domingo, 28 de fevereiro de 2016

Crítica: "AS MEMÓRIAS DE MARNIE" (2014) - ★★★★


Recentemente, o Studio Ghibli anunciou que iria encerrar as suas atividades. As Memórias de Marnie, o vigésimo filme da produtora, é o ponto final dessa que é uma das maiores e mais importantes produtoras de animação da história do cinema. O desenho é dirigido por Hiromasa Yonebayashi, diretor do recente Arriety, assinado pelo Studio Ghibli. Ainda não vi o tal, mas confesso que me deliciei com As Memórias de Marnie. Nem de longe é o melhor ou o que podia ser melhor vindo da produtora Ghibli, mas tem uma marca forte dos filmes da empresa e se consagra como um trabalho razoável. Além disso, trata-se de um filme muito bonito com uma história emocionante e que prende a atenção. É bom mesmo.

Na animação, Anna, uma menina de 12 anos solitária e que tem um jeito de depressiva, sofre de asma e, após um ataque na escola, é enviada à casa dos tios no interior. Lá, a garota fica fascinada com uma casa no lago. É aí que ela descobre Marnie, uma garota mestiça (spoiler?) que parece ter vindo de outra época, e que se torna a melhor amiga de Anna, que se apaixona pela guria. 

As Memórias de Marnie carrega um astral de melodrama romântico que desvanece com o final do longa e quando a gente descobre o que é o quê e quem é quem, mas enquanto se estende, na maioria do tempo, é sensacional. A dinâmica da trama nos envolve e ajuda na composição de um desfecho triunfal. O melancólico As Memórias de Marnie, no fim, é um trabalho digno. Não consegue superar as expectativas mas está de bom tamanho. Quem é fã do Studio Ghibli vai gostar. É garantia. Os traços não enganam. E a indicação ao Oscar também foi super merecida, embora esta animação esteja aquém dos dois indicados anteriores do Studio Ghibli na categoria (O Conto da Princesa Kaguya em 2015 e Vidas ao Vento em 2014).

As Memórias de Marnie (Omoide no Mânî)
dir. Hiromasa Yonebayashi - 

Crítica: "O MENINO E O MUNDO" (2015) - ★★★★★


Que Horas Ela Volta?, escolhido nacional para competir por uma vaga em Filme Estrangeiro, ficou de fora da shortlist em dezembro do ano passado e entristeceu a quem mantinha nele uma aposta firme de forte concorrente. Eis que nos surpreende entre os indicados ao prêmio a produção nacional O Menino e o Mundo, nomeado a Melhor Filme de Animação. O primeiro representante nacional nato há 13 anos, desde Cidade de Deus (apenas os produtores britânicos de Lixo Extraordinário foram indicados em 2011; apesar do diretor e dos compositores indicados brasileiros, Rio é uma animação americana, falada em inglês; O Sal da Terra nomeou uma produtora brasileira, mas é um filme totalmente não-brasileiro - por exemplo, a maior parte do tempo em tela, o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado fala em francês) é uma delícia de filme. Que bela surpresa é O Menino e o Mundo. É um orgulho e tanto ter o filme, maravilhoso, como representante do cinema brasileiro nessa edição do Oscar. 

E o que mais dá orgulho nisso tudo é que temos um filme animado nos representando no prêmio. Animado. São raros os exemplares de animação nacionais nos tempos atuais. Eu mesmo não consigo me lembrar agora de um. Outra coisa bastante inusitada é ver que o primeiro indicado brasileiro a Melhor Animação não foi o Carlos Saldanha (risos), que sequer dirigiu na vida uma animação aqui no Brasil (também, como o pobre coitado iria financiar a produção?). Saldanha teve sorte no exterior e pôde trabalhar dentro de uma das empresas de animação mais ativas da atualidade, a 20th Century Fox Animation, nos representou também como indicado ao prêmio uma vez, lá em 2004, no mesmo ano de Cidade de Deus, em Melhor Curta-Metragem de Animação (Carlos foi indicado por Gone Nutty, um curtinha do personagem Scrat).

O Menino e o Mundo, ao contrário dos projetos de Saldanha, é uma produção bem menos comercial e tecnicamente rica. Os recursos técnicos, aliás, são baixíssimos, mas Alê Abreu, o diretor/roteirista, transforma simplicidade em grandiosidade com genialidade (olha, rimou!). E criatividade (rimou de novo!) E isso é o que não falta aqui. 

No desenho, um garoto do interior, entristecido, vai à procura do pai, que saiu para trabalhar na cidade grande, e dá de cara com uma realidade distinta. A história é de aquecer e cortar o coração ao mesmo tempo. O Menino e o Mundo ostenta de uma beleza e ingenuidade tão simbólicas que chamá-lo de encantador é pouco. Fábula realista, talvez, mas nem tão realista assim, suavizado com um toque de magia, diria. 

As sequências quase oníricas são prazerosas de se ver e emocionantes. O Menino e o Mundo é mais que rabiscos, é mais que uma revolução, é mais que uma vitória... É uma experiência única e indescritível por si só. É enfeitiçante. Alê Abreu trouxe ao mundo um trabalho forte e importante que merece ser conferido por todos. Se levasse o Oscar, seria bonito demais... Merecido com certeza é. 

O filme é quase mudo, não possui muitas falas, mas tem uma extravagância, uma certa força, que nenhum diálogo jamais poderia reproduzir. É selvagem e mundano, idealista e direto. Espetacular. É um presente do "Deus do cinema". Triunfal. Ou mais que isso. Ou tudo de bom. De onde vem todo esse barulho, toda essa riqueza, todo esse brilhantismo? Vem da leveza? Vem da tenacidade? Vem do doce? Vem da lembrança? Só sei que O Menino e o Mundo é lindo demais. Lindo, lindo, lindo, lindo, e mais incondicionalmente lindo ainda. É mais lindo que o lindo do lindo. 

Esqueça a animação computadorizada. Esqueça todos esses mecanismos modernos e a tecnologia que os abraça. Esqueça tudo. Veja O Menino e o Mundo. O grande quê de ver essa animação é seu tecnicismo manual riquíssimo. Arrisco: é uma das animações mais visualmente bonitas que eu já tive a chance de ver em toda a minha vida. E não, não é exagero dizer tal coisa, arrisco. É impossível comparar. O Menino e o Mundo é do jeito que é e ponto. Nunca houve um filme assim. 

O malabarismo de cores é um deleite imenso. Outra coisa que tem e de sobra em O Menino e o Mundo: cor. Traduzindo: vida. Há uma sobreposição bastante interessante, quando se opta por uma transição atribulada: quando o menino deixa o seu lar rural, o visual do filme se transforma drasticamente. O cinza das fábricas, da melancolia e da, então, falta de vida, azeda a jornada do pequeno garotinho protagonista assim que o mesmo adentra às sombras de um centro quebradiço e ordinário: a cidade. A imperfeição de uma realidade chula e bizarra.

O choque da realidade com a humanidade é um contraste devastador. A ausência de opções e chances é sufocante. Viver num mundo onde reina a ignorância e o poder intransitivo é triste demais. A recusa à aceitação encarna resultados desagradáveis. O conforto nas memórias de um passado perfeito. A paternidade. A distância. O sonho. A verdade. A ilusão. A destruição. A partida. Alê Abreu introduz em O Menino e o Mundo um complexo e multifacetado mix de temáticas que tem muito a nos ensinar, dos mais distintos ângulos. 

A representação filosófica de um sistema doentio e apocalíptico: uma prisão. Quem não se enquadra às demandas desse planeta absurdo premissa uma cruel marginalidade. Os padrões de vida de uma sociedade consumista que hoje em dia tem o mesmo impacto das leis. A isolação como privação. O êxodo. A procura existencialista por melhores condições de vida. Os trajetos. O abandono. A desigualdade. A dor. O mal dos tempos modernos. 

O menino. O mundo. A criança. O adulto. O ingênuo. O sofredor. Quem dera ser menino para sempre, desconhecer o triste mundo em que habitamos, esse ninho de ratos, não ter problemas nem saber o que é a tristeza. 

