sábado, 6 de novembro de 2021

Întregalde

Não se espantem com o ritmo de Întregalde, principalmente lá pela metade. Trata-se de um filme conciso e muito bem costurado, que se concentra numa viagem por uma vila, com pouquíssimos personagens, para fazer um comentário bem preciso e pontual. Não há muita ação, e às vezes nem muito movimento, mas a narrativa guarda a profundidade de um olhar à espreita. Quer-se mostrar o quanto a solidariedade dos personagens acaba maquiando o distanciamento a quem ela é dirigida. O intuito humanitário do grupo logo acaba revelando a falta de comunicação real entre ele e o público a que ele se destina. Mas engraçado é que o filme não deixa de ser bem-humorado, cômico, ao mostrar brechas na comunicação, falhas na interação real. A crítica está na veia cômica da situação, na ironia de um interior retraído, abandonado, sem valor, e a coletivização do que é exterior, do que vem de fora. (dir. Radu Munteau, 2021, Romênia)

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Undine

Petzold faz uma bela transposição mitológica no sensível Undine, que namora com o místico, e traça um interessante paralelo com trabalhos anteriores do alemão, evidenciando a madureza do seu estilo já consolidado, e um retorno grato a uma aura mais hitchcockiana, na veia dos melhores trabalhos dele, vide Phoenix e Jericó. Em resumo, é um trabalho muito seguro de um diretor que parece estar bastante confortável no domínio da abordagem e da condução, aqui optando por novos respiros, mas ainda sim fiel às suas dinâmicas. Beer vai se confirmando tão digna de ser uma musa como a Hoss. 

sábado, 30 de outubro de 2021

Azor

Em Azor, é bem pontual aquilo que transmite o medo e a tensão gerados pela ferrenha ditadura militar na Argentina. Nesta trama, esse medo só é sentido de forma muito contida, em conversas sussurradas, em trocas de olhares, telefonemas, menções a pessoas. O terror fica à espreita, velado. O que está no centro do filme é o mundo de negociações, acordos, conversas e sugestões que acontecem nas entrelinhas de uma Argentina mergulhada no brutal. Azor não quer esclarecer muita coisa. Mas ele sabe para quem quer olhar. O que acontece aqui é o estabelecimento de um suspense distorcido, fantasmagórico, onde até mesmo os fantasmas são silenciados. É poderoso enquanto um filme que está muito atento aos silêncios, preciso na sua discrição. Muito sinistro ao dar conta de vozear o que está sendo silenciado, tentando ser apagado. Um filme de terror mesmo, praticamente. 

Ahed's Knee

Mais raivoso que Sinônimos, tão interessantemente fluído como ele. Lapid continua destrinchando a nacionalidade israelense, indo fundo no seu questionamento enlouquecido da identidade por trás de sua nação, tecendo uma reflexão sobre o pertencimento a um país de muitas contradições e conflitos. Não está muito longe do espírito indignado de Sinônimos, mas é muito diferente dele, na provocação, no modo como o diretor parece expressar que a raiva está no limite, uma panela de pressão pronta pra explodir, no modo como ele se volta pro próprio cinema. Isso gerou um filme incomodado, incisivo, embriagado de um certo ódio e também de melancolia. Mas é apenas a continuação da crônica desse diretor dos seus sentimentos complicadíssimos em relação à sua pátria. Para retratar esses sentimentos, Lapid se permite experimentar, quebrar regras, ir nas direções que ele bem quer. É um grito de revolta em forma de filme, enérgico na sua retórica e sentimental ao ser particular, íntimo até. Ahed's Knee vai de encontro ao particular, porque quer que isso se choque contra o que ele acusa: a privação e o peso de Israel. É um filme objetivo nos seus motivos. Mas também, de certa forma, consegue ser tenro, por nos fazer enxergar todo aquele caos, o homem e o país em conflito, com outros olhos. 

