Em seu longa de estreia, o húngaro Laszlo Nemes (confesso que nunca tinha ouvido falar antes, mesmo) entrega um trabalho fascinante, intrigante e que certamente merece atenção. O longa em questão é Filho de Saul, recente vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, que conquistou a crítica internacional de uns tempos pra cá sem falar na quantidade de prêmios que recebeu, como o Globo de Ouro de Filme Estrangeiro e o Grand Prix de Cannes ano passado. Que filme excepcional, rapaz! Que obra! É uma surpresa sutil e agradabilíssima, um filme único, de natureza perspicaz e austera sensibilidade, comovente a cada instante.
Esqueçam todos aqueles dramalhões do Holocausto, todas aquelas porcarias "épicas" forçadas que são puro desperdício de tempo e de atenção. Aqui está um verdadeiro exemplar de um "filme de Holocausto" (sério mesmo que isso virou um subgênero?), se é que podemos chamar Filho de Saul de "filme de Holocausto". Isto é um filme de verdade. Não há dramalhão, não há exibicionismo, não há apelo em Filho de Saul.
É puramente a jornada do personagem do título, Saul, um judeu húngaro confinado em um campo de concentração alemão, que, para sobreviver, começa a realizar tarefas e pequenos trabalhos para os nazistas dentro de um grupo "especial", o Sonderkommando ("portadores do segredo", pessoal que geralmente realizava o "trabalho pesado" que os nazistas não gostavam de fazer, como enterrar os cadáveres dos prisioneiros, trabalhos médicos, limpeza das câmaras de gás, e etc.). A missão do homem é enterrar o corpo de seu suposto filho, um menino que sobreviveu à câmara de gás, mas logo em seguida foi assassinado. Ele vai à procura de um rabino entre os prisioneiros, quem possa realizar o ritual fúnebre, que demanda certas prioridades.
A câmera tropega, treme, sofre nas costas do protagonista, que vaga pra lá e pra cá, pra cá e pra lá, aflito, desesperado por uma saída, sem saber o que fazer, em choque. Não dá pra evitar, na maior parte do tempo, o interesse, a curiosidade em desvendar cada pequeno fragmento, cada mistério, cada segredo escondido, a tensão pela sobrevivência e pela luta, e a energia nos momentos mais carregados.
A impressão que essa fórmula causa é de que o filme é constante, não para. Embora (nitidamente) existam muitos cortes, no final parece que Filho de Saul foi filmado numa só tomada. Algumas das cenas chegam a ser tão intensas que causa-se um pavor desconcertante, uma tensão desconhecida e intimidadora, indiscreta e inesperada.
A fotografia é uma perfeição (by Mátyás Erdély). As transições, a iluminação, a completeza dos planos, o jogo de ângulos, a naturalidade da dança da câmera, a ilusão do foco, a claustrofobia emitida (que acaba funcionando como uma estética reversiva)... A fotografia de Filho de Saul é genial em todos os sentidos possíveis, pelo primor, pelo tecnicismo e pelo efeito estremecedor que causa em quem assiste.
Geza Rohrig (Saul) nos presenteia com uma das melhores performances desse ano, uma interpretação nata, solene e excelentemente versátil. Nunca se viu um ator assim, tão esmerado e dedicado, de expressões silenciosas e marcantes, de um olhar feroz ainda que aterrorizado, transmitindo ao espectador todo seu pânico, sua inquietude, sua perplexidade. É uma atuação de ouro, por um ator de ouro, em um filme de ouro. Não há como reclamar. É, na melhor das hipóteses, um grato presente.
Observar, testemunhar pelas lentes de Laszlo os horrores do Holocausto através da triste jornada de Saul é uma experiência cruel, agônica e apavorante. Horrorizante. Demais. De muitas maneiras, é por isso que Filho de Saul trata-se de um filme tão impecável, tão único: a inovação está na estética, na abordagem que se destaca de várias outras reproduções cinematográficas visando a Segunda Guerra Mundial/Holocausto. É impressionante como a proposta funciona de maneira extraordinariamente tenaz, e o efeito é, em consequência, profundamente impactante.
Já no primeiro filme, Nemes prova que é digno da alcunha de mestre. Direção e roteiro são consistentes e importantes peças do longa. O húngaro, tão cedo, mostra-se promissor, e se sua intenção era fisgar a nossa atenção e arrancar aplausos estrondosos, não há como negar que ele foi muito bem-sucedido. Filho de Saul é um filme maravilhoso.
E, sobretudo, Filho de Saul resplandece pela audácia, por ser um filme diferente, distinto, provocador, capaz de gerar as mais transcendentes reações em quem vê. É um filme não-previsível, foge do comum, o que deve ser visto como uma de suas muitas qualidades. É uma obra impecável. Simplesmente extraordinário.
E os votantes do Oscar de Filme Estrangeiro provam que ainda há uma faísca de esperança, nos levando a crer que a categoria é, muito provavelmente, a única que, mesmo depois de quase 60 anos, sobressai-se invicta como a "the last fair Academy Award category", em tempos onde o Oscar, em termos de justiça, não vai muito bem não. Afinal, que outra categoria, e que outro prêmio, premiaria filmes do leque de Filho de Saul por tanto tempo assim e com tanta pose? Obrigado, Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, por ampliar a fama de Filho de Saul ao resto do mundo. As pessoas precisam ver essa obra imperdível.
Filho de Saul (Saul fia)
dir. Laszlo Nemes - ★★★★★