quarta-feira, 30 de agosto de 2017

O OUTRO LADO DA ESPERANÇA (2017)


Kaurismaki, em sua nova fase, tem juntado todos os seus esforços para trazer todo o seu estilo e suas obsessões para a atualidade, e para isso ele resiste a qualquer alteração ou anulação à estética classicista que este estilo abriga (e que na verdade o compõe, pra ser bem exato) para fazê-lo, para unir questões étnicas (a imigração na Europa) e conceitos atuais a um mecanismo cinematográfico atemporal. Guarda muitas semelhanças com Le Havre, o mesmo contexto humanista, o roteiro (inclusive algumas personagens) e a doçura irresistível de sua composição, podem apontar essa similaridade, embora o diretor saiba muito bem o que quer mesmo quando aparenta a repetição, seja num exercício dramático excepcionalmente bem arquitetado que valoriza o elenco que tem (Sherwan Haji e Sakari Kuosmanen estão fantásticos) ou numa prática formalista que se reafirma, dando indícios inegáveis de revitalização da energia fílmica em uma estética cada vez mais vigorosa e gostosa de se assistir, do jeito que Kaurismaki faz e ninguém consegue imitar, o ato de resistir contido nos gestos de humanidade e de cinema. Dos melhores de 2017, este com certeza fica entre os primeiros (so far).

O Outro Lado da Esperança (Toivon tuolla puolen)
dir. Aki Kaurismaki
★★★★

uma palinha de cinema: bressane, sion, penn


Poucos cineastas na história do cinema brasileiro – e, porque não, mundial – possuíram um cinema tão completo como o de Júlio Bressane. É essa capacidade de transformar cada frame e cada canto de um filme em uma obra que faz dele um sui generis da sétima arte, um tesouro escondido, um mestre. Todos os detalhes são orquestrados com um olhar minucioso, atento e feroz, tornando a sessão um prato cheio para quem gosta de "contemplar a vista", ainda mais quando temos em cena uma atriz tão inigualável como Alessandra Negrini, em suas poses e gestos, mil faces e contornos, expressa uma exuberante tentação imagética, que aliada às nuances bressanianas, movimenta e ressignifica a forma da maneira mais contundente possível. Trata-se de um épico da imagem, majestoso em sua dimensão quase surrealista, delicioso de se acompanhar, tanto por seu visual quanto por um retrato no mínimo interessantíssimo de uma personagem tão adorada pela cinematografia, a Cleópatra: um mito, um símbolo ou uma farsa do imaginário histórico/cinematográfico?

Cleópatra
dir. Júlio Bressane
★★★★


Interessante estudo de personagem/desconstrução de gêneros que consegue ampliar um foco em uma mesma característica sem sair do tom, e sem medo de subverter o protagonista para fundir duas perspectivas de um mesmo espectro (ou mais, até, se formos levar em conta uma dimensão diegética). Sion Sono trabalha de forma imersiva com os elementos que cercam seu filme, uma imersão totalmente cinematográfica, e ele parece realmente acreditar neste ponto, na sua proposta, mais do que qualquer outra pessoa, o que acaba se tornando um convite agradabilíssimo para o espectador em se sentir imerso em um universo lírico inexplicavelmente imprevisível e delicioso, onde somos guiados por uma sensação de surpresa e ao mesmo tempo encantamento, diversão. A tartaruga gigante é uma das criaturas mais fofas concebidas no cinema contemporâneo. Impossível não sentir seu coração derretendo. Meu primeiro Sion Sono é arrebatador. Sem mais.

Love & Peace
dir. Sion Sono
★★★★


Não sei bem ao certo o que o Sean Penn queria ao fazer este filme, parece mais uma série de experimentalismos com a câmera (numa certa cena, vergonhosa, há um jogo de closes, fast-motion e zooms muito zoado mesmo, a intenção de tornar a sequência, talvez, agitada, acaba se tornando uma zorra) acompanhando um casal de personagens (Bardem & Theron, provavelmente nunca estiveram tão péssimos em cena) e o pano de fundo, um conflito civil na África (o backdrop humanitário mais forçado e desleixado que se pode imaginar). A mise-en-scène é equivocada em muitos sentidos, desde uma concepção arbitrária e costurada com reducionismos ilógicos até o roteiro que parece ter sido escrito em questão de minutos tal qual é a falta de interesse e qualidade que ele reproduz. Toda e quaisquer tentativas que possam ser lidas como meras "boas intenções" não passam de tentativas.