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Sr. Bachmann e Seus Alunos


É com muita sensibilidade que Sr. Bachmann e Seus Alunos acompanha a rotina de um grupo de alunos e um professor numa cidade industrial da Alemanha, fazendo um exercício muito saudável de observação das interações que surgem dentro daquele ambiente. É também do seu interesse captar as tensões étnicas e sociais daquele grupo de pessoas, tecendo um comentário importante voltado para a atual tensão da imigração na Europa, para as diferenças que se fazem presentes dentro do grupo, pensando bem as situações e os temas envolvidos, partindo do registro para fazer uma reflexão mais profunda sobre a escola, a identidade e seu poder catalisador, o estabelecimento da convivência num cenário em que culturas diferentes dialogam, o amadurecimento, entre outras coisas. É também um filme que, mais intimamente, reflete a figura do professor, o sr. Bachmann, enquanto participante muito ativo dos processos dentro da escola, um ser atento à integridade e ao bem-estar daqueles alunos. O filme dá espaço para as preocupações e esforços desse agente, dando conta de expressar a essência da profissão e suas muitas responsabilidades, mas especialmente aquela de tornar um lugar mais saudável para as relações se estabelecerem, mediação dos conflitos, diálogo, discussão de questões relevantes. Sr. Bachmann e Seus Alunos é muito competente como um registro dos mais diversos acontecimentos da rotina escolar, porém vai longe ao se permitir construir uma visão muito interessante sobre essa conversação entre professor e aluno, sobre as dificuldades de fazer dois mundos diferentes se conversarem, e no fundo tece, aí, uma mensagem muito mais universal, para além da sala de aula. Porém, novamente, é sua delicadeza ao percorrer esses temas que faz com que ele se sobressaia, e dentro desse subgênero dos voltados pra educação, é um desses que merecem atenção especial.

domingo, 24 de outubro de 2021

Pegando a Estrada

Filme de estréia do filho do Jafar Panahi, Panah. É um filme bem-vindo no sentido de ele conseguir dar conta de sentimentos bem específicos, que às vezes outro filme abordaria indo em outras direções, tentando ser mais expansivo, mas aqui funciona bem nesse formato de road movie mais íntimo, isolado. Ele tem esse interesse por cenas em que as músicas tem bastante expressividade, na assertividade passada pelos atores, nos diálogos bem-humorados. De alguma forma, ele não consegue passar batido, não é um filme raso de maneira alguma. A ida do filho ao exterior mexe com uma estrutura mais particular (a família, os pais que assistem esse filho deixar o país) na mesma medida que reflete sentimentos muito próprios de uma nacionalidade inteira (o deslocamento, a ruptura), ambos parecem se confundir aqui. 

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Jovem Mulher (2017)

O jeito como esse filme abraça a cativante protagonista por si só já faz ele valer a pena. Uma defesa muito alegre da espontaneidade dessa "jovem mulher". Dosch é o carro-chefe do filme, óbvio, e ela está ótima. É quando o filme abre espaço para observar as interações de Paula com os outros que vemos a sensibilidade de seu olhar, cômico, melancólico, tão fora da casinha quanto a protagonista. 

Nas Garras do Vício (1958)

É com um sentimento de coração partido que se assiste à trajetória de Serge, o motorista do caminhão que passa a maior parte do tempo bêbado, arrumando encrenca, um homem magoado e decepcionado, que espelha suas feridas interiores em atitudes autodestrutivas, o torna quase insuportável. A volta de um amigo de longo tempo só irá perturbá-lo ainda mais. A mulher está grávida, porém até a gravidez o deixa com desesperança, e isso se reflete no tratamento dele para com ela, que aceita em silêncio sua infidelidade, que atura sua indiferença. O cotidiano provinciano só é suportado com a ajuda do álcool. Há todo um suspense em cima da instabilidade de Serge e da compaixão de François, o amigo movido a ajudá-lo de todo jeito, mas é um suspense muito mais focado no estudo de comportamentos ao invés de uma determinada situação em si. O foco está no efeito que cada personagem tem sobre o outro. Um filme compreensivo em expor como os traumas são normalizados, transformados em banal. É quase como se fosse um segredo que Serge conta a François, um segredo da vida ali, ao comentar sobre a menina que ficou vulnerável a essa "normalidade". Uma das cenas mais expressivas de um filme tão atencioso a essa relação entre as dores que se internalizam, e as que se provocam.

