse projeto do diretor, que inicialmente foi designado como uma minissérie de 8 episódios, aumentou. Na verdade, a versão "curta-metragem", que tem 42 minutos, são os 8 episódios juntos. Rabbits foi lançado nesse formato de minissérie no site do cineasta (hoje não está mais disponível, infelizmente), e logo depois foi disponibilizado em DVD como um curta, que é a versão mais encontrada hoje em dia do trabalho.
Ainda nessa semana, assisti Cidade dos Sonhos e fiquei profundamente maravilhado pela obra. Foi hoje que me veio a ideia de assistir Rabbits. E olha que não foi tão difícil achar o filme. Encontrei um link em torrent, e em menos de 20 minutos o download foi efetivado. Eu estava planejando vê-lo mais tarde, à noite, mas não aguentei a ansiedade e logo coloquei o curta pra rodar. Fiquei abismado, sem chão. O curta tem umas cenas de deixar qualquer um aterrorizado. E mesmo de dia, é de deixar a gente realmente perturbado. Ainda sim, pretendo revê-lo à noite. Dizem que o medo e o choque é ainda maior se vermos no escuro e no silêncio da madrugada.
A sinopse é a seguinte: "numa cidade sem nome amaldiçoada por uma chuva contínua, três coelhos vivem com um mistério aterrorizante". O curta todo se passa num só cenário, um quarto, que está mais para uma sala, onde temos a Naomi Watts e a Laura Elena Harring, as belíssimas estrelas de Cidade dos Sonhos, fantasiadas de coelhas, e o ator Scott Coffey, também do elenco de Cidade dos Sonhos, fantasiado de coelho. Há também a Rebekah del Rio, que fazia aquela cantora do Club Silencio, que cantava aquela canção estremecedora que me deixou extasiado e comovido, "Llorando" (acreditam que a música é original do filme?) na de longa melhor cena do filme e uma das melhores e maiores que eu já vi na minha vida. Em Rabbits ela não canta, mas a presença dela é amedrontadora, sem falar naquela voz icônica e inebriante dela que faz qualquer um ficar eletrizado.
A câmera não muda de movimento, exceto por um único momento, e que não dura mais de segundos, que é quando a câmera foca num telefone que começa a tocar, perto do fim. Dá a impressão de que o curta faz referências à programas sitcom por conta das risadas, como se houvesse um público assistindo àquilo, o que é bastante comum nas produções sitcom norte-americanas, e também por conta de momentos onde um certo personagem-coelho entra e é ovacionado em off. Bem bizarro.
Também há uma baita falta de nexo entre as falas dos personagens, como se fossem diálogos picotados, entrecortados ou até mesmo misturados, sabe? Acho que isso era bastante notório na inclusão da sequência em Império dos Sonhos (a falta de sentido nos diálogos entre os coelhos -- dá a impressão de que faz sentido para eles, do jeito que eles falam como se as falas, que pra gente soam sem sentido, são completas).
Há várias riquíssimas teorias e interpretações para o complexo e sombrio contexto de Rabbits atribuídos pelos espectadores e fãs de Lynch. Alguns dizem que os coelhos na verdade são almas de humanos que encarnaram em coelhos e que estão confinados numa espécie de Purgatório, enquanto outros dizem que os coelhos são na verdade brinquedos de uma criança, enquanto outros simplesmente contestam que o curta nada mais é que uma crítica à cultura pop moderna e ao universo do entretenimento, e também à televisão norte-americana, como se fosse uma alfinetada aos programas sitcom e reality show, que geralmente são providos desse formato.
Vi o curta com a Ana Paula, minha prima, que já tinha visto um pedaço de Império dos Sonhos comigo e que ao bater o olho identificou os coelhos de Rabbits da sequência do filme. Pra ela, os coelhos testemunharam um crime, assassinato, ou algo do tipo, o que não deixa de ser uma possibilidade, do jeito que as falas dão mesmo para algo tão obscuro como um crime.
Seria esse mais um pesadelo de horror fabricado pela mente Lynchiana sobre os nossos medos mais cruéis e nosso imaginário sombrio? Fica no ar esse intrigante desafio do diretor, que nos faz questionar e pensar a fundo as mil e uma possibilidades que o curta de pouco mais de 40 minutos oferece e se encaixa. No entanto, dos méritos de Rabbits sobressaem-se os de nos estranhar, nos intrigar e nos assombrar com uma ferocidade avassaladora e de tirar o sono. Além do mais, por conta das teorias e desses contextos estranhíssimos e de seu formato, Rabbits também não deixa de ser um tanto interessante, antes (pra quem viu Império dos Sonhos primeiro e ficou fascinado pela cena incluída) e depois da sessão.
Rabbits
dir. David Lynch - ★★★★★
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