sexta-feira, 21 de abril de 2017

SILÊNCIO (2016)


Foi recebido com controvérsia o mais novo e aguardadíssimo trabalho do cineasta americano Martin Scorsese, o épico Silêncio. Alguns amam, outros odeiam. E essa recepção reafirma o quanto é questionável aquilo que nos é mostrado no filme, um dos trabalhos mais inusuais do diretor, no que diz respeito à construção cinematográfica e à perspectiva dilacerante e necessariamente contraditória que este desenha. Entretanto, não há como negar que está é um dos filmes mais bonitos feitos por ele recentemente. 

Martin, de descendência italiana, criado na Igreja Católica, já trabalhou com as temáticas da fé e da crença em filmes anteriores, e que também, assim como este, tiveram uma reação controversa por parte da crítica e do público, especialmente A Última Tentação de Cristo, considerado um de seus filmes mais polêmicos. Silêncio, o projeto que Scorsese planejava filmar há muitos anos, encerra um pequeno ciclo de trabalhos enfáticos em temas religiosos de sua filmografia, precedido por Kundun.

As quase três horas de duração de Silêncio provam o que há de melhor, tecnicamente falando, no cinema de Martin Scorsese, e o que ele sempre soube fazer de seus filmes, o trabalho artístico, o cuidado absurdo com o visual, com a criação fílmica em si. O vigor de sua realização minuciosa e paciente, que caminha aos poucos, de maneira quase transcedental. A narrativa é costurada com afinco, levantando questões inquietantes, provocantes até um certo ponto.

Adam Driver e Andrew Garfield – brilhantes – interpretam dois padres jesuítas rumo ao Japão à procura de Padre Cristóvão Ferreira (Liam Neeson). Na viagem, eles têm a missão de catequizar japoneses cristãos, ato que é intensamente repudiado pelos fervorosos inquisidores, que agem com intolerância frente à conversão dos nativos.

O que tem tornado este filme tão duplo, tão divisor, é o fato dele nos entregar os fatos na unilateralidade, dentro de uma visão tida como colonialista, sob o ângulo dos jesuítas portugueses, católicos. Talvez a questão sobre esta história não seja sobre heróis e vilões, certos e errados, mas sobre a fé em si, sobre a questão da crença, a existência humana e a necessidade de acreditar. O filme então, acaba se tornando mais uma reflexão sobre os fundamentos religiosos e a ligação da religião à política mais do que uma improvável endeusação dos católicos/antagonização dos budistas. Abordar o poder de maneira tão ambivalente, o poder da fé, da palavra, da imagem, das forças humanas, remete às crenças que o mesmo estuda e analisa, e eventualmente desarma, ao questionar, ao debater, ao testar, usufruindo de uma linguagem precisamente cinemática.

Silêncio é uma meditação sobre a fé, sobre o poder da crença, daquilo em que acreditamos e da religião em si. Scorsese, pela primeira vez assinando o roteiro em muito tempo, faz uso de simbolismos e de metáforas de uma forma contemplativa e riquíssima. O cinema de um dos maiores diretores continua firme e forte, talvez exposto a certos riscos, mas que consegue estabelecer um retrato fiel sobre uma história real, ao tratar de seus personagens com uma vericidade monumental. Trata-se de um filme de uma beleza irretocável, a fotografia é maravilhosa, com momentos inspiradíssimos (autoria de Rodrigo Garcia) merecedor do único Oscar ao qual foi indicado, o de fotografia – a ausência do filme nas premiações, Oscar, Globo de Ouro, etc., foi bastante comentada. E tal ausência é realmente estranha, já que o filme é bem melhor que muitos frontrunners desta última awards season. 

Silêncio (Silence)
dir. Martin Scorsese
★★★★★

sábado, 15 de abril de 2017

SIERANEVADA (2016)


Do aclamado cineasta romeno Cristi Puiu, tido como um dos nomes mais promissores do novo cinema romeno, autor dos aplaudidos A Morte do Sr. Lazarescu (vencedor do prêmio Um Certo Olhar em Cannes, no ano de 2005) e Aurora, veio esta preciosidade da sétima arte, um filme estimadíssimo, um dos mais obrigatórios lançamentos do ano de 2016: Sieranevada. Tive a sorte de conferir essa obra no cinema ainda no começo desse ano, embora tenha sido lançado por aqui em dezembro passado. E o resultado foi uma das experiências mais prazerosas e especiais que eu já tive dentro de uma sala de cinema, pelo menos nos anos mais recentes. 

