sábado, 31 de março de 2018

A FORMA DA ÁGUA (2017)


Para compor a sua história fantástica sobre o amor entre uma faxineira de um laboratório secreto do governo (Sally Hawkins, como Elisa) e uma estranha criatura das águas da América do Sul levada até lá para estudos, e que é maltratada por um homem cruel e carrasco (Michael Shannon, o detestável vilão Strickland), Del Toro usou e abusou de elementos cinematográficos de todos os lados (seja na arquitetura estética, na fotografia que exala cores fascinantes e mistura tons, na câmera que parece estar em uma constante relação de encantamento com os personagens que filma) e há muito amor sendo exalado por essa historinha que parece ser bastante ingênua e acaba se revelando mais intensa do que poderíamos pensar.

Pode não funcionar para uns — a proposta de uma história de amor narrada com elementos do gênero fantasia (e também entrando no terreno do noir) — e embora existam muitos problemas neste filme, não há como negar que um encantamento emerge da sutileza com que ele defende esse amor, levando (muito) a sério a premissa da paixão entre um ser humano e um ser aquático que parece ser tão impossível para outros de receber tal tratamento, aqui, não apenas há isso como também uma espécie de respeito pelos personagens, que é muito bonito de se ver. De algum modo, acaba funcionando, mesmo que a dedicação de Del Toro dispare para tantos lados que há irregularidades bem evidentes.

Embora eu não ache (mesmo) que seja um filme decepcionante, queria ter gostado mais de A Forma da Água (mais do que eu já gostei). As coisas parecem estar em seus devidos lugares: uma trilha sonora belíssima, cenários tão humanos e monumentais quanto seus personagens, um visual incrível... Mas acontece que na narrativa muito da essência que a estética do filme evoca é deixado para trás na valorização de excessos. 

Del Toro está tão preocupado em deixar o seu filme hiperestilizado para atender às "necessidades" que na verdade não são necessárias assim, que boa parte do que é realmente promissor nele se perde. E é triste, porque é um trabalho que muita gente amaria amar e tinha tudo para ser grandioso. Eu gosto de muitas de suas propostas. A forma como a história se desenrola, deixa a desejar (e muito). 

A diversidade dos personagens é um fator marcante. Del Toro quer dar espaço para todos e abraçar os oprimidos num conto sobre amar mesmo que isso custe ir contra a maré, ter o seu próprio espaço num lugar onde ele já está pré-determinado, romper barreiras. O filme, no papel, é genial. Tirando os excessos (querer dar uma dimensão para cada personagem, mas atropelando as essências de cada núcleo), seria mais crível.

Não há como negar que se tem um dos elencos mais proveitosos: Sally Hawkins (numa de suas atuações mais ricas), Michael Shannon (o vilão que eu mais odiei em muito tempo, em atuação infelizmente subestimada), Michael Stuhlbarg (destaque), Octavia Spencer (tem seu brilho) e Richard Jenkins (cujo personagem tem momentos de delicadeza ímpares). 

De tudo no filme, o que eu mais gosto é da beleza do amor entre a Elisa e a criatura (e como a estética acompanha isso), mesmo que seja algo que está mais na imaginação do espectador, porque até nesse núcleo há alguns disparates. Entretanto, se encerra maravilhosamente, ainda que a narrativa percorra tanto para chegar a tão pouco. Surpreende o fato de ter ganhado o Oscar de melhor filme, chega a ser até um pouco estranho, mas há um lado bom nisso. É um dos poucos filmes que conseguem driblar fantasia e romance sem perder o ritmo melancólico e agridoce dos sentimentos dos seus personagens. É uma fábula contente por assim ser, e que exige que o espectador entre na sua dança. Nessa parte, é mais particular, pois cada um interpreta seus detalhes como quer (e como lhe diz o interior, é claro). 

A Forma da Água (The Shape of Water)
dir. Guillermo Del Toro
★★★½

domingo, 25 de março de 2018

LADY BIRD (2017)


E não é que Greta Gerwig realmente se revelou como diretora em 2017? E foi a revelação mais bem falada do ano, elogiada aos montes. Acho que foi um pouco surpreendente constatar que o longa chegou ao nível de ser indicado ao Oscar e receber vários prêmios e indicações, tornando-se um queridinho da temporada de premiações. Talvez nem a própria Gerwig, musa do cinema independente americano, esperava que seu filme fosse ecoar tão alto. O que não significa que ele não tenha merecido todos esses reconhecimentos. Afinal, estamos falando de um filme que exala uma sensibilidade nata ao retratar, de forma delicada e precisa, a relação conturbada entre uma mãe e sua filha, vivendo na cidade de Sacramento (Califórnia), e, mais proximamente, a adolescência da última e todos os altos e baixos de uma fase complicada, marcada por descobertas, mudanças e aspirações.

