sábado, 31 de agosto de 2019

O QUE RESTA DO TEMPO (2009)


O palestino Elia Suleiman só dirigiu quatro filmes até hoje, e em todos eles o pano de fundo é o mesmo: a conturbada relação entre palestinos e israelenses, e a afronta territorial que ilustra os conflitos entre eles. Intervenção Divina discute o tema com mais flexibilidade, através de um olhar discreto e cenas bastante inventivas. O filme seguinte, O Que Resta do Tempo, é um exercício de cinema que explora o conflito atravessando as barreiras do tempo e suas marcas na vida do diretor (que no filme também é o personagem principal). 

Recontando em fragmentos momentos tensos do país enquanto, paralelamente, projeta memórias de sua vida, da infância, da adolescência até a vida adulta, Suleiman alicia seu habitual senso de humor exótico ao retrato sociopolítico da Palestina que testemunha violentos conflitos em razão do domínio territorial, disputado por palestinos e israelenses, e que data desde os tempos bíblicos, enquanto traz para dentro da equação uma visão pessoal sobre sua vida e as lembranças, dimensionando os tempos em que elas estão inseridas. 

Elia Suleiman revisita suas memórias e também o passado de sua nação com uma genialidade e acidez política que coloca este filme num patamar onde poucos chegaram, com uma intimidade travestida de crítica com comédia, repleta de nuances acertadas e que traz para os nossos dias uma perspectiva limpa e consistente, historicamente. A inventividade cinematográfica aparece em muitas decisões do diretor, inclusive na narrativa, onde o filme parece respirar mais durante seus três atos, até por ser um filme simples no seu formato. 

Fiquei deliciado de assistir um filme que trata a história com um olhar que passeia por muitos sentimentos, seja no humor ou na dor, e que constrói um retrato próprio, com todas as suas idiossincrasias, repleto de delicadeza, nostalgia e personalidade. Pelo menos no cinema recente O Que Resta do Tempo é uma obra-prima sui generis, para ser vista e revista, vinda de um cineasta que sabe fazer filmes com uma precisão afiada e humor irreverente.

O Que Resta do Tempo
The Time That Remains
dir. Elia Suleiman
★★★

QUANDO CHEGA A ESCURIDÃO (1987)


Eu ainda tenho que conhecer mais filmes da filmografia pré-THE HURT LOCKER de Kathryn Bigelow, e esse aqui, pelo que eu via, era um dos que a galera mais gostava e recomendava. Foi uma ótima escolha pra adentrar o começo da carreira de uma grande cineasta que já nos primeiros filmes dava passos gigantes. Mistura de western, CREPÚSCULO e filme de terror, este NEAR DARK foi me ganhando aos poucos. O filme chega na metade e dali pra frente eu já não tinha mais dúvidas do filmaço que era.

Tem umas cenas muito bem costuradas e, no geral, sabe muito bem como se manter no mesmo clima durante a sessão toda, como se fosse proposital mergulhar o filme numa atmosfera meio indefinível, atípica, mas que acaba dando muito gosto de acompanhar quando exercita a tensão. O resultado é um filme fascinante. Automaticamente uma espécie de clássico escondido dentro da carreira de uma diretora que ainda pode nos dar muitas obras, sendo essa aqui uma das mais desnorteantes delas. O trabalho de som também está incrível, especialmente durante os tiroteios.

As sequências mais escatológicas acabam surpreendendo bastante também até por serem muito bem arquitetadas, assim como o lado mais romântico do filme acaba ganhando uma luz especial em certos momentos (e os dois atores principais, Pasdar e Wright, estão ótimos). É interessante que NEAR DARK consiga transitar por diferentes gêneros dentro de um só formato, sem se alienar ou precisar passar por vários tons para chegar em um resultado que se estende pelo filme todo, com um clima sombrio e ao mesmo tempo convidativo e meio aconchegante. Confesso que só comecei a me empolgar lá no meio, quando as coisas começam a esquentar mais.

E eu não sabia de nada sobre a história antes de começar a assistir, o que deixou as coisas até mais apimentadas. E quando a gente acha que histórias de vampiros já estão saturadas há muito tempo, vem um filme que olha com curiosidade para os "assuntos de família" e os empecilhos do romance dos jovens protagonistas, sobre as diferenças de seus mundos colidindo no meio de tanta violência, e então se entrega um desfecho temperado das cenas explosivas que vem antes. Pra concluir, a mise-en-scène está em ótima forma em todos os níveis, o que é ainda mais satisfatório, lembrando que temos uma diretora como Bigelow, que sabe filmar ação (tiroteiros, combates e explosões) como ninguém. Acho que podemos concordar que nisso ela é uma baita cineasta.