O filme tem quase três horas de duração – e boa parte deste se passa dentro de um apartamento – pouca ação, pouca movimentação, nada de grandes acontecimentos e reviravoltas ou rumos surpreendentes, e justamente por isso é compreensível que o público mainstream se afaste desse tipo de filme, que tende a exigir mais do espectador e um pouco de concentração para compreender seus detalhes e suas propostas. 

A família de um neurocirurgião se reúne no apartamento da matriarca para um evento religioso no decorrer da morte do patriarca, há um ano. O reencontro é recheado de momentos virtuosos, muitos engraçados e outros mais dramáticos, enquanto se instala um clima de instabilidade e nervosismo entre as figuras que transitam no quase minúsculo apartamento da família, obrigando todos a se, eventualmente, cruzarem nos corredores, na cozinha ou no caminho ao banheiro. 

A câmera executa um balé delicado em torno dos personagens, presenciando momentos de conflito e atrito entre estes, e outras vezes de uma beleza incalculável, tamanha a sensibilidade que o elenco – primoroso, primoroso, primoroso – evoca. A câmera é um dos membros do elenco também, um personagem invisível, que circula entre os corredores, segue personagens, e depois segue outros, adentrando os cômodos do apartamento onde transitam os personagens.

O filme, deliciosamente bem executado e arquitetado, produz sua crítica social feroz e genial à medida em que registra diálogos acirrados – como aquele da senhora discutindo sobre o socialismo, uma das melhores sequências do filme todo – e momentos singelos e despretensiosos que acabam tendo um certo impacto, e a proposta em si de adequar os personagens e as situações em que se encontram em cada cômodo da casa, como se estes fossem subdivisões de uma própria sociedade – a micro-representação da política na Romênia também se encaixa nesta proposta do filme – e cabe ao espectador interpretar esse estudo minucioso, em sua forma mais cinematográfica. 

O elenco – mais uma vez – como um todo, de índole perspicaz e aguçada, é de grande ajuda para a composição da relação dos personagens entre si, de uma vasta importância para o significado esotérico e metafísico do filme. Não há como dizer se Sieranevada é um filme cômico ou dramático – tudo depende do ponto de vista de cada espectador – mas são muitos os momentos cômicos, livres, que deixam a sessão mais gostosa, e por isso Sieranevada pode ser visto como um convite ao humor, à simpatia, mas também à crítica, à sátira social, à gravidade dos conflitos socio-políticos, muitas vezes referenciadas de maneira explícita ou não ao longo de suas três horas. Trata-se de uma pequena odisseia do comportamento humano, das relações familiares e da socialização entre as pessoas. 

O olhar sagazmente clínico de Cristi Puiu sobre os acontecimentos de seu filme e de sua história definem a textura crítica de uma obra verdadeira, simples porém enorme, de muitas maneiras, seja na duração, seja no viés monumental do elenco, seja na criação de diálogos riquíssimos, ou da elaboração de uma atmosfera que engloba humor e drama com um requinte absurdamente honesto. De qualquer forma, há uma certeza: Sieranevada é maravilhoso. E merece ser visto.

Sieranevada
dir. Cristi Puiu
★★★★★

domingo, 9 de abril de 2017

MISTÉRIO NA COSTA CHANEL (2016)


Os elogios em Cannes e a participação em 5º lugar na lista dos melhores do ano segundo a conceituada revista francesa Cahiers du Cinéma não justificam o novo filme do cineasta amado/odiado por muitos Bruno Dumont, cujo trabalho tem sido comparado ao do cineasta Robert Bresson. Seus filmes sempre são comentados pela estranheza e pela provocação que estes evocam, enquanto ao mesmo tempo não deixam de ter uma curiosa parcela de bizarrices e ao mesmo tempo a delicadeza que nenhum outro estilo reproduz. Por isso, a filmografia de Dumont é uma das mais importantes do cinema atual. E, infelizmente, seu mais novo (aguardado) filme não faz jus à tamanha importância deste cinema, por mais que tente, é uma das produções mais fracas de um grande diretor. 

Existe uma tentativa, uma própria necessidade forçada de ser um filme engraçado por trás de um conto que apresenta personagens improváveis diante de situações das mais bizarras. O filme tenta evocar um humor provocateur, zombeteiro, mas que não consegue ultrapassar o tom de um riso forçado, uma reunião formal das típicas esquisitices de um estilo inconvencional, remoto, atípico. O elenco, em plena forma, fazem bagunça enquanto incorporam seus personagens estranhos e dotados de uma graça forçada, graça essa que, se serve para provocar um tipo de humor inquietante, o efeito é passageiro.