The Last Face
dir. Sean Penn

sábado, 12 de agosto de 2017

NU (2017)


No começo de "Nu", o personagem de Marlon Wayans, professor de literatura, faz uma comparação entre dois livros, "O Apanhador no Campo de Centeio" (livro que aborda um dia na vida de um jovem riquinho de Nova York refletindo sobre suas atitudes e o mundo que o cerca) e "O Senhor das Moscas" (este segundo, defendido pelo professor num argumento com um aluno seu durante esta mesma cena, relata a jornada de um grupo de jovens que acabam confinados em uma ilha deserta após um acidente aéreo, obrigados a retomar um certo espírito de selvageria e reminiscência social para sobreviver). Dado o contexto dessa cena (o professor e os alunos do ensino médio) tal comparação é até compreensível, natural, mas a referência feita a estes trabalhos literários ganhará um sentido maior no decorrer do filme. Vale lembrar que nessa mesma cena, rapidamente após o fim dos créditos, há um close-up em um relógio (o primeiro de muitos close-ups em relógios durante o filme todo) capaz de passar até despercebido, mas crucial para a dialética contemplada nesta comédia.

Há uma lógica que flui de uma maneira bastante interessante dentro do novo trabalho de Michael Tiddes (diretor do horrível "50 Tons de Preto") e é essa mesma lógica que, dado um certo contexto, garante a metalinguagem à qual maneja o protagonista da história, um homem que revive o mesmo período de uma hora várias vezes justamente no dia de seu casamento (e nota: este se encontra nu em um elevador de um hotel no momento em que deveria estar na igreja, onde sua noiva o espera), um dilema que, por sua vez, está diretamente relacionado à  "nudez", sim, aqui é a metáfora da desmistificação de uma expectativa em torno de realidades que se concatenam, de crenças que parecem nos prender a uma mesma rotina, a um mesmo momento, de uma repetição aparentemente banal, para depois provar (e demonstrar) o cerne de todo um subtexto cinematográfico, que aqui se apoia justamente nessa brincadeira ingênua com o personagem principal, despido (literal e figuradamente) de todas as suas certezas.

Daí, o filme se dedica a não apenas relativizar essa jornada do personagem em busca da descoberta do próprio casamento (o que está ainda mais ligado à filosofia de "Feitiço do Tempo": o teste da nossa própria existência frente à iminência de uma dúvida, de uma exposição que põe em risco nossas próprias perspectivas, anula qualquer julgamento para dar origem a um humor escapulido, pelado, fugitivo, exposto, sempre procurando uma saída) mas também à justificação do eco dessa metalinguagem que se afirma em diferentes níveis, seja na confrontação de um repertório, da ressignificação de uma série de persuasões roteirísticas e também das repetições que se refletem no filme, seja na fala das próprias personagens ou nesse jogo de proporcionalismos e dimensões.

E se o filme nem sempre acerta numa tentativa (as soluções fáceis até poderiam passar, mas o ritmo que se apressa para poder fornecer uma continuidade meio imprecisa) pelo menos sai bem nessa questão de poder tanto reinventar a própria lógica e associá-la a uma metalinguagem que flui no mesmo volume de sua simplicidade. É um filme que não quer muito, parece querer apenas ser um entretenimento, mas acaba surgindo toda uma funcionalidade curiosíssima por trás de um aparente mecanismo de roteiro. Se Tiddes errou feio na sua "revitalização" do erotismo de "50 Tons de Preto" em substituí-lo por uma estilização fraquíssima da comédia, em "Nu" a configuração do gênero casa muito bem com o dispositivo metalinguístico.