O Menino e o Mundo, com toda a sua magia, beira a doçura e a escuridão. Afinal, é feito para crianças e para adultos. É um retrato verdadeiro e excepcional do mundo atual. Não dá pra esquecer tão facilmente. É uma aquarela de emoções vibrante. Cabe a nós decidir quem seguir: o menino ou o mundo. Na dúvida, eu já sei a quem seguir: O Menino e o Mundo, poesia em forma de registro cinematográfico. Profundamente belo, é uma obra memorável, um rodamoinho de atrações. Corra pra ver, meu filho! Uma crônica tocante, interminavelmente admirável. Ganhou meu voto. E ponto final. Ah, já falei pra vocês que é um filme lindo?

O Menino e o Mundo
dir. Alê Abreu - 

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Crítica: "JUNO" (2007) - ★★★★


É tanto filme que eu preciso rever que se mal consigo eu me recordar de seus nomes quem dirá se os vi por inteiro ou coisas do tipo (a confusão é maior com os filmes que vejo na TV, que costumam cortar muita coisa). No caso de Juno, peguei uma vez pra ver há um tempão mas deixei de lado e acabei sem terminar de ver. Fiquei evitando o filme na Netflix e decidi hoje pegar pra ver. Olha, rapaz, e não é que eu gostei de Juno? Poxa vida, que filme extraordinário é Juno. Gostei pra caramba. Um dos destaques do cinema indie mais adorados dos últimos tempos, Juno é um daqueles filmes que merecem ser vistos, de verdade. É um trabalho cinematográfico de primeira não só inesquecível como também admiravelmente doce e sensível.

No filme, a bela garota-revelação Ellen Page (no papel que a levou a uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz em 2008) interpreta Juno MacGuff, uma adolescente de 16 anos que engravida acidentalmente de um colega de classe e que decide doar o bebê a um casal bem-sucedido com condições para criá-lo. 

Jason Reitman, filho de Ivan Reitman (de onde vocês acham que ia vir o sobrenome Reitman, at all?), diretor de Os Caça-Fantasmas, fabricou uma joia rara. Quer dizer, ele fez mais do que dar ao filme um crédito de direção. A direção dele é uma das melhores coisas de Juno. O projeto, na verdade, é todo da Diablo Cody, escritora e ex-stripper que fez a sua estreia cinematográfica como roteirista com Juno, e conquistou o único Oscar do filme, de Roteiro Original. Cody deu vida ao filme.

Juno desconstrói a seriedade de uma temática tachada de tabu ainda recente e presente na sociedade e torna a jornada da brincalhona Juno em uma história avassaladora e que não busca julgar ou pintar defeitos. É apenas um filme sobre uma garota que engravida que quer viver e ser vista normalmente apesar de, e nada mais. Obstáculos morais? Nem pensar. O filme opta por um retrato mais suave, digamos, e menos condenante ou culposo. Os personagens adultos, aqui os pais da menina e o casal que quer adotar o bebê, não são envilanescados como poderia ser até previsto, mas isso não torna a trajetória dela fácil. É tudo muito fofo, muito colorido, muito macio, adocicado, mas não fácil. O filme deixa claro isso.

O humor despretensioso, piadista e irônico do filme ajuda a aliviar a tensão do drama contraído. Juno é um trabalho caprichado, não caprichoso, e simples que vai te conquistar. A leveza, o desfecho natural, os personagens... Juno é um filme maiúsculo, tocante. É pra assistir e aplaudir de pé. Simplesmente fantástico.

Juno
dir. Jason Reitman - 

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Crítica: "99 CASAS" (2014) - ★★★★


O Oscar é domingo e todo o mundo está acompanhando de perto o calor do evento e cultivando a ansiedade. No mais, já disse um bilhão de vezes e volto a repetir, esse foi um Oscar bem confuso. Não me levem a mal, a maioria dos candidatos são certos, e essa até que é uma edição mais organizada, comparada a outros anos, mas a falta de variedade dos filmes nomeados, a previsibilidade... Já tivemos coisa melhor. E ainda, enquanto o planeta já se vê comemorando a 1ª vitória certeira do DiCaprio, estou procurando ficar psicologicamente relaxado nesses dias (sem sucesso) para evitar dores de cabeça com as possíveis decepções que a noite de domingo me trará, como aconteceu no ano passado (terem deixado Boyhood com uma só estatueta foi uma injustiça vergonhosa). E, do Oscar desse ano, a categoria mais injustiçada e quebrada foi a de Melhor Ator Coadjuvante. São muitos os motivos.

Ainda que muitos atores importantes, donos de performances exímias, tenham sido deixados de fora, a categoria de Ator Coadjuvante até que conseguiu ser bastante equilibrada, assim como a de Atriz Coadjuvante, mesmo a par de injustiças (Oscar sem injustiça é como um rádio sem o botão de volume). Dos que não conseguiram finalizar, estão, entre os principais: Idris Elba (Beasts of No Nation), Paul Dano (Love & Mercy) e o Michael Shannon, por 99 Casas. Eu gostei de todos os indicados, e não trocaria ninguém por ninguém, mas deveriam ter nomeado o Michael. Ele está ótimo aqui. E, nessa levada, seria muito justo terem nomeado também o Andrew Garfield, que está ainda mais excepcional que o Shannon. 

Em 99 Casas, Garfield vive um trabalhador que faz pontas em construções e que é despejado de sua casa por um inescrupuloso agente imobiliário, vivido por Michael Shannon. Por coincidência, os dois se reencontram e Dennis Nash (Andrew) começa a trabalhar para Rick Carver (Shannon), no intuito de sustentar sua mãe (Laura Dern) e o filho e recuperar a sua casa, tomada pelo governo. Porém, nem tudo são rosas no novo trabalho de Dennis. 

Aos poucos, Dennis vai substituindo o chefão e passa a despejar em nome da corporação. O protagonista enfrenta um dilema moral: inevitavelmente ele passa a se solidarizar com as figuras que vai encontrando e conhecendo: pessoas inseguras, sem pra onde ir, totalmente perdidas e que estão profundamente abaladas e traumatizadas pela crise no ramo imobiliário nos Estados Unidos (lembra bastante A Grande Aposta, tirando toda aquela complexidade Wallstreetiana & cia.). Enquanto isso, ele não enxerga outra alternativa senão trabalhar despejando pessoas: o cara não tem formação acadêmica, largou a escola antes de finalizar os estudos, e que antes mal conseguia sustentar a família com baixos salários nos trampos de carpinteiro/mecânico/encanador...

Quer dizer, como se vive assim? O único jeito é ignorar. É cada um por si. Pode soar egoísta, mas a tática é sobreviver. E a gente sobrevive como pode, custando isso o que custar. O cineasta metade persa metade americano Ramin Bahrani fez sucesso em 2007, com seu hit indie Chop Shop, aclamadíssimo e que conquistou de primeira o renomado crítico Roger Ebert, que o nomeou um dos melhores filmes não só da década mas de todos os tempos. Ele é o diretor/produtor/roteirista de 99 Casas.

O retrato da história inspirada em fatos reais distancia-se dos clichês popularmente coniventes ao subgênero e revela-se um poderoso trabalho crível e sublimemente singular. O elenco é pequeno (na verdade o filme é praticamente apenas Shannon, Garfield e Dern) mas forte o suficiente para impressionar e deixar a sua marca. A potência dramática de 99 Casas é surpreendente. A sequência final, por exemplo, é chocante de tão poderosa. O diretor independente Ramin Bahrani se confirma como uma das apostas mais promissoras da temporada. A dupla protagonista é perplexamente talentosa. 99 Casas é um filme maravilhoso. Recomendável. Não chegou ainda em solo nacional.

99 Casas (99 Homes)
dir. Ramin Bahrani - 

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Crítica: "BANANAS" (1971) - ★★★★


Depois de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, Woody Allen nunca mais regressou às comédias escrachadas e satíricas que marcaram o início da sua carreira, e que é definitivamente uma de suas fases mais inspiradas. Até tem certos filmes que relembram a fase, mas não lá exatamente um revival. A sátira nos filmes do Woody dali a seguir ganharam um tom mais inibido ou disfarçado. É tanto que em Woody Allen: Um Documentário é mencionado que o público americano "nunca perdoou" Woody por ter abandonado o gênero pastelão, rasgado. Bananas, um dos primeiros longas do diretor, é um dos exemplares mais gostosos e engraçados dessa safra. 

Em Bananas, Woody Allen interpreta Fielding Mellish, típico novaiorquino neurótico e sem-um-parafuso que trabalha testando produtos para uma grande corporação. Tendo abandonado a faculdade, Mellish gasta seu tempo reclamando das presepadas da vida e lamentando frustrações. Até que ele conhece uma ativista (Louise Lasser) e se apaixona perdidamente por ela. Após um tempo, ela decide dar um tempo na relação, e Fielding parte para San Marcos, um pequeno país latino que atravessa uma pesada ditadura.