Soul (2020)

Não é segredo que a Pixar faz animações muito populares para as crianças, geralmente lidando com temáticas universais para todas as idades, não apenas destinadas a esse público em específico. E Soul é talvez o filme do estúdio que mais possa ser lido como voltado mais ao público adulto que ao infantil, muito embora seja apenas uma presunção, porque o filme ainda sim é cativante e interessante às crianças, e há tantos outros filmes seus que assimilam uma mensagem mais universal, dirigida a qualquer pessoa de qualquer idade, sem desviar o foco desse público em específico. Poderiam haver riscos, mas a história é tratada com tamanha inventividade, que se passa por temas existencialistas, reflexões e questões bem mais adultas do que infantis, sem que se perca um equilíbrio, que rege o filme e permite que ele respire. É verdade que o filme parece reciclar ideias que já são praticamente familiares aos filmes da Pixar, mas o diferencial é que ele realmente está seguro do que quer transmitir, seguro dessa entrega a uma série de inovações e abordagens, e a competência dele é construir algo que não é nem muito sério e nem muito infantilizado, e está longe dessas duas definições. É um conto universal e existencialista. É uma viagem, no melhor sentido, e um abraço da vida. É muito bom ver os lugares aos quais a Pixar está se permitindo chegar.

Diários de Otsoga (2021)

A trilha é fantástica e Diários de Otsoga é uma experiência bem casual, leve, de uma filmagem que não deu certo na pandemia e seguiu uma direção diferente daquela prevista. É um filme que brinca com esse conceito de ser rodado em meio a restrições, na face de um evento sem precedentes e que acaba atrapalhando muitos dos planos e das intenções dos envolvidos. Mas a surpresa dele é que ele acaba funcionando sem precisar ir muito longe, sem ir fundo demais nesse contexto pandêmico, mas sim lidando com o que vai surgindo e deixando que o filme vá apenas absorvendo isso. Mas, logicamente, é um filme com um gosto bem particular, íntimo, e bem descontraído, como se tivesse sido feito para ser visto dessa maneira, "descontraidamente".

Pedregulhos (2021)

O andamento desse filme é muito expressivo, com muito pouco até. Ele faz as escolhas certas e trabalha muitíssimo bem esse andamento, pacífico, mas de certa forma muito ágil. Na trama, a relação de um pai (alcoólatra, explosivo) e filho ao longo de uma tarde muito quente, andando entre vilarejos. A maneira como ele se desenha a partir de sensações específicas (o deserto árido, as caminhadas) projetadas por suas imagens, a precariedade dos diálogos verbais, é também um indicador dessa atenção às imagens, a um contar de histórias baseado na expressividade da linguagem do filme. É árido, seco, ao capturar todas as tensões e a precariedade do contato, mas parece ser um filme que sempre busca por algo a mais, um completar, no meio disso tudo.

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

A Mão / The Hand

Lindo curta do Wong Kar-Wai, com seu estilo habitual de sempre, um trabalho muito sutil com as cores e a luz, muito prazeroso de se ver, surpreendente porque parece ser muito mais descontraído que seus melhores trabalhos, e o resultado ainda sim remete ao que esses trabalhos - e seu estilo - tem de melhor e mais sensível, até um pouco irônico na sua dramatização de um atípico caso de amor. Não há muito de novo pra quem já conhece Kar-Wai, o que conta aqui é o tratamento que o curta recebe. A comparação com Amor à Flor da Pele é inevitável: A Mão está na sombra dele. 

terça-feira, 5 de outubro de 2021

Roma, Cidade Aberta

Desolador. É um filme carregado de esperança, sim, ao acompanhar os personagens cujas vidas é dilacerada pela guerra, mas é essencialmente um retrato arrasador da brutalidade e da irracionalidade daquela guerra, da sua violência injustificável. Para dar conta da desumanidade, Rossellini olha para a perseverança das vítimas dela, sem nunca se esquecer de fazer um filme de guerra, mostrando o que ela realmente é: é necessário um filme doloroso para retratar uma guerra dolorosa. E, ao mesmo tempo, ser fiel à lealdade daqueles personagens, cujo único poder era o de resistir. Roma, Cidade Aberta é dilacerante, necessariamente dilacerante, mas também se trata de uma obra muito humana. 

terça-feira, 28 de setembro de 2021

A Inglesa e o Duque

Interessante e fervoroso retrato de personagens de uma época testemunhando mudanças políticas e sociais profundas, o embate entre os jacobinos e membros da aristocracia pró-monarquia no cenário da Revolução, sob a visão de uma amiga próxima de um duque (Grace).