Lady Bird é um filme que, em primeiro lugar, respeita seus personagens, seus espaços, suas formas de viver, suas emoções e os desenlaces das relações que eles mantém uns com os outros, seja no núcleo da mãe e da filha, da filha com o pai, da filha com o namorado, a melhor amiga, etc. A adolescente desvairada e ansiosa por se transformar naquilo que aspira, Christine (em performance mais que espetacular de Saoirse Ronan) colide com a mãe (por Laurie Metcalf, genial em todos os sentidos possíveis, esnobada no Oscar) que, de certa forma, parece não compactuar com a geração que sua filha incorpora, a geração dos anseios e das necessidades impulsivas de auto-afirmação. Embora possamos testemunhar diversas cenas de desentendimentos e brigas entre as duas, é entre essas personagens que se estabelece a relação amorosa mais intensa da narrativa. Por isso, é uma relação conduzida com uma delicadeza ímpar, embora as duas se desencontrem tanto, mas acabem se amando mais do que podem saber (talvez a mãe esteja mais ciente disso do que a filha). 

Lady Bird, deslocada, não consegue se encaixar naquela cidade, quer se mudar, se tornar uma artista, fugir do universo mundano, fazer parte de um mundo que está distante dali. Embora a proximidade seja mais explorada, a distância é algo que parece fazer parte também dos complexos da personagem, que se vê mais realizada distante de tudo aquilo ali, quando na verdade é em Sacramento onde ela se encontra, mesmo sem saber que ali é, na verdade, o seu próprio mundo, o seu lugar, a sua casa. De tanto querer se afirmar, ela acaba negando a sua essência. De certa forma, é a universalidade do jovem de uma geração que cresceu acostumada a absorver em sua cultura interior uma espécie de auto-afirmação e preservar mais aquilo que não está ao seu alcance, o intocável, o abstrato, o que cultivamos à priori. 

A forma como o filme se desenrola nos oferece momentos de singularidade e excelência, quanto a delicadeza de um retrato que sabe o que quer, se escorando na simplicidade para expressar todos os seus focos. Gerwig é tão boa diretora/roteirista como atriz e isso pode ser evidenciado em diversos momentos deste trabalho (que é semi-autobiográfico, inclusive) em que nota-se a maturidade de uma condução excepcionalmente bem construída. Há também, como destaque, uma trilha fenomenal da autoria de Jon Brion, e uma fotografia de momentos ímpares. 

Lady Bird é sobre se sentir em casa. Os encontros e desencontros da vida. Sonhos e realidade. Enxergar seu mundo fora dele. Retornar e não querer sair. A necessidade de se enxergar por outros filtros. Fazer suas decisões. Lidar com consequências. Estar à deriva em si mesmo. Não poder fugir das suas incertezas. Estar preso em uma fase. Se arrepender. Não poder se desculpar, mas querer. Querer viver. Longe de tudo. Estando o mais próximo possível. Lady Bird tem mil e uma razões para ser essa obra-prima sensível que capta tantos sentimentos, e com personagens tão humanos e aprazíveis. Não há vilões, não há heróis. Lady Bird é o que é: mundano, cativo e extremamente prazeroso com tão pouco. É simples, mas complexo por se afirmar, gigante em sua compreensão de cada ponto de vista, fiel na composição dessas vidas que colidem umas com as outras, as pessoas que fazem parte de nós, e nós delas. 

Lady Bird: A Hora de Voar (Lady Bird)
dir. Greta Gerwig
★★★★½

sábado, 17 de março de 2018

Alguns filmes da semana


Como escrever no blog está se tornando uma tarefa mais rara, decidi atualizá-lo semanalmente com curtos comentários sobre os filmes vistos durante a semana (e geralmente meus comentários também podem ser acompanhados no meu letterboxd). 

Veneno (Poison, Todd Haynes, 1991) ★★★★


Primeiro filme do cineasta Todd Haynes. Uma delícia. Praticamente é como se fosse Sem Fôlego só que com três linhas de narrativa distintas intercaladas que não compartilham conexões diretas umas com as outras, embora pareçam dividir da mesma intensidade e energia ao longo do filme. Interessante é que este trabalho foi influenciado por trabalhos do escritor francês Jean Genet. Provocativo, forte e necessariamente pesado: foi um ótimo prólogo para o mestre que Haynes se tornaria alguns filmes após este. Escolhi (sem saber) uma cópia VHS e me surpreendi com o quanto isso ajudou na atmosfera perversa e bizarra do longa. Há também alguns aspectos de filme de horror, evocados em diversos momentos tensos da trama, o que influencia no fato do filme ser, no geral, um tanto incômodo quando trata da liberdade sexual, do aprisionamento, dos limites aos quais somos impostos e o quanto sofremos por eles. O impacto foi demasiado. Há grandes atuações, uma trilha inspirada e, é claro, uma condução de deixar qualquer um fora de si. 