A cena inicial de Bananas já dá uma dimensão do que é o filme: um repórter americano cobre ao vivo o assassinato do presidente de San Marcos, com direito a "entrevista" com a vítima, detalhes da cobertura, comentário... Essa amostra é praticamente uma garantia do show de comédia que é Bananas. Woody satiriza genialmente o estilo de vida em diferentes nações e os conflitos de estado, bem como a liderança e as maluquices das relações de poder. A análise é minuciosa e excentricamente bizarra. Bananas explora e critica através do bom humor as loucuras, os hábitos, as situações e as frenesis do mundo atual e da sociedade das mais diferentes maneiras. 

O protagonista trapalhão e que se mete nas mais doidas encrencas, o amor perfeito que sempre arruma um jeito de nos atrapalhar, o espírito de leveza e ironia que nos carrega no ar, as nuances de um humor piadista livre e sensacionalista (num bom sentido). Bananas é excepcional. E muito, muito, muito engraçado. A comicidade Alleiana nunca esteve tão bem trabalhada num ritmo tão circense e brincalhão como foi em Bananas. Acho que no quesito humor, tratando-se dessa fase inicial do cineasta, Bananas só perde para Dorminhoco (levando em consideração que ainda não vi Um Assaltante Bem Trapalhão e Tudo o que Você Sempre quis Saber sobre Sexo* (*mas tinha medo de perguntar))

Woody despe a seriedade de uma temática ainda recente e polêmica para fabricar um humor limpo e intenso. Ele dá asas à sua imaginação como diretor, roteirista e também ator para dar vida à uma comédia única em toda a sua carreira, uma das melhores que ele já fez, provoco. Afinal, brincar com o cinema também é permitido, ora essa! Nesse quesito, Woody tira 10.

O iconismo das sequências satíricas agradáveis de se contemplar e marcadas pela inteligência espelha o quanto esse trabalho não soube ser apreciado e não foi reconhecido à altura, o que é infelizmente uma lástima, tratando-se de um de seus filmes mais divertidos. Citando essas cenas hilárias, estão, entre as minhas favoritas, a abertura, a operação cirúrgica, a picada da cobra (que na verdade é um pequeno fragmento), o jantar (quando a cena foi preparada para ser filmada, os instrumentos que seriam utilizados por uma pequena orquestra, alugados, não tinham chegado ainda, então Woody sugeriu que os atores apenas fingissem tocar, sem os instrumentos - essa passagem, ironicamente, é uma das mais engraçadas do filme inteiro), o treinamento rebelde, a cena do metrô (Sylvester Stallone aparece como um figurante, arruaceiro), o julgamento (aquele trocadilho com o J. Edgar Hoover me fez gargalhar alto), a da loja de revistas, a do protesto, a cena final... E por aí vai. É cada cena boa, que o filme de 80 minutos e pouco passa voando. As cenas locadas em San Marcos foram filmadas no Peru e na Costa Rica. 

Bananas
dir. Woody Allen - 

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Crítica: "CHICAGO" (2002) - ★★★★★


Lembro de ter gostado mais de Chicago quando vi da primeira vez. Gostei pra caramba, gostar de chamar de obra-prima. Mas o trabalho foi decrescendo no meu conceito de uns tempos pra cá. E não que eu esteja dizendo que ele não envelheceu bem. O que explica é que eu já vi tantas vezes Chicago que o filme não é tão charmoso como foi da primeira vez. Não é mais tão mágico. E, mesmo assim, uma revisão não deixa de ser precisa. Por outro lado, a beleza visual do filme só tende a me impactar mais e mais com o passar do tempo. Não sei se foi porque da primeira vez vi na telinha, mas, enfim, só sei que Chicago, de umas revisões pra cá, veio me maravilhando cada vez mais no quesito beleza. Em consequência, ele não se sustenta em uma revisão.

O longa é o mais recente musical a vencer o Oscar de Melhor Filme, e conquistou uma porrada de prêmios fora o principal na mesma noite, incluindo Atriz Coadjuvante para a Catherine Zeta-Jones e outras condecorações técnicas (do tipo Direção de Arte, Figurino... Essas coisas de musical). Ainda não vi O Senhor dos Anéis: As Duas Torres, mas pra mim o Oscar naquele ano deveria ir a O Pianista, mas eu ficaria igualmente contente se fosse para ou As Horas ou Gangues de Nova York, mas Chicago foi uma vitória O.K., e justa. 

Estreia do diretor de TV Rob Marshall (que nos trabalhos seguintes não obteve o mesmo sucesso de Chicago) no cinema, Chicago obteve uma grande aclamação por parte da crítica e de público. E não me estranha em nada tal sucesso. Chicago é um musical bastante especial. Tem certas imperfeições mas é com certeza um trabalho cinematográfico de primeira. 

A começar pelo elenco triunfal, que estrela Renée Zellweger na pele da iludida Roxie Hart, Catherine Zeta-Jones como Velma Kelly, Queen Latifah como a carcereira Mama Morton, Richard Gere como o advogado Billy Flynn, e por aí vai. E como um elenco esforçado e talentoso ajuda, e em muito, num musical, hein? O que seria de Chicago sem esse elenco fenomenal, liderado pela Renée Zellweger numa performance de ouro.

Chicago esbanja em seu universo colorido e atrações musicais simplesmente divinas uma visão moral da vida que, ainda supérflua, sai ilesa. Afinal, como todo bom musical, Chicago é exagerado, elétrico e lotado de clichês. O gênero é praticamente composto dessa receita exótica.

Por outro espectro, Chicago funciona como um espetáculo inventivo e que foi feito para o entretenimento. As coreografias sincronizadas, os passos malucos, o timing meticuloso, os repertórios acalentadores... O jazz! Ah, o jazz! Meu amigo, jazz e ritmo são duas coisas que não faltam em Chicago. É contagiante. 

A historinha de crime, ódio, redenção, devoção e loucura passada na Chicago dos anos 20 é o motor da trama contrapontada de Chicago, cidade onde os crimes alimentam o imaginário da vida comum, que é capaz de transformar uma dama qualquer que sonha alto numa celebridade. Interessante descobrir que o material original, peça, foi desenvolvido como crítica ao showbiz. Chicago, entre outras, é um baita de um filme. Curioso, tocante, encantador, frenético... Ah, frenético! Se tem algo que não falta em Chicago é frenesi... E paixão à vida.

P.S.: Foi com esse filme que eu me apaixonei pelo jazz.

Chicago
dir. Rob Marshall - 

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Crítica: "QUANTO MAIS QUENTE MELHOR" (1959) - ★★★★★


Às vezes a muvuca do circuito e dos filmes que vão entrando em cartaz é tão grande que a gente acaba deixando de lado os filmes antigos ou clássicos para ver. Foi o caso de 2015, ano em que eu estive tão atarefado com as estreias que acabei deixando os outros pra outra hora e acabei me embolando todo. Por isso, esse ano darei prioridade aos clássicos e tentarei me desvencilhar dos lançamentos. Quer dizer, tentar eu vou tentar, mas do jeito que as coisas andam não se tem garantia de que manterei a promessa por muito tempo, ou no ritmo intencionado.

Enfim, não estou aqui pra prever o futuro, mas sim para falar sobre Quanto Mais Quente Melhor. Rapaz, sou um grande fã do Billy Wilder (o considero um dos maiores diretores) mas confesso que até hoje nunca tinha conferido este aqui dele. Já vi Crepúsculo dos Deuses, Se Meu Apartamento Falasse entre outros, mas acho que dos essenciais eu só não tinha visto esse aqui, Farrapo Humano (faz um tempo parei pra conferir no TC Cult mas só vi o começo, e gostei do que vi) e Pacto de Sangue. Pois é, vexaminoso. 

Ao contrário dos dois últimos citados, Quanto Mais Quente Melhor é um trabalho mais leve, descontraído, e bem menos pesado e rigorosamente dramático. Acho que da filmografia do Wilder este aqui é bastante semelhante a Se Meu Apartamento Falasse, que veio ao mundo poucos anos depois de Quanto Mais Quente Melhor. Se bem que Se Meu Apartamento Falasse puxa pro lado dramático também, mesmo que seja cômico, então...

