Que Horas Ela Volta?, escolhido nacional para competir por uma vaga em Filme Estrangeiro, ficou de fora da shortlist em dezembro do ano passado e entristeceu a quem mantinha nele uma aposta firme de forte concorrente. Eis que nos surpreende entre os indicados ao prêmio a produção nacional O Menino e o Mundo, nomeado a Melhor Filme de Animação. O primeiro representante nacional nato há 13 anos, desde Cidade de Deus (apenas os produtores britânicos de Lixo Extraordinário foram indicados em 2011; apesar do diretor e dos compositores indicados brasileiros, Rio é uma animação americana, falada em inglês; O Sal da Terra nomeou uma produtora brasileira, mas é um filme totalmente não-brasileiro - por exemplo, a maior parte do tempo em tela, o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado fala em francês) é uma delícia de filme. Que bela surpresa é O Menino e o Mundo. É um orgulho e tanto ter o filme, maravilhoso, como representante do cinema brasileiro nessa edição do Oscar.
E o que mais dá orgulho nisso tudo é que temos um filme animado nos representando no prêmio. Animado. São raros os exemplares de animação nacionais nos tempos atuais. Eu mesmo não consigo me lembrar agora de um. Outra coisa bastante inusitada é ver que o primeiro indicado brasileiro a Melhor Animação não foi o Carlos Saldanha (risos), que sequer dirigiu na vida uma animação aqui no Brasil (também, como o pobre coitado iria financiar a produção?). Saldanha teve sorte no exterior e pôde trabalhar dentro de uma das empresas de animação mais ativas da atualidade, a 20th Century Fox Animation, nos representou também como indicado ao prêmio uma vez, lá em 2004, no mesmo ano de Cidade de Deus, em Melhor Curta-Metragem de Animação (Carlos foi indicado por Gone Nutty, um curtinha do personagem Scrat).
O Menino e o Mundo, ao contrário dos projetos de Saldanha, é uma produção bem menos comercial e tecnicamente rica. Os recursos técnicos, aliás, são baixíssimos, mas Alê Abreu, o diretor/roteirista, transforma simplicidade em grandiosidade com genialidade (olha, rimou!). E criatividade (rimou de novo!) E isso é o que não falta aqui.
No desenho, um garoto do interior, entristecido, vai à procura do pai, que saiu para trabalhar na cidade grande, e dá de cara com uma realidade distinta. A história é de aquecer e cortar o coração ao mesmo tempo. O Menino e o Mundo ostenta de uma beleza e ingenuidade tão simbólicas que chamá-lo de encantador é pouco. Fábula realista, talvez, mas nem tão realista assim, suavizado com um toque de magia, diria.
As sequências quase oníricas são prazerosas de se ver e emocionantes. O Menino e o Mundo é mais que rabiscos, é mais que uma revolução, é mais que uma vitória... É uma experiência única e indescritível por si só. É enfeitiçante. Alê Abreu trouxe ao mundo um trabalho forte e importante que merece ser conferido por todos. Se levasse o Oscar, seria bonito demais... Merecido com certeza é.
O filme é quase mudo, não possui muitas falas, mas tem uma extravagância, uma certa força, que nenhum diálogo jamais poderia reproduzir. É selvagem e mundano, idealista e direto. Espetacular. É um presente do "Deus do cinema". Triunfal. Ou mais que isso. Ou tudo de bom. De onde vem todo esse barulho, toda essa riqueza, todo esse brilhantismo? Vem da leveza? Vem da tenacidade? Vem do doce? Vem da lembrança? Só sei que O Menino e o Mundo é lindo demais. Lindo, lindo, lindo, lindo, e mais incondicionalmente lindo ainda. É mais lindo que o lindo do lindo.
Esqueça a animação computadorizada. Esqueça todos esses mecanismos modernos e a tecnologia que os abraça. Esqueça tudo. Veja O Menino e o Mundo. O grande quê de ver essa animação é seu tecnicismo manual riquíssimo. Arrisco: é uma das animações mais visualmente bonitas que eu já tive a chance de ver em toda a minha vida. E não, não é exagero dizer tal coisa, arrisco. É impossível comparar. O Menino e o Mundo é do jeito que é e ponto. Nunca houve um filme assim.
O malabarismo de cores é um deleite imenso. Outra coisa que tem e de sobra em O Menino e o Mundo: cor. Traduzindo: vida. Há uma sobreposição bastante interessante, quando se opta por uma transição atribulada: quando o menino deixa o seu lar rural, o visual do filme se transforma drasticamente. O cinza das fábricas, da melancolia e da, então, falta de vida, azeda a jornada do pequeno garotinho protagonista assim que o mesmo adentra às sombras de um centro quebradiço e ordinário: a cidade. A imperfeição de uma realidade chula e bizarra.
O choque da realidade com a humanidade é um contraste devastador. A ausência de opções e chances é sufocante. Viver num mundo onde reina a ignorância e o poder intransitivo é triste demais. A recusa à aceitação encarna resultados desagradáveis. O conforto nas memórias de um passado perfeito. A paternidade. A distância. O sonho. A verdade. A ilusão. A destruição. A partida. Alê Abreu introduz em O Menino e o Mundo um complexo e multifacetado mix de temáticas que tem muito a nos ensinar, dos mais distintos ângulos.
A representação filosófica de um sistema doentio e apocalíptico: uma prisão. Quem não se enquadra às demandas desse planeta absurdo premissa uma cruel marginalidade. Os padrões de vida de uma sociedade consumista que hoje em dia tem o mesmo impacto das leis. A isolação como privação. O êxodo. A procura existencialista por melhores condições de vida. Os trajetos. O abandono. A desigualdade. A dor. O mal dos tempos modernos.
O menino. O mundo. A criança. O adulto. O ingênuo. O sofredor. Quem dera ser menino para sempre, desconhecer o triste mundo em que habitamos, esse ninho de ratos, não ter problemas nem saber o que é a tristeza.
O Menino e o Mundo, com toda a sua magia, beira a doçura e a escuridão. Afinal, é feito para crianças e para adultos. É um retrato verdadeiro e excepcional do mundo atual. Não dá pra esquecer tão facilmente. É uma aquarela de emoções vibrante. Cabe a nós decidir quem seguir: o menino ou o mundo. Na dúvida, eu já sei a quem seguir: O Menino e o Mundo, poesia em forma de registro cinematográfico. Profundamente belo, é uma obra memorável, um rodamoinho de atrações. Corra pra ver, meu filho! Uma crônica tocante, interminavelmente admirável. Ganhou meu voto. E ponto final. Ah, já falei pra vocês que é um filme lindo?
O Menino e o Mundo
dir. Alê Abreu - ★★★★★
O Menino e o Mundo
dir. Alê Abreu - ★★★★★
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