The Fits (Anna Rose Helmer, 2016) ★★★½


É muito interessante e mais interessante ainda é que se trata de um filme de uma diretora estreante. Os níveis que a mise-en-scene atinge são desnorteantes. E ainda mais quando se tem em cena uma atriz mirim tão talentosa como a Royalty Hightower, cuja brilhante atuação, na pele de uma menina que fica dividida entre as lutas de boxe e as aulas de dança no centro em que frequenta, foi tão pouco reconhecida (como o próprio filme que, embora tenha caído nas graças da crítica, teve pouca divulgação e quase ninguém fala sobre). Transita entre uma diversidade de elementos dramáticos mas nunca perdendo o próprio ritmo que a história carrega. E mesmo numa variação tão limitada de espaços, o balanço dramático e espacial que a diretora encontra é riquíssimo. Dos maiores destaques do cinema indie americano recente. 

A Garota do Café (The Girl in the Café, David Yates, 2005) ★★★


Filmezinho simpático esse. Talvez eu tenha gostado mais do que eu poderia prever. Especialmente por conta da química entre os atores principais, os ótimos Bill Nighy e Kelly Macdonald, aqui fazendo um par romântico bem atípico e gostoso de se observar. Eu posso entender as intenções do roteiro de Richard Curtis até por envolver certos pontos diplomáticos em seu contexto (um filme sobre um economista que trabalha para o governo britânico indo em uma cúpula do G8 e levando em sua companhia uma mulher que ele conheceu recentemente), mas parece que as respostas dadas parecem ser tão simples para questões tão complexas, embora seja nobre o quanto são humanas as mesmas intenções que esse roteiro desenha. Enfim, eu gostei. Serve mais como uma distração romântica do que como uma crônica política. 

bônus:
Roads of Kiarostami (Abbas Kiarostami, 2006) ★★★★½


Achei este curta inédito de meia hora do nosso querido Abbas Kiarostami e me deliciei com tamanha simplicidade. Temos uma série de imagens (fotografias tiradas pelo cineasta em estradas, caminhos e paisagens que ele visitou) seguidas por uma narração do mesmo e uma trilha belíssima. É a perfeita definição do que cinema poético é. Mesmo com pouco, Kiarostami extrai desses simples gestos de combinar imagens, palavras e música algo tão forte e cinematograficamente poético que nossa única reação é ficar ali, parado, abismado e encantado com a disposição. É calcado na sutileza de um olhar, mergulhado na paixão de quem encontra numa fotografia o monumento para uma vida. 

domingo, 4 de março de 2018

PROJETO FLÓRIDA (2017)


Eu sei que palavras não vão ser suficientes pra definir o quanto eu amei incondicionalmente cada segundo desse filme, mas vou tentar de qualquer forma. Projeto Flórida — do que tem de delicioso, tem de amargo na mesma medida. Sean Baker (do ótimo Tangerine, filme que talvez seja mais lembrado por ter sido filmado inteiramente num iPhone) não tem pudores na hora de mostrar a realidade, mas é justamente na inocência dessa história sobre, principalmente, minorias buscando um espaço e um lado do sistema que ninguém quer mostrar (especialmente no cinema americano), que o diretor foca para encontrar a beleza no meio do caos e da miséria no "lugar dos sonhos". E também acaba encontrando, entre outras coisas, dentro das suas camadas de personagens e subtramas essencialmente vivas, uma humanidade dilacerante, visceral, riquíssima em todos os seus aspectos. Entra então o belíssimo Projeto Flórida, essa graciosa obra-prima que, surpreendentemente, trata-se do melhor que o cinema americano nos proporcionou em 2017. 

Crianças que brincam e vivem seus dias de felicidade durante a temporada de férias, e adultos que sofrem para poder contornar a difícil realidade na qual estão inseridos. É a pobreza no país mais rico do mundo, a nação americana vista do lado de baixo, das minorias, dos ignorados, deixados para trás, e tão próximos do "mundo perfeito". Baker cria um universo em que esses personagens são acolhidos tão humanamente, com um calor tão verdadeiro, que é impossível não desenvolver simpatia por cada uma dessas figuras retratadas tão autenticamente num filme que se inspira na desordem pra encontrar a essência mágica da vida que está presente ali, dos moradores que digladiam uns com os outros para depois se consolarem, do síndico que executa suas responsabilidades à risca mas também desenvolve um afeto extremamente genuíno com todos os personagens, aos trancos e barrancos que a convivência humana proporciona.