A simpática comédia de Billy Wilder, a provável melhor já feita por ele, desfila sob um humor atrativo fácil de conquistar e chamar a atenção. Quanto Mais Quente Melhor carrega um frescor atemporal e seduz o espectador aos poucos. Não há como resistir. A suavidade de uma narrativa serena e bem construída carrega o espetáculo. E, além de tudo, é divertido pra caramba. Nunca pensei que ia gargalhar tanto. É um clássico extremamente obrigatório para todo amante da 7ª arte. É inesquecível, é deleitoso.

Estamos no finzinho dos anos 20. Chicago. Jack Lemmon e Tony Curtis vivem dois músicos que acidentalmente testemunham um terrível massacre e que, por sorte, conseguem escapar antes de serem aniquilados por uma trupe de mafiosos. Eles querem que querem sumir de vez da cidade, mas não sabem como. Estão desempregados, passando frio, endividados até o talo e desnorteados.

Até que a ideia perfeita (até a segunda página) bate à porta: os instrumentistas se fantasiam de mulher para conseguir integrar uma banda de moças que está partindo para a Flórida. Tudo sai como planejado, até que a vida lhes prega uma peça: a linda Sugar (Marylin Monroe, no auge de sua beleza), que está na banda, atravessa o caminho dos dois rapazes, deixando-os doidos de amor.

Os personagens de Jack e Tony estão vagueando sem rumo, por conta própria, perdidos e totalmente quebrados, tendo de arcar com apresentações musicais de quinta categoria (o funeral da vovó...). Já não bastasse toda a desgraça que os acometera (aperto financeiro, vida amorosa, sucesso, tempo...) aí vem uma gangue de mafiosos arruaceiros e pinta uma carnificina diante dos olhos dos músicos. Os caras chegaram no fundo do poço: estão sendo caçados, sem teto, sem grana, sem praticamente nada a não ser seus próprios instrumentos, o falho ganha-pão dos amigos, mas não perdem a pose.

A questão aqui não é ser esperançoso: a questão é escapar. Sua vida pode ser uma comédia ou pode ser uma tragédia. Tudo depende da sua escolha. Aquele que escapa não é miserável. A gente tem que aprender a seguir em frente, a fugir da tragédia. Escapar dos dramas da vida é necessário. No filme de Billy, a tragédia propulsiona a comédia. É assim que deve funcionar.

Quanto Mais Quente Melhor não chega a ser um filme pastelão, mas esse é o efeito. A boêmia espiritual decora essa comédia infinitamente engraçada e recheada de sequências icônicas e lendárias. Wilder exercita seus super-poderes de roteiro novamente ao lado do colaborador de longa data I.A.L. Diamond, que concluem um trabalho genial, astuto, comovente. Os diálogos são afiados e ágeis, perfumados com uma comicidade elétrica. As piadas conduzem o contraponto irônico de uma trama sobre dois azarentos dançando pra valer e tentando lidar com as mundanices da vida sempre com um sorriso estampado na face.

A participação de um elenco talentoso ajuda na estética dedilhada e bem esculpida que o longa prismatiza. Quanto Mais Quente Melhor é uma obra adorável, uma comédia doce, simples, aconchegante e milimetricamente deliciosa. Resumindo de vez: um clássico atemporal e eternamente plausível. Serão raríssimas as chances em que se terá a oportunidade de ver um filme desse naipe na história. A trama se multiplica e não demora pra abraçar de vez o espectador e transmitir um sentimento de glória e emoção inapagável. É muito primoroso. É primoroso demais. É simplesmente Wilder, é simplesmente o melhor do cinema. E, pra acabar, deixo um recado: "ninguém é perfeito".

Quanto Mais Quente Melhor (Some Like It Hot)
dir. Billy Wilder - 

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Crítica: "STRAIGHT OUTTA COMPTON - A HISTÓRIA DO N.W.A." (2015) - ★★★★


Não vou mentir: eu adoro o Oscar. Cresci acompanhando o prêmio e sempre fui muito obcecado com as edições, os indicados, os vencedores, a hierarquia, e etc... O Oscar foi intensamente presente no meu desenvolvimento cinéfilo, e desde que me entendo por viciado em cinema sou apaixonado de coração pela premiação, um amor inestimável e quase que obsessivo. É claro, há edições maiores e há edições menores, há justiças e há injustiças, mas tudo faz parte da natureza dos Prêmios da Academia. É realmente difícil designar o Oscar 2016, porque essa parece ser a edição mais complicada em muito tempo, provavelmente desde o Oscar... Desde o Oscar... Não sei, nunca houve uma edição como o Oscar 2016, tão imprevisível e previsível, tão justa e injusta ao mesmo tempo. E não que não houve edições anteriores assim, afinal, todo ano há justiça e há injustiça (é inevitável), mas o Oscar 2016 é excentricamente singular, um caso à parte. Picuinhas de um lado e do outro, muito se falava em Straight Outta Compton - A História do N.W.A., principalmente como um forte concorrente à categoria de Filme. Passa Globo de Ouro, passa isso, passa aquilo, chega o dia do anúncio dos indicados e Straight Outta Compton placa apenas 1 indicação: Roteiro Original.

Tentei ver o filme umas 3 ou 4 vezes só nesse mês mas de uma forma ou de outra era desencorajado. Fevereiro está sendo um mês difícil de segurar. E a promessa de ver todos os filmes do Oscar continua em débito. Março vai ficar bem sobrecarregado, pelo jeito. Mas, enfim, o que foi Straight Outta Compton? "É um filme da hora", disse um. "É filme de gângster", disse o outro. "Merece ser visto", bradou a crítica especializada. Tá, mas o que é Straight Outta Compton? É bom? Sim. Vale a pena? Certamente. Todo mundo vai gostar? Filhão, gosto não se discute, mas é um filme que tende a agradar a grande maioria de espectadores. E, mesmo assim, a reação é diferente a cada espectador que vê.

"Straight Outta Compton". What the hell does that mean, at all? "A História do N.W.A.". Ah, sim, ajudou muito. Eu, até esse filme, não conhecia o grupo N.W.A. (Niggaz Wit Attitudes). Do grupo, eu só conhecia mesmo o Ice Cube, isso porque o Cube também é ator (pra ser sincero, eu nem sabia que o Ice Cube era um rapper, ou tinha passagem na música). O filme é basicamente sobre esse grupo de rap, que foi um dos mais influentes do gênero. Eram cinco: o Ice Cube, Eazy-E, Dr. Dre, MC Ren e DJ Yella. O grupo se formou no fim da década de 80 e se estabeleceu em meados dos anos 90. O sucesso foi rápido. Nas canções do grupo, estão contextualizadas a denúncia ao estilo de vida da comunidade onde os músicos cresceram e a sempre onipresente crítica ao sistema.

O desenrolar da história é deveras fascinante. Straight Outta Compton - A História do N.W.A. é um retrato único. O diretor F. Gary Gray empresta a sua competência a uma trama dilacerante e incrivelmente bem-feita. O elenco revelação é impressionante. Se merecia uma indicação a Melhor Filme: por que não? Se fosse, acharia até bem-vindo. Mas, enfim, sendo ou não indicado ao Oscar, Straight Outta Compton é um grande filme, e é isso que importa. Eu gostei. Pelo menos mais do que poderia sonhar. É um trabalho bastante especial e que merece mais atenção.

Straight Outta Compton - A História do N.W.A. (Straight Outta Compton)
dir. F. Gary Gray - 

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

POETS OF NEW YORK ou RAIN IN THE CITY?


Hoje foi divulgado que a Amazon Studios, subdivisão da rede de streaming Amazon, comprou os direitos de distribuição do próximo filme do Woody Allen, ainda intitulado (o diretor revelou numa entrevista que está em dúvida entre Poets of New York ou Rain in the City). 

No elenco, estão Kristen Stewart, Jesse Eisenberg, Steve Carell, Blake Lively, Parker Posey, Corey Stoll entre outros. O diretor de fotografia é o lendário italiano Vittorio Storaro. A Amazon revelou que o filme será lançado nos cinemas no verão no Hemisfério Norte (junho ou julho desse ano), e mais tarde será lançado no catálogo dos assinantes Prime do site da empresa. 