Quando Chega a Escuridão
Near Dark
dir. Kathryn Bigelow
★★★½

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

ZAMA (2017)


Depois de ter legado ao cinema argentino os excelentes O Pântano, A Menina Santa e A Mulher Sem Cabeça, Martel esperou e, após um hiato de quase uma década, regressou com Zama, seu amargo retrato do pesadelo colonial na América do Sul, recriando personagens enclausurados pelo ambiente escurecido pela colonização, nos seus limites. Através do personagem-título, Diego de Zama, uma das mais prolíficas cineastas do nosso continente investiga a tensão febril do colonialismo e tece um registro selvagem das rupturas da civilização como quem pinta um quadro com exata compreensão do que está retratando, de todos os detalhes e de todos os sentimentos que eles estão representando. 

Nesse intervalo entre um filme e outro, observamos as diferenças que culminaram neste novo trabalho e o que permanece no estilo da diretora. Zama se distancia um pouco do terreno dos outros três filmes anteriores, mas acentua o olhar que a Martel tem para desconstruir a história da forma mais dilacerante. Tenso, estranho e selvagem, Zama é preenchido pelas cenas mais inesperadas, talvez até para um filme histórico, e como resultado temos um filme que não pretende ser decifrado, mas que carrega dentro de si um peso histórico enorme, e a Martel, na sua primeira levada épica, soube costurar com precisão cada parte desse filme quase assombroso pelo seu rigor. Cria uma atmosfera de não-pertencimento que é por si só estremecedora, e que afeta todos os personagens. 

Zama é um marco na carreira de uma grande cineasta como Martel, e um exercício épico dos mais vertiginosos e cativantes no cinema recente. É um retorno mais que bem-vindo de uma diretora que sempre mostou muita maturidade e firmeza em fazer cinema, e aqui não foi diferente nesse quesito. Ela dá passos mais largos em direção a um cinema inesperado, inventivo, único. 

Zama
dir. Lucrecia Martel
★★★

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

SPIELBERG + WILDER


CAVALO DE GUERRA (2011)
(War Horse, dir. Steven Spielberg)


Realmente, acho que não tem outro cineasta atualmente devoto ao cinema clássico que nem o Spielberg que consiga reproduzi-lo com tanta paixão e excelência. Cavalo de Guerra é uma incursão no gênero de épico/guerra com o usual respeito que Spielberg tem ao cinema de outrora, só que reforçado em muitos aspectos. O filme se impregna disso tanto na sua forma como na composição, o que pra mim foi fascinante. Até funciona no formato adotado, de circular por diferentes histórias dentro de um mesmo período, mesmo que o roteiro tenha suas fraquezas ao fazer escolhas que prejudicam o andamento do longa, que dá a impressão de que se arrasta um pouco ali na metade. Apesar disso, Cavalo de Guerra prova ser um Spielberg em ótima forma. A fotografia por si só já eleva o filme a um outro patamar, e as sequências são bem deslumbrantes.

Um retrato sentimental e doloroso daqueles que atravessaram a guerra e testemunharam seus horrores, não muito diferente do que estamos acostumados a ver no cinema americano, mas bastante seguro da sua mensagem poderosa, dando passos firmes e precisos para isso. De partir o coração. E, mesmo diante das feridas deixadas pela guerra, surge uma certa esperança, e isso é retratado aqui. Saber como dar um bom desfecho em uma trama assim é o maior mérito desse Cavalo de Guerra, um Spielberg comovente, denso e enamorado do classicismo. 

O PECADO MORA AO LADO (1955)
(The Seven Year Itch, dir. Billy Wilder)



Não me pegou tanto do jeito que eu achava que ia, mas de certa forma é Billy Wilder, tem umas cenas impagáveis e a Marilyn Monroe, que está fantástica e no seu papel mais icônico. Um filme frequentemente enquadrado como clássico, com uma fotografia deslumbrante, que merece o nosso respeito, mas que fica aquém de outros grandes trabalhos de Wilder no cinema. Tem uma pegada mais teatral, com diversas cenas em que o personagem está falando sozinho, o que não deixa de fazer parte da graça do filme, que é uma típica comédia hollywoodiana da época, com um sugestivo apelo erótico na personagem da Monroe, cobiçada pelo vizinho atrapalhado. Por ser feita nos moldes clássicos, há uma noção mais ingênua de graça, que também tem a ver com o atrevimento e a ousadia que permeiam a narrativa (quase escandalizante para os padrões da época). É compreensível que ele figure como um dos filmes mais deliciosos e icônicos do gênero. Quem sabe com uma revisão minha nota não aumenta.