Transparente, muito vívido e concentrado nas minúcias históricas, é um filme que tem um olhar épico sincero e transparente. Preza pela inimputabilidade das figuras e pelas contradições da ebulição política do momento, pintando a Revolução ora como um levante patriótico de liberdade e progresso, ora como um capítulo violento e sombrio, com tons de terror e perseguição.

Sua narrativa consegue valorizar o conflito sem precisar reduzir nada a nada. Rohmer está, ademais, interessado no exercício formal de um então ainda pouco explorado cinema digital. O resultado é no mínimo admirável, e o maior mérito do longa é aproveitar as possibilidades de contemplação histórica através do formato, um digital ainda rarefeito, buscando uma construção estética mais palpável, recriando o ambiente de quadros da época e reproduzindo o sentimento da época em si.

A Inglesa e o Duque sublinha a crescente tensão entre aquelas personagens e em como a presença delas acaba tendo algum peso político na Revolução. À parte do contundente registro histórico que ele faz, reflexivo acerca da dimensão dessa História, Rohmer tem um olhar sensível para os dramas da sua protagonista.


segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Annette

Annette é performático por natureza. Muito de sua força se alça no empenho de seus atores. Há um esforço para não ser caricato, ou pelo menos para destrinchar sua aura caricata. E o que acontece é um filme tanto incômodo (irritante) no seu espetáculo, quanto muito seguro dessa sua força estranha que reside por trás desse espetáculo todo. A melhor parte do filme parece ser mesmo seu desfecho, sensível, que sela a sinceridade das suas propostas, a entrega dos atores, e até mesmo sua artificialidade ganha um outro sentido. 

Sacro GRA

Do que ele tem de mais banal, tem de extremamente interessante, circulando por aquela estrada e pelas vidas das pessoas, dos seus transeuntes. Sua sutileza é, na verdade, recheada de nuances e contrastes, ainda que ínfimos, mas muito bem dispostos. Rosi faz um registro da vida simplesmente pelo exercício do registro, coletando personagens e deixando o documentário respirar com eles. Orgânico, que provoca um interesse pleno, puro até, ressaltando a força norteadora e intimista do gênero documental, que parece ser um cinema completo até mesmo no seu estado mais despido. 

A Corner in Wheat

Um clássico praticamente atemporal de Griffith (um dos "fundadores" do cinema americano), A Corner in Wheat foi revolucionário em termos de cinema. Em especial pelo trabalho de edição, que dá ao curta uma noção de sequência muito bem configurada na sucessão das cenas e dos acontecimentos da história, conferindo um sentido de simultaneidade à narrativa. Estilisticamente, é um filme definidor, e narrativamente, traz uma inflexão crítica dos efeitos de uma crise econômica, contrapondo, num "efeito dominó", cenas de pompa e miséria. É de uma importância sem igual. 

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Taxi Driver

Revista, essa que é uma das obras definitivas do Scorsese (e do Schrader). Raivoso, carregado de tensão e de um sentimento crescente de revolta e angústia para com aquela cidade e aquele mundo, seu protagonista imerso num estado de "sonambulismo paranoico", que acaba por jogar uma luz em cima dos acontecimentos do submundo de Nova York à noite, a violência, a instabilidade, a "sujeira", e eleições como coadjuvante. Taxi Driver desfila pelo absurdo que cerca o protagonista, um absurdo com o qual ele tem uma identificação profunda. Há uma tentativa dramática de Travis de transformar esse absurdo que tanto o incomoda. E há nessa busca um misto de melancolia com amargura, uma ternura que se esconde por trás de um homem em conflito, moldado pelo caos. Uma obra definidora de época, sim, mas principalmente que capta uma série de conflitos naquelas vidas, e o faz de forma tão compreensiva quanto drástica, revoltante, pulsante. O que sobra é a sensibilidade.