A distribuição do filme pela Amazon Studios tem seu lado positivo e seu lado negativo. Por uma via, ficará mais complicado o acesso do filme aqui no Brasil. Logicamente, isso dificultará que o longa seja lançado nos cinemas nacionais. 

A série do diretor, também intitulada, virá a público neste ano e já tem no elenco ele mesmo, Elaine May e Miley Cyrus. O seriado também está sendo produzindo pela Amazon. E Woody, num comunicado oficial à imprensa, demonstrou felicidade nessa parceria, o que pode dizer que o cineasta apreciou o resultado do filme e da série (este último projeto tão detestado antes pelo diretor, que até disse na época do acordo, ano passado, ter cometido um "erro catastrófico"). 

De qualquer maneira, vale esperar por esse novo filme e a série e o que esses dois projetos poderão trazer de diferente dentro da vasta filmografia do Woody. Inovação é o que certamente não faltará, aposto. Até lá!

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Crítica: "POUCAS E BOAS" (1999) - ★★★★


Esses dias ando muito ocupado, tanto que creio que nunca estive tão abarrotado de coisas pra fazer como estou agora. O jeito vai ser sacrificar as minhas madrugadas pra ver se dou um jeito nesse blog e quito meu débito com os filmes que ainda precisam ser resenhados. Sem falar naqueles que precisam ser assistidos. E não vai ser esse ano que vou ver todos os filmes do Oscar, de novo e infelizmente, antes do prêmio, que acontece daqui a aproximadamente uma semana. Pra animar um pouco as coisas, decidi ver um filme do Woody Allen. É um calmante embriagador. O escolhido dessa vez foi o excelente Poucas e Boas

O filme é o último da fase anos 90 do diretor, e recebeu duas indicações ao Oscar 2000, em Melhor Ator e Atriz Coadjuvante. Sabe, já que entramos no assunto, convenhamos: a Academia deve ser doida. Woody Allen recebeu mais indicações em Roteiro do que qualquer outra pessoa na história do prêmio, e isso conta desde os filmes mais conceituados dele, como Noivo Neurótico, Noiva Nervosa e Manhattan, até os menos famosos, como Simplesmente Alice, Maridos e Esposas e Poderosa Afrodite. Agora, quando vem um filme bom, e que merecia ser indicado, os caras tem a pachorra de deixar o trabalho fora da lista. E não que eu esteja dizendo que os filmes indicados não mereciam estar lá. Dá até inveja do Woody ser esse roteirista potente que parece não errar nunca a mão. Mas Poucas e Boas, embora não seja o melhor filme dele, é uma peça notável e que merecia mais consideração. 

Poucas e Boas é sobre Emmet Ray, um suposto gênio do violão que teria sido uma das maiores figuras do jazz e o possível melhor violinista de todos os tempos apenas perdendo, nas palavras dele, para "um certo cigano da França". Não sei se é spoiler o que estou a comentar, mas de qualquer maneira se você não viu o filme vá ver e depois passe aqui para se informar: Emmet Ray não existiu, foi uma invenção da mente do Woody (ou não). Há controvérsias, já que no próprio filme ele é desenhado como um artista vagabundo que só teve fama em pequenos bares e casas noturnas em Nova Jérsei, e que não foi reconhecido ou aplaudido à altura. De qualquer maneira, a história é bacana e o desenvolvimento do filme é show. A história sendo ou não verdade, vale ressaltar que há múltiplas interpretações para essa história.

Emmet Ray é pintado como um homem egoísta, engolido pela sua própria ambição e talento, que rejeitava a todos ao seu redor, se embebedava e, após longas noitadas, acordava em outros estados (tem uma cena em que ele está em Chicago, se eu não me engano, e acorda na Pensilvânia); era arrogante, egocêntrico, trabalhava como cafetão nas horas vagas (a cena inicial mostra ele discutindo com uma prostituta sobre a morte de um dos clientes durante o ato sexual, por conta de um ataque cardíaco) e que sempre fazia o máximo para alcançar o tão almejado sucesso não importando a quem ele fosse machucar. Apesar do dinheiro, ele nunca foi além dos clubes noturnos quanto à expansão da sua arte.

Ray manteve um relacionamento por um longo tempo com uma jovem muda e deficiente mental/psicológica, Hattie (interpretada belamente por Samantha Morton, na performance de sua carreira), típica jovem garota comilona dos filmes do Woody. Emmet, em prol do seu lado artístico, se privava do amor, temendo que qualquer relação amorosa poderia destruir sua carreira e consequentemente o poder da sua arte. 

Embora na época tenha sido aclamado como comédia, Poucas e Boas termina como um drama, algo que está até mesmo concentrado na própria premissa deste, que é a de retratar a vida de um artista e o árduo caminho que ele tem de encarar, bem como seus demônios e suas vaidades, para trilhar a fama e o reconhecimento. Se Emmet existiu, fica uma ironia bem atribulada: um artista de peso, um possível ícone do jazz, que perdeu tudo, a sua arte, sua fama, seu amor e sua própria existência pelas vaidades e pela irresponsabilidade, em não saber lidar com o seu talento e com a pose de artista. Foi tão insucessível no seu sonho que acabou como estrela de um filme dado como pseudo-biográfico. Ou não, é lógico. Que mistério gostoso esse. 

Levemente baseado em A Estrada da Vida, de Fellini, Poucas e Boas conta com um elenco primoroso e esforçado. Sean Penn não mediu esforços para encarnar o fictício (ou não) Emmet Ray, tendo tido por um bom tempo aulas de violão para poder realizar no filme aquelas sequências deslumbrantes que lembram da trilha sonora de Vicky Cristina Barcelona, visto primeiro. A performance de Sean é uma pérola, um dos itens mais valiosos deste filme e da que tornam de Poucas e Boas um trabalho singular na filmografia do Woody. 

O diretor capricha, mais uma vez, num retrato bonito e divertido dos anos do jazz e da boêmia, tudo dedicado à grande paixão do cineasta fora o cinema, que é o jazz. Tiros na Broadway também se equilibrava no empenho técnico por trás de um retrato absurdamente bom de uma época legendária, mesmo que esteja distante de ser um filme sobre jazz. Poucas e Boas marca a parceria de Woody que durou três anos com o diretor de fotografia chinês Zhao Fei, que viria a trabalhar nos seguintes Trapaceiros e O Escorpião de Jade, consecutivamente. Poucas e Boas é o melhor falando de fotografia.

E, vejam só, que coisa interessante: o Woody Allen, que já demonstrou preferência em trabalhar com diretores de fotografia estrangeiros, só trabalhou, ao longo de toda a sua carreira cinematográfica, com apenas 5 diretores de fotografia americanos em 10 filmes (Gordon Willis, Lester Shorr, Harris Savides, Andrew M. Costikyan e David M. Walsh). O resto é tudo forasteiro. Já que tocamos no assunto fotografia, o lendário italiano Vittorio Storaro (o mesmo cara de Apocalypse Now, O Último Imperador, Último Tango em Paris, Reds, O Conformista e Dick Tracy) é o diretor de fotografia do próximo filme dele, ainda intitulado (numa entrevista, o cineasta revelou estar em dúvida entre Poets of New York e Rain in the City). 

Poucas e Boas seduz o espectador, um misto intenso de música, romance e filme de época. Sean e Samantha, inesquecíveis. Woody fabrica um longa memorável e elegante, cheio de momentos brilhantes. Também merecem menção Uma Thurman (linda, como de costume), Anthony LaPaglia e o cineasta John Waters, num papel pequeno, e Gretchen Mol. Woody Allen, apesar de não atuar, aparece comentando em rápidos depoimentos ocasionais sobre o músico. Poucas e Boas (esse título nacional é tão charmoso!) marca a primeira parceria de Woody com a produtora Sony Pictures Classics. O cineasta só viria a trabalhar novamente com a empresa dez anos depois, em Tudo Pode Dar Certo. Desde então, os últimos seis filmes dele também foram assinados pela produtora.

Poucas e Boas (Sweet and Lowdown)
dir. Woody Allen - 

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Crítica: "CRASH - NO LIMITE" (2004) - ★★★


– O que é tão engraçado?"
– As pessoas, cara!"

Crash - No Limite é muito provavelmente um dos filmes que mais me dividiram que eu já vi. Eu gosto e não gosto. Quer dizer, pra falar a mais pura verdade, eu nem odeio Crash e também não o idolatro. É love it or hate it. E não é que eu esteja tirando a razão de quem gosta e quem não gosta, mas quem gosta tem bons motivos assim quem odeia também tem bons motivos. É um filme ambíguo, difícil de digerir e tortuosamente constante, sem freio. De qualquer modo, Crash certamente merece ser visto. 