As dondocas hiperexcêntricas de Juliette Binoche e Valeria Bruni Tedeschi prologam uma histeria exacerbada e curiosamente mesquinha. Duas ótimas atrizes em dois papeis menores, não necessariamente ruins, mas que pecam pelo exagero e pelo excesso de expressões equivocadas e manejos patéticos.

Bruno Dumont erra feio no tom de sua nova trama esquisita que em dado momento quer provocar um humor irascível e dilacerante enquanto noutra quer elevar um clímax dramático pouco convencional e tenebrosamente forjado (e irritante). Em comparação a outros filmes do diretor, como Camille Claudel 1915 (uma obra, ao meu ver), Mistério na Costa Chanel nos faz questionar as suas intenções, de tão incompreensível e bobo que é. 

Mistério na Costa Chanel (Ma Loute)
dir. Bruno Dumont
★★

quinta-feira, 6 de abril de 2017

LOGAN (2017)


Demorei um pouco para escrever a respeito de Logan (na verdade faz aproximadamente um mês que eu o conferi no cinema) porque ultimamente ando bastante sem tempo pra atualizar o blog e me faltava coragem, digamos, pra escrever sobre um filme tão bom e importante como esse (tarefas assim sempre exigem bastante da gente, mas eu realmente não sabia que palavras escolher para falar sobre este filme). Por esses motivos, creio que acabei atrasando a minha resenha acerca deste filme fantástico, mas aqui está. Uma coisa eu lhes digo: a Marvel acertou em cheio dessa vez.

Hugh Jackman retorna às telas com o último filme do Wolverine, um filme capaz de abrir o apetite de qualquer cinéfilo, amante do cinema ou que acompanha os trabalhos da Marvel, que ultimamente tem evoluído bastante. Considerando que eu sou (praticamente) um leigo em relação aos filmes da produtora, sendo que até hoje vi um número modesto dos filmes deles, Logan é o melhor destes, arrisco. 

Ano passado eu já tinha gostado pra caramba de Doutor Estranho, tanto para ter certeza de que era o filme máximo da Marvel, mas então tal certeza fragmentou-se com a sessão de Logan, uma das mais emocionantes sessões do ano, pra mim muito especial. Nunca vi um filme tão Marvel que fosse tão obrigatório, em relação à sua realização primorosa, seu significado esotérico e suas metáforas brilhantes. Ressalto: não há um roteiro da Marvel que tenha sido tão bem escrito e projetado, ao meu ver, que tenha um cuidado em desenhar os personagens e as situações em que eles estão envolvidos.

Em Logan, a trama gira em torno de um personagem outrora heroico, ganhando a vida como chofer, para sustentar e bancar os remédios de seu adorado mestre. Rejeitado, vivendo às escondidas, para não ser descoberto. A face escondida de Wolverine, um ser cujos poderes o transformam em uma criatura sobrenatural, temida, monstruosamente perigosa, mas de coração bom. E é justamente esse lado que James Mangold opta filmar, o lado humano de Wolverine. Mas não necessariamente por problematizá-lo o filme o faz, mas por conferir um certo senso de humanidade à forma como ele lida com a sua própria "face escondida" e os problemas que o acompanham em seu encalço. 

Seu caráter autodestrutivo, um homem vivendo com seus pesadelos amargos e tendo de arcar com seus pesarosos fracassos, por ter machucado tanta gente, sua angústia, e sua forma de viver perigosamente, reflexos de quem está machucado por dentro, dilacerado, aos pedaços, mas prefere ainda lutar enquanto lhe resta uma centelha de vida. É nesse estudo minucioso do lado humano de Wolverine. 

Logan, o filme, não se envergonha de ser sentimentalista, e por vezes até melodramático, tendo de optar por um desfecho sentido, humanamente coerente e muito, muito emocionante. A expectativa não é de ir às lagrimas assistindo a um filme de super-herói, mas o caso aqui é justamente esse. Mangold vai direto ao ponto e lida com o que a Marvel, talvez, estivesse com receio de explorar: o melodrama contido de Wolverine e seu caráter humanista. 