Muitas coisas me maravilharam aqui, desde como o Baker dirige seu filme extraindo cada pedacinho de ternura e virtude que é possível, até as atuações vibrantes e excelentes de vários atores, e nem todos conhecidos. É claro, temos o Willem Dafoe, cuja atuação foi altamente elogiada e premiada (e muito justamente, ele tá incrível aqui), mas também há as iniciantes Brooklynn Prince (como a garotinha sapeca que vive aprontando com os amigos nos arredores do motel) e Bria Vinaite (esta dá um show de atuação, em seu primeiríssimo papel no cinema, como a mãe dessa garotinha).

Existe uma série de cenas fascinantes, engraçadas, muitas delas envolvendo as crianças fazendo estripulias e mexendo com os outros moradores, e depois fazendo coisas que crianças fazem — e no que diz respeito a isso o filme tem uma visão bastante singular — dando lugar, aos poucos, a um final que conecta a doçura infantil do filme à brusca realidade que corre por baixo dela. O desfecho é essencialmente triste, e guarda, principalmente, uma cena que me tocou profundamente, que é a da Moonee se despedindo da melhor amiga (não dá pra segurar as lágrimas). 

Projeto Flórida é sobre viver nas margens da vida, procurar um lugar pra se fixar, enxergar a vida através dos nossos sonhos por mais amarga que a realidade possa ser (ou por mais que ela tente te derrubar). É extremamente doce em tudo, na fofura do seu elenco infantil, no afeto que transborda de cada frame, no seu inspirado retrato que capta as emoções mais avassaladoras e as mais gostosas também, fazendo com que o espectador se emocione (e se encha de alegria). É um conto adorável onde inocência e perdição andam lado a lado, mesmo sem saber disso, cada uma dando lugar aos sentimentos que permitem, e às vezes preenchendo umas às outras.

Eu não posso resistir um filme tão gostoso assim, é maravilhoso demais, e tudo o que eu sinto por ele é simplesmente amor, amor, amor. Todos esses personagens, todos esses lugares, todas essas emoções, todas essas histórias parecem estar conectadas de alguma maneira com o que me rodeia agora, com esse universo que faz parte da minha existência, é uma parte da qual eu não posso me desprender, mas que a cada dia me surpreende com a humanidade que exala e o intenso calor que evoca, provando que não existe nada mais forte no mundo que os sentimentos. Já é o melhor filme do ano pra mim, so far. Lindo pra caramba. 

Projeto Flórida (The Florida Project)
dir. Sean Baker
★★★★★

sábado, 3 de março de 2018

LADY BIRD (2017)


E foi a vez da atriz Greta Gerwig (musa do cinema independente americano atual) abrir suas asas e se arriscar na direção de um filme que acabou se tornando um dos títulos mais queridos pela crítica no ano passado, que é Lady Bird, indicado a cinco Oscars, vencedor do Globo de Ouro, presente em diversas listas de melhores do ano. Ou seja, o filme foi um sucesso. E a ansiedade para conferi-lo era maior ainda. Rapaz, não é que o filme é bom mesmo? Gerwig prova ser não só diretora mas roteirista competente quando se trata de orquestrar um trabalho tão pessoal de forma a torná-lo tão coletivo, dono de sentimentos tão diversos e singulares, que é impossível não se sentir no mínimo felicitado por um filme assim, capaz de evocar tanta coisa e com tão pouco. Afinal, é uma produção esculpida na simplicidade, no despojo de uma construção narrativa consistente e com muita garra que se escora na sutileza para gerar momentos genuínos de pura graça e harmonia. 

As ansiedades de uma idade confusa, inquieta, marcada por descobertas, desavenças, loucuras e emoções à flor da pele, a adolescência, retratada na pele de uma moça que está passando dessa fase para a vida adulta encarando as expectativas e as realidades do seu mundo conflituando com o que ela realmente quer para si, o turbilhão de responsabilidades e mudanças que prenunciam a chegada da maturidade sinalizam para uma necessidade de auto-transformação, renovação e afirmação pessoal, que irá desembocar nessa jornada amalucada de uma jovem querendo fugir da sua cidade natal a qualquer custo, mesmo estando nela depositadas as suas memórias, seus anseios, sua vida. É a necessidade de fugir que a faz odiar um lugar que, na verdade, é o receptáculo de todas as suas energias, sentimentos e sonhos. Odiamos e reclamamos tanto, só para depois percebermos o quanto nutríamos amor, mascarado de repulsa e desgosto.