O então roteirista Paul Haggis, que fora descoberto por Clint Eastwood em Menina de Ouro, 2004, aventurou-se não só no roteiro mas desta vez na direção de um filme complicado, discutindo sua produção, e que exige de um profissional com punhos de ferro e determinadíssimo. Como diretor, Haggis apenas tinha no currículo Red Hot, pouco falado título independente co-estrelado por Carla Gugino. Digam o que quiser sobre o filme, mas não mexam na direção-revelação de Paul Haggis. Certas sequências são tão inacreditáveis de bem-feitas. Não sei o que é maior: a condução bem-vinda de Paul ou a edição de Hughes Winborne, o braço direito da direção. 

Falando nisso, acho o Oscar de Melhor Filme a Crash, há dez anos, injustíssimo, mas acredito que os outros dois prêmios entregues na noite ao filme (Roteiro Original e Edição) foram merecidíssmos. Sei que fica meio estranho colocar dessa forma, mas o roteiro de Crash é bom apesar das fraquezas. 

A firmeza da narrativa, os diálogos ácidos e quase sempre desconfortáveis que confrontam o público e reforçam a ideia de "denúncia ao preconceito", a exposição de diversas histórias entrelaçadas, uma conexão nada particular e bastante inteligente. A construção das pistas que vão lentamente unindo os elementos, os personagens e as mensagens é cuidadosa e nutritiva. 

Minhas sequências favoritas em Crash são três: o acidente de carro (que cena avassaladora!), a cena do tiro (vocês não imaginam a minha reação da primeira vez que vi o filme, foi realmente chocante) e a cena da carona do policial (aquela é de sofrer). 

Vale mencionar que Crash é um baita de um melodrama. Quem é mais emotivo tem tendência a se emocionar com o desfecho final, mesmo que lotado de defeitos. É claro, quem mais ajuda nisso é o elenco show. Dos que lembro: Terrence Howard, Don Cheadle, Sandra Bullock, Michael Peña (que no ano seguinte fez um papel pequeno num filme bem próximo de Crash quanto à temática abordada, que foi Babel), Ludacris (sim, o rapper, e diga-se de passagem a performance dele, mesmo que curta, é extraordinária - acho que até merecia uma indicação ao Oscar mais do que o Matt Dillon), Thandie Newton (vencedora do BAFTA, e, já que entramos no assunto, fez falta no Oscar 2006), Ryan Phillippe, Brendan Fraser, e por aí vai...

Se por um lado Crash até possui certas qualidades, do outro é totalmente imperdoável quanto às falhas. O longa possessa-se se de erros tão gritantes que é quase irreal crer na imensa quantidade de elogios que a crítica americana dirigiu ao filme. Quero dizer, não é impossível nem proibido, mas é um filme que tinha tudo pra ser desvalorizado até a última gota, e teve tanta aclamação. É de encorajar qualquer a botar qualquer produção meia-boca nos trilhos e ver funcionar com tanta glória. Bom, talvez seja algo geográfico - quem sabe? 

Crash se repete tanto que dá a impressão do filme ser uma avalanche imparável, realmente sem freio. O filme não tem vida. Do começo ao fim, tudo posto em tela, cada cena, é um exemplar gêmeo do outro do preconceito, da dor, do ódio, da ignorância, da falta de amor em geral como um só. Estaria o diretor metaforizando o preconceito como efeito geral da ignorância à afeição e à humanidade? 

De qualquer forma, Crash tenta impressionar. E impressiona. O problema do filme é que ele não anda, ele não retrata. O que o Crash faz é ilustrar pessimamente o mundo em que vivemos como abrigo do preconceito e da discórdia, um mundo em que todos nós praticamos o preconceito visível ou invisivelmente. Quer dizer, eu, tu, ele, nós, vós, toda a porra do planeta é preconceituoso. O grande quê é que Crash pinta esse quesito como uma doença, um "parasita dos tempos modernos": quem é preconceituoso, quem denuncia o preconceito, que nem sabe o que é preconceito, quem repudia o preconceito, quem propaga o preconceito: todo mundo, querendo ou não, tem o preconceito no sangue, isso aos olhos de Crash. Los Angeles virou a Terra: ninguém te toca, todos estão atrás do vidro e do metal. 

Por outra via, essa ideologia movimenta uma reflexão interessante: o preconceito oprime a evolução de pensamento e de convivência. O preconceito é, de fato, algo maior do que a nossa mente pode projetar. Esse mal consome a liberdade, consome o direito de ser e de viver em harmonia. Paz? O que significa paz? Do título Crash (verbo "colidir" em inglês) vem o curto discurso que abre o filme (pelo personagem do Don Cheadle). Em Crash, estórias se cruzam e colidem umas com as outras. Essa interconexão é o efeito colateral de um impacto fatal. Agora, se é um filme bom ou ruim: Crash depende do público, da nossa relação com o preconceito e da nossa visão acerca o preconceito e o seu impacto no mundo e na atualidade. 

Crash - No Limite (Crash)
dir. Paul Haggis - 

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Crítica: "TRAPACEIROS" (2000) - ★★★★


Nestes últimos dias, acumulei tanto filme pra criticar que estou perdido tentando organizá-los aqui no blog. Enfim, acho que ainda falta falar sobre Eu, Meu Irmão e Nossa Namorada, Longe Dela, O Impossível, O Segredo de Brokeback Mountain, Em Busca do Ouro, O Vencedor... Tô esquecendo de algum? Bem, vamos falar de Trapaceiros que depois eu vejo isso. Nesse ano vou tentar ver de vez os filmes que ainda faltam ver da filmografia do querido Woody Allen, e rever outros que estão desandados na minha memória.

Trapaceiros era o último filme que faltava ver do ciclo anos 2000 do cineasta. Consegui uma cópia em DVD e tive de me contentar com o áudio dublado, a única opção da cópia. Quando eu tiver uma brecha, vou tentar rever legendado na internet (Trapaceiros está na Netflix), ainda que ver o filme dublado não tenha sido uma experiência tão desagradável quanto eu pensava que seria. 

Nesta comédia, Woody Allen faz um lavador de pratos que também tem um pé no crime e que já ficou detrás das grades por um tempo. É aí que Ray Winkler tem uma ideia (quase) genial: roubar um banco através de um túnel. Para o projeto, Ray, com a ajuda da estressada mulher Frenchy (Tracey Ullman), aluga um estabelecimento frente ao banco, com a intenção de cavar um túnel e chegar até um cofre no local. Para o espanto de todos, o "negócio temporário" da Frenchy, que trabalharia por um tempo cozinhando e vendendo biscoitos para não chamar a atenção enquanto o plano do roubo engatinhava, tem mais sucesso que o tal plano do furto ao banco.

Há quem diga que o final adiantado de Trapaceiros seja incômodo, mas é a partir da surpreendente reviravolta que se dá à altura dos quarenta ou trinta minutos de filme que o filme começa. Dá pra perceber claramente que Trapaceiros foi idealizado como uma comédia, pura e genuína, como aquelas primeiras do diretor, que tanto contribuíram para o sucesso entre a crítica e o público e levaram o nome do então comediante às telonas. Falando nisso, se há alguma semelhança entre Trapaceiros e outro trabalho do diretor, diria que este faz um par perfeito com Um Assaltante Bem Trapalhão, onde Woody fazia um ladrão e se metia nas mais incrivelmente cômicas situações. 

Só pra brincar, um filme que funciona brilhantemente ao inverso de Trapaceiros, tanto na questão do gênero e da própria trama, é Blue Jasmine, que filma uma dondoca de Nova Iorque empobrecendo e indo à loucura com a mudança para a casa da irmã em São Francisco. Aqui, Woody explora a história de um casal de pobretões que faz fortuna. O cineasta está ao lado de Tracey Ullman. Os dois encarnam marido e mulher que, mesmo após saírem da pior, continuam incessantemente em pé de guerra, entre tapas e beijos. 

