Eu sei que o ano ainda não acabou (faltam exatos 56 dias para que isso aconteça) mas eu tenho certeza que não verei nada igual a
Aquarius, forte candidato a filme do ano, empatado juntinho com
Elle, de Verhoeven, ambos os filmes tendo estreado com o pique todo em Cannes em maio desse ano, e com duas protagonistas ferozmente dedicadas às suas personagens complexas e intrigantes. Sônia Braga e Kleber Mendonça Filho me fazem ter um imenso orgulho do cinema nacional, de ser brasileiro. Estou feliz porque, acima de tudo, o cinema do nosso país está vivíssimo e
Aquarius é a mais perfeita prova disso.
Há um ano, eu assisti
O Som ao Redor pela primeira vez. Foi uma grande experiência. Inacreditável como Kleber Mendonça Filho, outrora curtametragista aclamado, obteve tanto sucesso em seu filme de estreia, que por sinal é uma obra-prima marcante do cinema brasileiro. Cá estou eu, um ano depois, vendo
Aquarius. E adorando cada momento desse filmaço que me conquistou de repente, sem avisar. Acontece nos melhores filmes.
Clara é uma mulher que persiste e não se cansa de defender a causa que abraça. Ela mora na praia de Boa Viagem, no Recife, Pernambuco. Leva uma vida pacata. Jornalista e crítica de música aposentada, ela gosta de sair para o forró com as amigas, beber, falar sobre a vida, paquerar e namorar também. Viúva e mãe de três filhos, ela mora no edifício Aquarius, uma propriedade que vira alvo de uma construtura, Bonfim, que pretende demolir o prédio para construir em seu lugar um condomínio de luxo. Clara fica irada. Quanto mais o pessoal pressiona, mais ela resiste, mais ela ignora, mais ela batalha por aquilo que é seu por direito.
Ávida colecionadora de discos, de Queen a Roberto Carlos, Clara é uma apaixonada incansável pela música. Passa seus dias escutando LPs e se deliciando com as melodias, as letras, os ritmos, os toques, as batidas. A música é a sua fortaleza (uma coisa que é claramente explicitada naquela cena da orgia, quando o pessoal põe som alto e ela revida botando no último volume "Fat Bottomed Girl").
Clara é a mais pura representação da mulher moderna. Seu espírito de resistência é o foco central do filme. A forma como ela lida com a situação chata que a persegue, daquele cara pedante interpretado pelo Humberto Carrão que só quer saber de tomar o apartamento dela e demolir o Aquarius, é no mínimo plausível.
Aquarius adentra um terreno contextualizado mais aprofundado. O filme fica bastante próximo de uma crítica política sobre o caos que o Brasil está enfrentando nos tempos atuais. A personagem de Clara é a representação da resistência contra a opressão e, de maneira um pouco menos explícita, a repressão ainda existente no nosso cenário político.
O filme é recheado de momentos inesquecíveis e sequências extraordinárias, que exploram tanto o talento e a graça de Sônia Braga na pele de Clara quanto a firmeza da direção magistral de Kleber Mendonça Filho. Quem já conhece KMF de outros filmes vai reconhecer em Aquarius algumas obsessões do cineasta reconhecíveis em outros projetos, como os zooms, a movimentação da câmera (que fazem referência ao antigo estilo de se filmar).
Se em O Som ao Redor o diretor explorava as amarguras de um espaço urbano e o contraste entre as classes sociais, em Aquarius essa relação é abordada de maneira remotamente diferente, ainda que um pouco menos crítica e ressaltada. Clara, inclusive, é bastante apegada à sua empregada, enquanto guarda rancor de uma figura do passado que trabalhou para ela como babá e que supostamente teria roubado suas joias (e que aparece numa cena de sonho mais tarde).
A performance de Sônia Braga é provavelmente a melhor do ano ao lado da de Isabelle Huppert em Elle, e certamente a melhor atuação de toda a carreira da atriz, que esteve afastada das telonas por um bom tempo, e agora marca um retorno triunfal como Clara, a personagem de sua vida. A atriz entrega um desempenho honesto, rico, intenso, belamente desnorteante. Braga está maravilhosa. Todos deveriam assistir a essa performance inesquecível.
O desfecho do último dos três atos é uma parte importantíssima para a resolução do caso de Clara. Aquela cena dos cupins é excelente. Como era de se esperar, o suspense é arquitetado com astúcia e funciona com perfeição. Sinto que em O Som ao Redor, justamente pelo trabalho de som espetacular, a sensação de tensão e suspense era bem mais elevada, mas vale mencionar que, diante de uma trama tão repleta de possibilidades, o uso temporário do suspense para causar mistério e ao mesmo tempo amedrontar é genial.
Provocador, tenso, delicado, inteligente, singular, sensível, profundo. Aquarius é um filme soberbo. Simplesmente soberbo. Uma obra de arte tão irresistível e intrigante, envolta em uma complexidade calorosa, uma meditação estrondosa sobre o tempo, uma ode extasiante à nostalgia. Mendonça Filho ostenta competência cinematográfica e faz de sua história sobre uma mulher dos tempos atuais afetada pelo grito de mudança uma metáfora excelente sobre o status político e social do Brasil atualmente. Sem falar que Aquarius, além de tudo isso (e mais, é lógico) trata-se de um filme prazerosíssimo de se assistir e excepcionalmente fotografado. Aquarius é dilacerante, potente, um filme vivo e humano. Obrigado, Kleber. Obrigado, Sônia. Saibam que eu amo vocês. Aquarius é lindo, lindo, lindo demais.
Aquarius
dir. Kleber Mendonça Filho - ★★★★★