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Fargo

Terceira revisão. Os Coen habilidosos em destrinchar a linha tênue entre o absurdo e o banal, criando esse conto bizarro, mas ao mesmo tempo totalmente crível, do espiral de violência que se desdobra a partir de um crime (inicialmente falso) com consequências drásticas para praticamente todos os envolvidos - e a policial (McDormand, fenomenal) que resolve a situação. A ironia deste filme, coberto de imprevisibilidade, e também seu choque, porque revisto ainda é uma explosão, no sentido de ser um filme que ecoa, tem seu valor. É claro, não deve ser algo que se estende apenas a este filme, mas as revisões são muito produtivas pra um filme, do ponto de vista do espectador. 

quinta-feira, 10 de junho de 2021

Uma Cidade Chamada Pânico

Que filme mais delicioso. Essa graça estranha dele na verdade é muito aconchegante, quando você se deixa levar pelo seu senso de humor fora da casinha. É um filme feliz nas suas presepadas, até porque parece que sua intenção é de brincar mesmo, ou que a gente se deixe levar pelas brincadeiras que ele faz. Desde as situações meio insanas até as piadas que surgem nos diálogos, a diversão vem de uma série de eventos caóticos e da euforia dos personagens. Um exemplar que é pra ser comemorado num gênero cujo pecado geralmente é confundir inventividade com convencionalidade. Esse aqui tem criatividade de sobra. E é divertido demais.

Panique au Village
Stéphane Aubier & Vincent Patar
Bélgica, 2009

sábado, 5 de junho de 2021

Drive

Uma revisão foi muito bem-vinda a Drive. Não me lembrava como ele conseguia equilibrar tão bem sensibilidade e adrenalina, destacando o tratamento ímpar que o romance entre os personagens do Ryan e da Carey ganha, com sentimento e honestidade. O resultado é belo. A ação funciona e se apresenta em diversas camadas, não atrapalhando as escolhas que o filme toma para contar tanto a história daquele amor, como de toda a violência ao redor dele, e o emblema que divide o protagonista, as pessoas que ele ama, as pessoas que cruzam seu caminho. Drive tem euforia, mostra que é possível fazer tanto ação quanto um filme mais particular sem chegar aos limites para impressionar. O que move o filme, entretanto, é a delicadeza com a qual ele mostra aquele motorista fechado e solitário se abrindo, abrandando a dureza que usa de figurino, ao entrar em contato com o amor. E como aqueles universos se misturam.

Mesmo sendo tão enfático nas consequências desse amor, resta ainda algo de contido, como se fosse um segredo. E acho que o filme vai tentando, em sua extensão, desvendar isso, do seu jeito. Com agressividade, amorosidade, tensão, torpor. E com muita delicadeza, parte dessa delicadeza escondida, velada, nunca exposta por completo. Talvez isso explique sua beleza, de nos instigar a ir atrás do que se esconde por trás desses personagens - e mais especificamente do motorista. Conto da solidão desse homem, e ao mesmo tempo do seu abrir pro mundo, da descoberta do seu herói interior. 

Nicolas Winding Refn
EUA, 2011

sábado, 29 de maio de 2021

Mangrove / Lovers Rock


MANGROVE é necessário. Pela indignação, mas sobretudo por seu retrato poderoso do descontentamento contra a parcialidade, e o semeio da luta pela afirmação, defesa da identidade, do ser, através da afirmação do espaço. Identidade, aliás, que as autoridades investem em reprimir. É um exemplar ativista, nada contido, da movimentação por justiça, pulsando raiva, mas também entendendo o que move seus personagens, dando um tratamento muito honesto a eles num filme cercado por pretensões bem definidas. McQueen encontra espaço tanto para um quanto para outro. Um filme feito para esses tempos, com uma urgência que transmite bem essa indignação, mas não se impregna dela. Ele quer encontrar lugar pra respirar, e o filme nunca deixa de passar essa mensagem, de reafirmar o que a luta é sobre. 

Já LOVERS ROCK se inclina para o romance, a música, a nostalgia, os detalhes de uma noite de festa, um "baile", regado a reggae, movimento e muito amor. Se MANGROVE pulsa a energia da revolta, LOVERS ROCK pulsa muitas energias diferentes, afetuosas, rítmicas, corporais, espaciais. O filme é movido por isso, lembrando que ele gira em torno de um único dia, mais especificamente a noite desse dia, e extrai dele toda uma gama de emoções bastante ricas e particulares. É um conto de amor, conto de expurgação, conto de convergência, conto do corpo e da mente também, da dança, da musicalidade. Sempre exalando essa intensidade que é toda dele, meio que convida o espectador a se tornar íntimo dela. Provavelmente seja a melhor coisa que o Steve McQueen já fez, porque como cinema é muito verdadeiro em sua fluência, na força desprendida das sequências. Nos dois filmes, os atores dominam a cena. Ambos fazem parte da antologia SMALL AXE.