A crítica de Woody à high society é benéfica apesar da superficialidade, que realmente nem importa muito aqui. Oferece um contraponto ao humor e ao mesmo tempo o ajuda. A lista de personagens é pra lá de criativa e estimulante. Acho que a decepção foi mesmo pelo personagem do Woody. Muito embora ele mostre um pouco dos seus dotes como ladrão lá perto do final na cena do roubo à joia e também um pouco durante as tentativas de perfuração no subsolo do negócio de Frenchie, gostaria de ter visto mais da persona criminosa dele. Acho que ele até tentou no filme que sucede TrapaceirosO Escorpião de Jade, onde o personagem dele é um detetive particular que é hipnotizado e passa a, inconscientemente, roubar para um enigmático ilusionista. Também tem Igual a Tudo na Vida, onde ele faz um professor "psicótico" que tem repúdio a antissemitas.

As performances da Tracey e do Woody são formidáveis. Os dois conseguem sustentar os personagens e a trama do filme, bem como a comédia exalada, com perfeição, em especial a Tracey, que já havia trabalhado com Woody em Balas sobre a Broadway, mas não como protagonista. Acho que o Woody aqui se encaixa mais como coadjuvante do que propriamente como personagem central. A Ullman foi indicada ao Globo de Ouro pelo seu papel aqui. Merecia uma indicação ao Oscar, na minha humilde opinião, se bem que 2000 foi um ano impressionantemente bom para atrizes principais, no geral.

Trapaceiros é um trabalho bastante despretensioso, e que não deve ser levado a sério. Se a crítica captou bem e aceitou esse filme do Woody, fez errado ao enlamar as produções que seguiriam esta, que também são comédias leves e no mais despretensiosas, mas que foram seguidamente rejeitadas, tanto pela crítica quanto pelo público, o que é deplorável.

Eu pareço normal, mas gargalhei em Trapaceiros. Gargalhei mesmo. Não sei se é porque sou besta e costumo ir além no quesito rir de piadas-de-sorriso-de-canto-de-boca, mas gargalhei pra caramba, e dá pra se satisfazer com o conteúdo cômico aqui apresentado. A personagem Frenchy (Frances Fox-Winkler, por Tracey Ullman), por exemplo, lembra sutilmente do Stanley de Magia ao Luar. Ambos são tão parecidos comicamente falando. Dá até do personagem do Woody (risos), que vive sendo rebatido pela Frenchy, de veia sarcástica salteada. A cena inicial é um bom exemplo. A protagonista chega a ser até identificável com algumas figuras da vida real, com seu jeito escandaloso e desbocado.

Trapaceiros é aquele tipo de filme que a gente nunca quer ver acabar. É um trabalho muito especial vindo do Woody. Pode ser até menor, mas é excelentemente engraçado e bem-feito. O elenco, primoroso. A fotografia de Zhao Fei, chinês que trabalhou com Woody no anterior a este Poucas e Boas e no seguinte, O Escorpião de Jade, também merece destaque (puxa, queria eu ser pobre em Nova Iorque, e assistir àquele sublime espetáculo ao pôr-do-sol - que vida, que vida!). A construção da trama é delicada e a fermentação dos personagens é aguçada. Woody recheia Trapaceiros com ironia, humor escrachado, diálogos hilários e sempre brilhantes. Resumindo, não dá pra reclamar, ou até pedir mais. Trapaceiros é maravilhoso e ponto final.

Trapaceiros (Small Time Crooks)
dir. Woody Allen - 

Crítica: "PASSAGEIROS" (2008) - ●


Vi o filme pela primeira vez faz uns cinco anos. Foi em 2011, no auge da minha fase de devoção à atriz Anne Hathaway. Comprei o DVD e até tentei achá-lo para rever recentemente, mas creio que o perdi. De qualquer maneira, o filme estava na Netflix e faz uma semana e pouco peguei-o para ver. Não me lembro direito da minha primeira impressão quando vi o filme lá em 2011, já que só tinha pegado ele por conta da Hathaway e tal, então nem estava ligando se o filme seria ou não bom e coisas do gênero, mas só sei que Passageiros é detestável. Desperdício da Hathaway, desperdício de atenção, desperdício de tempo!

No longa, Hathaway é uma terapeuta que começa a investigar um estranho acidente de avião, testemunhado por seus pacientes. Ela acaba por se envolver amorosamente com Eric Clark, que também estava no acidente. O roteiro não sustenta o mistério do tal acidente por muito tempo, e isso vai aos poucos entediando o espectador. A história é descentrada e incompreensivelmente picotada. O final destrói tudo. Passageiros não é drama, não é terror, não é suspense, não é nada. É uma baita de uma porcaria. Passageiros leva a direção de Rodrigo Garcia, filho do escritor Gabriel García Marquez. É surpreendentemente o pior filme dele, que tem no currículo trabalhos esmerados como o recente Albert Nobbs e Questão de Vida. Enfim, Passageiros é um filme horrível de ruim. Eca!

Passageiros (Passengers)
dir. Rodrigo Garcia - 

Crítica: "A FEITICEIRA" (2005) - ★★


Em A Feiticeira, Kidman interpreta Isabel Bigelow, uma bruxa que é descoberta por um ator decadente, Jack Wyatt, que está participando de um remake do seriado A Feiticeira, uma das maiores produções já feitas da TV americana. Isabel acaba se apaixonando instantaneamente pelo homem, mas o amor deles é posto à prova em uma montanha russa de confusões e mal-entendimentos. A promessa de magia, humor e charme do filme não duram muito. O resultado é desastroso.

Admiro muito a Nora Ephron, mas não consegui embarcar na brincadeira de A Feiticeira. A comédia romântica, livremente inspirada no clássico seriado homônimo dos anos 60 (o Chaves americano), é simpática e conta com o auxílio de uma dupla de protagonistas sensacionais, a belíssima Nicole Kidman e o Will Ferrell, mas ao mesmo tempo não escapa do clichê e das bobeiras medonhas de um roteiro defeituoso e infantil. 

O possível pior filme de Nora enquanto diretora e roteirista é uma comédia complicada que provavelmente apenas rende pelo bom elenco, que além das já mencionadas estrelas, marcam presença também Shirley MacLaine, Michael Caine, Jason Schwartzman, Stephen Colbert e Steve Carell (numa rápida participação como Tio Arthur, personagem da série original). O roteiro é assinado pela Nora, pela sua irmã (Delia) e pelo cineasta/roteirista Adam McKay (diretor de A Grande Aposta). Ainda que conte com essa trupe talentosa, A Feiticeira é um fiasco. Filme mediano, bons cochilos. 

A Feiticeira (Bewitched)
dir. Nora Ephron - 

Crítica: "CLUBE DE COMPRAS DALLAS" (2013) - ★★★★


Em primeiro lugar, Clube de Compras Dallas é um filme muito deprimente. Não querendo dizer que seja deprimente de ruim, mas sim porque conta uma história bem deprê mesmo, de contagiar o espectador. E, ainda que seja assim, não chega a ser um melodrama, de chorar e tal, mas continua sendo um filme bastante difícil de encarar, pela questão da profundidade e do rigor dramático. Um eletricista texano, Ron Woodroof, que ocasionalmente participa de rodeios, descobre ter AIDS e sua vida muda drasticamente.

Ele aprende a ignorar o preconceito alheio quanto à doença e segue pesquisando, até que, após parar numa clínica no México, ele descobre que o medicamento dos hospitais para os pacientes com AIDS está retrocedendo a cura do vírus. Após receber da clínica uma porrada de remédios e vitaminas, ele transporta para os E.U.A. e monta, ao lado da travesti Rayon (Leto, o próximo Coringa), o "Clube de Compras Dallas".

Clube de Compras Dallas levou um tempão pra sair do papel. O roteirista Craig Borten entrevistou Woodroof em 1992, um ano antes de sua morte, e escreveu o roteiro. Oito anos mais tarde, ele o reescreveu ao lado de Melisa Wallack e o vendeu para o produtor Robbie Brenner. De 2000 pra cá, foram incontáveis as tentativas de colocar o projeto nos trilhos. Em 2009, McConaughey foi escalado e não mais tarde o cineasta canadense Jean-Marc Vallée, que na época havia dirigido A Jovem Rainha Vitória, adentrou o projeto. As filmagens começaram em novembro de 2012 e o filme entrou em cartaz um ano depois, em novembro de 2013.