Na história de uma garotinha mexicana (interpretada com ferocidade pela promissora Dafne Keen) de dez anos, a filha do Wolverine, uma x-men de garra e que não se afronta, de modo algum, frente aos sangrentos conflitos com os quem surge em seu caminho, se aliando ao pai para desmascarar um sistema podre que abusa de crianças sobrenaturais por razões meramente políticas e militares, o cerne de uma trama matura e riquíssima em elementos que podem ser interpretados tanto como uma metáfora da indústria bélica e do sistema americano em si como também dos laços familiares rompidos de um homem e de sua filha que nunca se encontraram antes, e à frente deles, uma longa jornada repleta de cenas viscerais, costuradas com quilos de violência e um peso dramático desafiador. Jorra-se sangue tanto quanto se jorraria em um filme com a direção de Quentin Tarantino. 

Vingança, represália, oposição, valores éticos e morais de uma sociedade fragmentada, corrompida pelo poder. Logan faz-se um filme importante. A Marvel está de parabéns por uma produção de tamanho significado como este, cujas dimensões ultrapassam as expectativas esperáveis, ainda que estas fossem das melhores. A complexidade de um personagem negando a si mesmo para assumir uma responsabilidade ainda maior sobre suas escolhas no passado e sobre quem ele é. E se muita gente está chocada porque são muitas as sequências em que vemos uma garotinha "inofensiva" mutilar e massacrar vários peso-pesados, aí é que está o reflexo de tempos estereotipados e excessivamente conservadores, algo que o filme em si, ironicamente, incrimina. A violência: uma resposta? Ou uma questão?

O elenco está primoroso. Hugh Jackman merece um Oscar. A performance de uma carreira, que fecha com chave de ouro a jornada do personagem que o fez famoso no mundo inteiro. Não falo do Jackman cantor, dançarino, multi-tarefas, hiper carismático e gente boa. Falo do Jackman e do homem de coração de ouro que ele interpreta em Logan. Uma maravilha. Isso que Logan é. Um filme brilhante em todos os aspectos, monumental. A experiência de vê-lo na telona é única. Qualidade é o que não falta neste western-like moderno inspiradamente conduzido por James Mangold (e este seja talvez seu melhor trabalho) sobre o humano e o x-men em cada um de nós. E a redenção de um herói e seu coração despedaçado.

Logan
dir. James Mangold
★★★★

PATERSON (2016)


O que a gente encontra em Paterson é um dos filmes mais delicados e refinados de um diretor sempre disposto, em sua filmografia, a traduzir as emoções humanas em imagens e histórias focadas na alternação cotidiana da vida de seus personagens, seja na trama de um homem que recebe uma misteriosa carta dizendo que tem um filho, de um casal de vampiros na Detroit em ruínas ou de um motorista de ônibus que também atua como poeta. História cabíveis a qualquer um, em qualquer lugar, mas que, na ótica deste mestre, ganham um sentido totalmente próprio, repleto de singularidade e uma precisão cinematográfica absurda.

A beleza de Paterson está justamente na poesia que ele aponta, e que às vezes passa despercebida a olho nu: a poesia do cotidiano, das nossas rotinas, lentas e cruas, orgânicas e por vezes monótonas, até cansativas. Mas o elogio, a ode desse diretor tão celebrado à rotina que nos cerca está na beleza que esta nos provoca, nos detalhes que são minuciosamente evocados por seus aspectos mais inevitáveis e, portanto, constantes. Encontrar a beleza em meio ao seco devaneio das nossas rotinas é uma tarefa pouco crível, e que neste filme ganha um espectro de riqueza narrativa e poesia, enquanto nos deliciamos em acompanhar a trajetória dos dias calmos, passivos de Paterson, interpretado brilhantemente por Adam Driver.

Jarmusch trabalha sua estética de forma quase contemplativa, a dar um valor diferente a esta sua pequena e singela obra de arte. Alguns interpretam como pretensiosa a proposta dele em estabelecer contextos e simbolismos contradizentes, o que, por evidência, é a arquitetação de um trabalho cinematográfico esforçado que enaltece um naturalismo arrastado.

Também está fenomenal a atriz iraniana Golshifteh Farahani, que já trabalhou com muitos diretores importantes, como Asghar Farhadi, Ridley Scott, Marjane Satrapi, Abbas Kiarostami, Roland Joffé e está presente no elenco do novo filme da franquia "Piratas do Caribe", sendo ela uma das intérpretes iranianas mais influentes em atividade. Em Paterson, ela interpreta a esposa do personagem de Driver, que também é uma artista. 

Enfim, Paterson é um filme delicioso. Eu gostei bastante. A maneira como o filme se desenrola, seu andamento vagaroso, o estudo sereno dos personagens, passional e dedilhado, simplesmente poético. Jarmusch está de volta com um seus trabalhos mais bonitos e austeros, não dá pra ignorar. 