Small Axe (ep. 1 & 2)
Steve McQueen
Reino Unido, 2020

sexta-feira, 28 de maio de 2021

Antiga Alegria


Antes de fazer o belo WENDY E LUCY, Reichardt foi explorar a retirada de dois amigos para a natureza, um programa pra sair um pouco da rotina da cidade e das obrigações adultas. O contato com a natureza traz à tona a intimidade dos dois amigos, que começam a pesar o andamento de suas vidas, um está prestes a se tornar pai, o outro vai se mostrando, de algum modo, aturdido pela paternidade do amigo, mas de um jeito muito compassivo e discreto. Reichardt vai permitindo que as paisagens que servem de cenário, o diálogo entre os dois atores e a trilha, de uma ternura agridoce, preencham ANTIGA ALEGRIA com vida. Observa-se os desdobramentos do encontro, cheio de significado, e do quanto ele tem a dizer sobre a amizade daqueles dois homens. A cidade, a natureza, o isolamento, a coexistência urbana, as palavras, o filho, a parceria. Os pequenos contrastes contrastam com a particularidade da amizade, que é o grande tema do filme. O resultado é um filme que acerta em cada movimento, uma das primeiras provas das habilidades de sua diretora em tratar da vida, do comum, como fonte do cinematográfico.

Old Joy
Kelly Reichardt
EUA, 2006

No Tempo das Diligências


Um filme que, por instinto, é fundador. A viagem de diligência dos personagens, incumbidos a atravessar uma turbulência no meio da viagem, com o ataque dos apaches, mas também as próprias turbulências da interação entre eles, é costurada com muita vivacidade pelo John Ford. Cada cena se supera, nada está fora do lugar. NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS parece que descobre a grandeza do cinema dentro de suas próprias maquinações. Ele usufrui de técnicas riquíssimas, respeita a importância da narrativa, é fascinante, encantador mesmo, toda a coleção de lindas cenas, e a maneira como se filma, com uma grandiosidade natural, está ali nos lembrando as possibilidades do western. Gosto de como ele se torna uma pequena parábola das convulsões que ele testemunha e como sua premissa é, no fundo, bastante simples, mas muitíssimo bem trabalhada. Gostaria de ter mais palavras, talvez até venha a ter, mas é isso, é de uma beleza...

Stagecoach
John Ford
EUA, 1939

A Regra do Jogo


Lançado às vesperas da 2ª Guerra Mundial, eis um filme que quis dialogar com o seu tempo mostrando as contradições de uma sociedade e de relações marcadas por regras sociais e pela fragilidade do status. Ao mesmo tempo, ele consegue ser honesto ao falar sobre as emoções de seus personagens, íntimo até. É tido como um dos grandes clássicos do cinema, e de seu diretor, Renoir, essa crônica contundente de um capítulo marcante, trágico da História e a convergência de diferentes relações interpessoais e amorosas em uma reunião burguesa marcada por desavenças, confissões, conciliações, revoltas sentimentais e intrigas. O filme é dotado de uma delicadeza que aproxima o espectador dos retratados, sendo ora cômico, romântico, violento e amargo. Deixa a gente com um sentimento estranho, mas ao mesmo tempo um sentimento de proximidade, de certa forma. Também o engrandece mais ainda seus atores, com interpretações gigantes vindo de todos os lados. Trata-se de um exemplar importantíssimo de cinema em uma época que o mundo beirava transformações sociais e políticas estremecedoras, e isso começava a se refletir até nas mais "simples" das relações pessoais, cuja aparente normalidade foi chacoalhada, sacudida. 

La Règle du Jeu
Jean Renoir
França, 1939

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Escondida


O canto que tentaram sufocar. Jafar Panahi volta ao ideário do seu filme anterior [3 FACES] para compor uma alegoria similar, um reforço ao que ele tinha trabalhado nele: é um clamor por resistir diante das barreiras. Ele acha um jeito muito bonito de filmar a dor de viver cercado das imposições e de ter sua voz calada, sejam por motivações de ordem política, social ou religiosa. Que bom que a gente ouviu essa voz aqui, e que bom que o cinema dele continua empenhado em mediar a resistência e o resgate da liberdade. É o que faz até trabalhos menores como esse curta uma verdadeira pérola. O curta integra a antologia CELLES QUI CHANTENT.