Estrategicamente, o lançamento do filme logo fez par com a temporada de premiações, tendo a dupla Jared Leto e Matthew McConaughey ganhado diversos prêmios de 2013 para 2014, incluindo os Óscares nas categorias de Ator e Ator Coadjuvante, sem falar no prêmio de Maquiagem e Penteados. Vale ressaltar que Clube de Compras Dallas, no entanto, é mais que apenas um filme de Oscar. Definitivamente não é o melhor trabalho, mas se trata de um bom filme na maioria dos aspectos aqui presentes.

Pra começar, o elenco é avassalador, com destaque especial às performances excepcionais da dupla Jared e Matthew. Nunca se viu uma dupla mais competente em papéis tão exigentes. Jennifer Garner na melhor performance de toda a sua carreira, ainda que coadjuvante, e que na minha opinião merecia uma indicação ao Oscar, se bem que nem é essa a preocupação quando se fala de reconhecimento, já que de injustiças o Oscar tem até o talo. A criticada mulher do Ben Affleck encarna uma personagem forte e equilibrada, uma médica que tenta buscar soluções para o tratamento dos pacientes, e que conquista o nosso protagonista.

Às vezes dá raiva da ignorância de Ron Woodroof. A gente sente pena da desgraça da doença que o acomete, e ao mesmo tempo dá vontade de entrar na tela e dar um murro pra ver se ele acorda de vez e larga de palhaçada, de ir procurar um rumo e parar de se perder mais do que já está. Sem querer insinuar spoilers, a certa altura do filme ele até dá uma segurada. É legal ir percebendo como ele vai aprendendo a respeitar a travesti Rayon, quem ele tanto xingava e maldizia, e como a relação deles dois vai crescendo a partir da criação do "Clube de Compras Dallas".

Com um trabalho formidável desses, Vallée se consagra como um diretor de peso (a regência do elenco, a condução das sequências, a idealização em geral), mas que ainda tem muito o que mostrar. Ou seja, ele ainda não conseguiu se libertar do status de promissor. Mas que ele é um bom diretor, isso eu não posso negar.

Clube de Compras Dallas tem certos defeitos, mas é um filme sem sombra de dúvida único, que soma qualidades, difícil de esquecer. De certa maneira, é tão perturbador quanto o filme seguinte de Vallée, que também tinha como protagonista uma pessoa perdida e desencontrada, sem rumo, que vai aprendendo a se render, Livre. Clube de Compras Dallas é impactante.

Clube de Compras Dallas (Dallas Buyers Club)
dir. Jean-Marc Vallée - ★★

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Crítica: "ARRASTE-ME PARA O INFERNO" (2009) - ★★★★


Nossa, fazia um tempão que tinha visto Arraste-me para o Inferno. Me lembro que uma amiga até tinha o DVD e me emprestou, mas da primeira vez que vi, lembro que foi quando passou na TV a cabo, isso em 2012, 2013 no máximo? Enfim, rever Arraste-me para o Inferno era outra coisa que eu devia fazia é tempo. O melhor de tudo é que, mesmo que eu já tenha visto o filme, ele continua do mesmo jeito. Impressionante. Talvez nesta revisão eu não tenha ficado lá muito assustado quanto da primeira vez, mas é legal rever e analisar de perto o tecnicismo e os truques do diretor Sam Raimi neste filme de terror à moda antiga, paráfrase energética do cinema B. 

O filme narra a história de uma jovem mulher que trabalha num banco e que, após um episódio tempestuoso, descobre uma maldição, evocada por uma senhora cigana, e que começa a fazer da vida dela um inferno só. A moça passa a contatar diversos médiuns, na intenção de buscar ajuda e se desviar do trágico destino que a espera.

A competência de um elenco sem igual (Alison Lohman, Lorna Raver, Adriana Barraza, Justin Long, Dileep Rao) oferece ao filme um contraponto vigoroso. Arraste-me para o Inferno é aterrorizante, de sequências hipnotizantes e singulares (a cena do estacionamento é a melhor de todas). Há uma enorme delicadeza por trás de todas as cenas. O esmerado diretor Sam Raimi capricha nos clichês adoráveis do gênero trabalhado e põe em tela a força de seu cinema e de seu talento. Os caprichos técnicos, em especial o uso de efeitos visuais baratos, reforçam a ideia de nostalgia e terror. O resultado é sublime, um dos melhores trabalhos de horror realizados nos últimos tempos. Merece ser visto, e com certeza revisto. É um primor raro.

Arraste-me para o Inferno (Drag Me to Hell)
dir. Sam Raimi - 

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Crítica: "TRUMBO: LISTA NEGRA" (2015) - ★★★


Menos de 20 dias para o Oscar 2016 e eu tenho uma lista cheia de filmes indicados pra ver. Como nesse ano muitos dos indicados acabaram se repetindo em outras categorias, em especial as técnicas, a variedade no geral caiu em relação aos anos anteriores (isso pode ser até mesmo evidenciado, levemente, no último Oscar 2015). Trumbo: Lista Negra surgiu no ano passado como uma das principais apostas ao prêmio, mas com o passar do tempo foi descartado, e ressurgiu com duas indicações ao Globo de Ouro 2016, para o Cranston (Ator - Drama) e a Helen Mirren (Atriz Coadjuvante). A dupla recebeu mais indicações adiante em prêmios importantes, como o SAG, onde também recebeu uma nomeação a Melhor Elenco. Apesar do fôlego, o filme apenas arrecadou uma indicação a Melhor Ator no Oscar, para Bryan Cranston. A performance dele é justamente o melhor do filme.

O cineasta/produtor Jay Roach, conhecido por dirigir as comédias Entrando numa Fria, Os Candidatos e a franquia Austin Powers, é quem dirige Trumbo: Lista Negra, que não é nem drama nem comédia, apesar de momentos cômicos que roubam a cena com elegância aqui. No entanto, apesar dos pontos marcados (e erros também, só pra lembrar), talvez o maior destaque de Trumbo seja mesmo o Bryan Cranston, cuja esforçada performance é inesquecivelmente plausível e firme. O filme em si, apesar do Bryan, é repleto de imperfeições e controvérsias. Não deixa de ser um retrato curioso do universo hollywoodiano entrando em colapso com a Guerra Fria e as ameaças do comunismo na faixa dos últimos anos da década de 50 para os anos 60.

Entre os candidatos à estatueta de Melhor Ator deste, Bryan só fica atrás do DiCaprio e do Fassbender. Mas é até interessante notar como a atuação dele foi tão abrangente e reconhecida a ponto de ter levado o nome de Trumbo: Lista Negra, filme avidamente detonado pela crítica especializada, ao Oscar e ao Globo de Ouro, por exemplo. Por outra via, eu não concordei muito com a atenção à Helen Mirren, aqui num papel bem coadjuvante. Dá pra contar com os dedos em quantas cenas ela aparece. E não é nem por isso que ela foi tão superestimada. Não há graça em ver ela na pele de Hedda Hopper. Simplesmente não há. O Oscar fez bem em não nomeá-la (Helen era uma das favoritas a Atriz Coadjuvante, injustamente).

Trumbo: Lista Negra é uma cinebiografia parcial do lendário roteirista Dalton Trumbo, que, devido a seu posicionamento político, foi ocultado de Hollywood e teve de mudar de nome para exercer a sua profissão. Quanto às falsas empreitadas inventadas pelo filme, só digo que há prós e há contras. Enquanto se trata de uma falta de responsabilidade com o retrato biográfico do roteirista e uma gororoba de invenções alternativas que não seguem o ritmo do filme e só vão tornando a sessão cada vez mais desinteressante (sendo estas as "desculpas" em parte compreensíveis da crítica para acabar com o filme), não há como não ser enganado. Por exemplo, eu não sabia que certos personagens não existiam e que certas situações igualmente eram falsas, mas o filme me enganou. E isso serve até pra denunciar como a gente conhece pouco a história do Trumbo, roteirista de A Princesa e o Plebeu e Spartacus, um dos prováveis mais importantes da história do cinema.

Enfim, se o andamento do filme é confuso demais e perplexamente desleixado, o espectador pode agradecer por um elenco competente e focado, liderado por um empenhado Cranston, estrela de TV desembarcando com estilo às telonas. Há também uma imensa qualidade no desempenho técnico de Trumbo: Lista Negra, que apesar de ser uma produção independente se salva nos quesitos técnicos. Sendo ou não uma questão de economia, caiu como uma luva. Entre acertos e deslizes, se tem algo que faça valer a pena conferir Trumbo é o Bryan Cranston. E sem mais.

Trumbo: Lista Negra (Trumbo)
dir. Jay Roach -