Sim, estamos falando de um besteirol, com suas piadas imaturas (e surpreendentemente aqui estas não são tão frequentes quanto eu esperava) e seu humor bizarro e politicamente incorreto, bem como suas irregularidades. Podia ser mais um besteirol do catálogo de originais da Netflix, mas o que eu acabei encontrando foi uma agradável surpresa. Cinema em lugares inesperados: imprevisto, mas nunca uma coisa impossível. Aliás, no cinema, tudo pode acontecer. Tudo é possível. Até mesmo você ficar preso numa mesma hora no dia do seu casamento. Nu.

Nu (Naked)
dir. Michael Tiddes
★★★

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

uma palinha de cinema: frears, burton, uziel


Um apelo de criatividade para um roteiro desinteressante, ou "como mudar a ordem de seu filme para deixá-lo tediosamente bagunçado". Incrível é como uma hora e vinte aqui parecem três (e não, eu não tô exagerando). "Shimmer Lake" roda em círculos, tentando encontrar respostas para a sua própria mesmice. A tentativa de acoplar humor negro a suspense, num intuito óbvio à la "Fargo", desastrosamente forçado, piora toda a situação. Compra-se a ideia de reverter toda uma lógica (e que até torna o filme bastante curioso num sentido mais narrativo), e que é posteriormente estragada por uma tendência suspense/comédia que acaba fugindo do controle da maneira mais irresponsável possível.

Shimmer Lake
dir. Oren Uziel
★★


Burton fazendo o que sabe de melhor. No geral não há coisa nova, mas sempre tem algo que deixa cada filme seu mais fascinante que o outro, é o olhar dele nesse contraste entre o inocente e o estranho, que apenas ele sabe conferir e manusear (e talvez não exista outro diretor nos dias de hoje mais qualificado para fazer isso do que ele), delicadíssimo e sombrio ao mesmo tempo. Efeitos visuais podem não enganar, mas o filme encontra seu charme justamente nisso (o que eu particularmente acho incrível).

O Lar das Crianças Peculiares (Miss Peregrine's Home for Peculiar Children)
dir. Tim Burton
★★



Frears já fez filmes melhores. Uma cobrança meio desnecessária de quebra de expectativas (principalmente na personagem da Rebecca Hall) compromete a narrativa, com reforços que soam excessivos demais para um grupo de personagens tão limitado. Os que acabam prejudicados com esse tratamento são os secundários, que parecem estar presentes ali apenas para reavivar e dar continuidade ao plano dos principais sem nenhum compromisso diegético, uma relevância frouxa (com personagens pra lá de irregulares) num filme que não sabe muito bem o que quer. Na primeira metade, parece progredir nesse quesito, porém desanda justamente no momento em que acredita estar no controle de tudo, desmascarando a aparente estabilidade.

O Dobro ou Nada (Lay the Favorite)
dir. Stephen Frears
★★

sábado, 5 de agosto de 2017

PERSON TO PERSON (2017)


Grande elenco, incrível consistência narrativa. Personagens do cotidiano, situações banais, um andamento paciente que valoriza os diálogos e cria uma ótima verbalização dentro de um contexto improvável. A graça do filme está justamente nesse tratamento banalizado das ações dos personagens, a anti-tensão que toma conta dos conflitos contidos, só para nos lembrar que estamos assistindo a fragmentos do ordinário, mas ao mesmo tempo um estudo delicado da exposição humana, cujo maior mérito é não se levar a sério. Disto, nasce um encontro no mínimo interessante entre a leveza e a afirmação do que nos cerca como um flagelo da redundância, de questionamentos vazios sobre o que nos abomina, de esvair-se em sentimentos passageiros e não encontrar aquilo que mais se deseja. Daquilo que é banal, nasce uma admiração muito confortável que une crimes, relógios, nudes, discos falsificados, amores inconfessos e heavy metal. É a união de personagens que parecem não ter muito em comum e tem tudo em comum: a revitalização de uma banalidade que em sua completude pode expressar desde um carinho despercebido a uma violência incerta. É o cinema que se identifica como a ode do prosaico, do mero que é vulgar, da palavra que não é dita, do silêncio que não se cala.

Person to Person
dir. Dustin Guy Defa
★★★