Hidden
Jafar Panahi
Irã, 2020

domingo, 23 de maio de 2021

O Encouraçado Potemkin


O nascimento da revolução. É um filme obrigatório porque tem todo esse vigor em torno do cinema que ele faz, dá pra ver que é auto-explicativo porque se diz tanto que se trata de uma obra tão importante. Inspirado em um motim que realmente aconteceu, e o massacre também, "O Encouraçado Potemkin" resgata um episódio revolucionário com paixão e também com euforia, já que ele abraça toda a sequência de eventos, e ao mesmo tempo vai desmascarando a agressividade do desenrolar deles, como tudo vai acontecendo de forma sangrenta e sofrida. O antagonismo entre opressor e oprimido, violência e violado, cada vez que o filme explora esse embate é muito ricamente, usando o máximo que ele pode do cinema pra discorrer em cima dele, com cenas que vão de raivosas a claustrofóbicas. É claro, a cena das escadas é icônica, mas me impressiona muito a força das primeiras partes, do levante no navio, de uma energia que é comovente. Talvez cinema seja isso, uma cena dando lugar à outra, preservando a mesma força, sem depender dela, cada parte da construção dilacerante por si mesma.

Bronenosets Potyomkin
Sergei Eisenstein
Rússia (União Soviética), 1925

sábado, 22 de maio de 2021

Trens Estritamente Vigiados


Fábula da liberdade/descoberta sexual em tempos de autoritarismo e barbárie. O contraste entre a repressão de costumes, o clima de perseguição e a afirmação sexual acontece, mesmo em cenas decisivas, num tom risonho e brincalhão, revelando a surpresa de comédia deliciosa que esse filme é, mesclando cenas cheias de um humor espontâneo com outras cenas carregadas: questões comportamentais, o clima da época e a intimidade das pessoas em estado de sítio. As cenas funcionam com naturalidade, os atores estão ótimos, e o humor, despudorado, é encantador. Sua sutileza em entregar, aliás, cenas que dialogam perfeitamente com suas intenções, com temas que ganham um tratamento simpático e repleto de uma ingenuidade saudável, encanta muitíssimo.

Ostře sledované vlaky
Jiří Menzel
Tchecoslováquia, 1966

Desejo e Reparação


Uma nuance dá lugar à outra, e se estabelece um diálogo entre paralelos: as consequências, e o papel que o destino vai exercer naquelas vidas, à maneira que os personagens vão se invadindo, dentro do desenrolar daquela história em particular, e como dois eventos tão distintos, um de ordem mais pessoal, familiar, o outro extremamente mais coletivo, se confundem, se alinham. É a visão de um acontecimento histórico contada através daquilo que o destino fez interromper, separar. Muito bonita a sua tentativa de incorporar, construir e reconstruir, misturar realidades, tudo de maneira muito delicada, no estilo de um romance escrito mesmo, mas em cinema.

Atonement
Joe Wright
Reino Unido, 2007

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

20 descobertos em 2020

Lista atualizada. 
Título do filme/crédito de direção/ano de realização.
Grandes obras e filmes que, se não são obras, ou chegam perto ou são filmes muito bons.

dez gigantes...
12 Homens E Uma Sentença | Sidney Lumet | 1957
Playtime | Jacques Tati | 1967
O Auto da Compadecida | Guel Arraes | 1999
Minha Adorável Lavanderia | Stephen Frears | 1985
Edifício Master | Eduardo Coutinho | 2002
A Última Noite | Spike Lee | 2002
Amor Bandido | Jeff Nichols | 2012
Reino Animal | David Michôd | 2010
Eu Tu Eles | Andrucha Waddington | 2000
Coisas Belas e Sujas | Stephen Frears | 2002

e mais dez destaques...
Chi-Raq | Spike Lee | 2015
Himizu | Sion Sono | 2011
Narradores de Javé | Eliane Caffé | 2003
Gretchen Filme Estrada | Paschoal Samora, Eliane Brum | 2008
Armadilha do Destino | Roman Polanski | 1966
Essa Pequena É Uma Parada | Peter Bogdanovich | 1972
Mother | Bong Joon-Ho | 2010
Rebobine, Por Favor | Michel Gondry | 2008
Samson & Delilah | Warwick Thornton | 2009
Os Indomáveis | James Mangold | 2007