Cotação:
CAVALO DE GUERRA ★★★
O PECADO MORA AO LADO ★★★

domingo, 4 de agosto de 2019

ASSUNTO DE FAMÍLIA (2018)


Fazia um tempo que eu não assistia um filme que me tocasse tanto por conta da história e dos personagens, de uma forma tão pura e desprevenida. Assunto de Família foi destaque por ter conquistado inúmeros prêmios e ter dado a Hirokazu Kore-eda sua primeira indicação ao Oscar, mas o cinema do japonês já é visto com muita atenção e prazer por muitos dos seus belíssimos trabalhos anteriores, que falam tão delicamente sobre a força dos laços de família, de uma forma que talvez nenhum outro cineasta ativo no mundo possa se comparar.

E Assunto de Família me pegou de surpresa. É um filme muito querido, extremamente cuidadoso com seus personagens e o desenrolar da história. Fiquei encantado porque o filme me tocou muito, e com tamanha honestidade. Me fez sentir mais ou menos a mesma coisa de quando eu assisti Depois da Tempestade, um filme que me deixou tão movido quanto, só que com uma porrada de sentimentos mais latentes, que fazem parte das surpresas que surgem nessa sentimental narrativa sobre uma família bastante inconvencional e, ao mesmo tempo, regada a muito amor e carinho.

Quem quer que esteja inserido dentro de uma família (em geral) vai entender o que esse filme quer dizer. Afetos, convivência, proximidade, união: a família nesse filme é um conjunto de coisas todas juntas, como que não para definir, mas fazer a gente sentir a força de vínculos profundos e que constroem quem a gente é. Há cenas tão lindas que é capaz de levar a gente às lágrimas. A compreensão humana e delicada de Kore-eda sobre seus personagens, inseridos numa situação incomum, se alia à perspectiva irônica sobre as falhas do sistema capitalista, e que mesmo em países desenvolvidos como o Japão a população é negligenciada pelo Estado.

Apesar de tocar em todo um rol de temas mais sérios, Assunto de Família  é um filme levinho e ao mesmo tempo carregado, que toma para si laços preciosos e tira deles muita beleza, inclusive o real significado de ter uma família. E eu entendi porque se falou tão bem desse filme. É lindo demais. Muito lindo mesmo. O filme mais bonito desse ano, talvez. Me conquistou e eu fiquei apaixonado pelo seu tratamento com os personagens e com a história. Com esse filme, Kore-eda costura uma visão necessariamente humana e calorosa de relações em que o amor é posto em primeiro lugar. Sentimental, mas honesto. E essencial também.

Assunto de Família
Manbiki Kazoku
dir. Hirokazu Kore-eda
★★★★★

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

PSICOSE (1998)


É até meio divertido ver Gus Van Sant se arriscar a fazer um remake shot-for-shot de um dos filmes mais inimitáveis já feitos, seja em relação a seu status no ranque dos maiores, seja no que diz respeito a seus primores cinematográficos. Mais do que essa tentativa de ser uma cópia (quase) fiel, Psicose é o resultado do flerte de Van Sant com o suspense hitchockiano, penso eu que a intenção não era contrapor um ao outro, mas criar uma versão distorcida do original, para reimaginar/reforçar/re-estilizar, enfim, depende da interpretação de quem vê. Os quilos de referências encontradas nessa adaptação impossivelmente remeterão a outra coisa a não ser a obra de Hitchcock, e fica difícil estabelecer parâmetros quando existe essa simbiose tão inevitável entre os dois.

Praticamente é o mesmo filme, mas a trilha, a fotografia e a re-concepção de outros detalhes em relação ao original, Psicose estabelece um jogo de imitação e recriação, sem exatamente pretender consertar erros ou adicionar outros objetivos ao filme que foi refeito, como acontece com muitos remakes, até porque, falando de Psicose, não há praticamente nada a ser complementado ou alterado. 

À parte dos exageros, das cenas icônicas recriadas e picotadas risivelmente, e essa fotografia curiosa, Psicose de Van Sant funciona melhor sem a comparação, mas ela é fundamental pra certos aspectos do filme, que foi lido por muitos como uma tentativa ofensiva de reimaginar um grande clássico. Mas também é possível eleger a pretensão cinéfila de Van Sant em compreender Hitchcock nos seus detalhes e, literalmente, na execução de seu estilo único. É um caso singular no cinema, em que temos dois cineastas distintos tendo seus estilos fundidos num mesmo filme. Por mais irregular e pecável que seja, Psicose é uma anomalia inusitada, uma provocação cinéfila que deve intrigar os admiradores de ambos Hitchcock e Van Sant. Uma reverência, um insulto? De todo modo, se o remake de um grande filme não se faz mesmo necessário, pelo menos gera uns debates impressionantes.

Psicose
Psycho
dir. Gus Van Sant
★★★