Paterson estreia dia 20 desse mês no Brasil. 

Paterson
dir. Jim Jarmusch
★★★★

terça-feira, 4 de abril de 2017

FRAGMENTADO (2016)


Fato é que Shyamalan é um dos cineastas de maior destaque do cinema americano contemporâneo. Com uma filmografia amada/odiada por muitos, é uma figura tanto controversa quanto aplaudida por seus trabalhos mais requintados e outros que muita gente faz questão de criticar, por melhor que estes são. Já não é o caso específico do novo (e aguardado) thriller do diretor, Fragmentado, clamado como seu "grande retorno" (um grande equívoco, visto que os fracassos "críticos" de Shyamalan tem uma difamação bastante subjetiva e, por vezes, até errônea, injusta e desqualificada) às telonas trata-se de um filme que coleciona muitos méritos, dentre estes um ponto que se sobressai, a arquitetação de uma atmosfera de suspense riquíssima e extraordinariamente bem elaborada. 

Na trama, Kevin, um homem que sofre de um grave transtorno de personalidade, sequestra três jovens e as confina em um cativeiro pouco improvável. A história gira em torno das obsessões deste homem e suas múltiplas personalidades enquanto ele desenvolve uma relação tempestuosa com as jovens, sobretudo com Casey (a talentosa Anya Taylor-Joy, uma das mais promissoras atrizes da geração) a adolescente com quem tende a conversar frequentemente, em especial com a personalidade infantil de Kevin, um garoto de nove anos, Hedwig.

No que diz respeito à construção de uma atmosfera de suspense impecável, Fragmentado certamente não decepcionará a quem for assisti-lo com a expectativa de encontrar um thriller eletrizante, com momentos singulares e uma trama engenhosa, inteligente, do gostinho que Shyamalan sabe fazer como ninguém. Se a crítica não tem dado trégua para um dos diretores americanos mais subestimados não só desta geração mas provavelmente de todos os tempos, Fragmentado está aí, novamente, assim como muitos de seus trabalhos anteriores, para provar que o cinema de M. Night continua firme e forte.

É pelo dito fracasso de filmes excepcionais, obras, do cineasta, como A Dama na Água, Fim dos Tempos e A Vila que muitos fãs e boa parte da crítica tinha em mente a esperança deste ser o "triunfal regresso" de M. Night às telas. Como ele nunca esteve em péssima forma, não acho que o filme seja um regresso, por mais brilhante que seja, até porque o recente A Visita se saiu bem melhor que este filme em muitos pontos que neste aqui revelam irregularidades. No papel de Kevin & cia., James McAvoy, em sua primeira grande performance de destaque, entrega um desempenho tanto fenomenal quanto astuto. Taylor-Joy, a reconhecida estrela do filme de terror de sucesso A Bruxa, está excepcional.

A história é costurada com uma narrativa convencional, sem medo de exagerar em recursos que a tornem apreensiva, medonha, quão bem construída e estruturada. O roteiro é escrito com a excelência de quem sabe criar uma história de suspense de verdade. E se ainda cobram de Shyamalan um novo O Sexto Sentido, é bem provável que Fragmentado cale esses chamados tão desnecessários.

O desfecho em um dado momento atinge um clímax empolgante, quase pulsante, causando uma atração magnética do espectador pela resolução tão aguardada de uma história que se enlaça em vários contextos e se transforma em uma metáfora riquíssima sobre a natureza humana, os predadores e as vítimas, e sobre nossa própria identidade enquanto seres humanos, nosso "lado animal", a caça e o caçador. Numa história onde todos são vítimas das consequências de traumas, de passados, de feridas que não cicatrizaram, dos medos mais profundos e das vontades mais angustiadas da alma inquieta.

Shyamalan ainda está de pé, e seu novo filme engana pelo apetite comercial, pois encontra-se envolto de uma complexidade rebuscada e perplexa. Há quem enxergue neste cinema tão potente, ainda que sejam poucos, um brilho radiante, o poder da imagem e da linguagem cinematográfica. Sim, meus amigos, este é um filme brilhante dirigido por um cara que, mais uma vez, está totalmente coberto de razão em suas abordagens e em seu estilo de fazer cinema. E o resultado é duplamente um suspense delicioso, um comovente estudo de personagem e uma paradoxal representação simbólica da ferocidade dos nossos atos e do nosso pensamento.

Fragmentado (Split)
dir. M. Night Shyamalan
★★★★