" – O que é tão engraçado?"
" – As pessoas, cara!"
Crash - No Limite é muito provavelmente um dos filmes que mais me dividiram que eu já vi. Eu gosto e não gosto. Quer dizer, pra falar a mais pura verdade, eu nem odeio Crash e também não o idolatro. É love it or hate it. E não é que eu esteja tirando a razão de quem gosta e quem não gosta, mas quem gosta tem bons motivos assim quem odeia também tem bons motivos. É um filme ambíguo, difícil de digerir e tortuosamente constante, sem freio. De qualquer modo, Crash certamente merece ser visto.
O então roteirista Paul Haggis, que fora descoberto por Clint Eastwood em Menina de Ouro, 2004, aventurou-se não só no roteiro mas desta vez na direção de um filme complicado, discutindo sua produção, e que exige de um profissional com punhos de ferro e determinadíssimo. Como diretor, Haggis apenas tinha no currículo Red Hot, pouco falado título independente co-estrelado por Carla Gugino. Digam o que quiser sobre o filme, mas não mexam na direção-revelação de Paul Haggis. Certas sequências são tão inacreditáveis de bem-feitas. Não sei o que é maior: a condução bem-vinda de Paul ou a edição de Hughes Winborne, o braço direito da direção.
Falando nisso, acho o Oscar de Melhor Filme a Crash, há dez anos, injustíssimo, mas acredito que os outros dois prêmios entregues na noite ao filme (Roteiro Original e Edição) foram merecidíssmos. Sei que fica meio estranho colocar dessa forma, mas o roteiro de Crash é bom apesar das fraquezas.
A firmeza da narrativa, os diálogos ácidos e quase sempre desconfortáveis que confrontam o público e reforçam a ideia de "denúncia ao preconceito", a exposição de diversas histórias entrelaçadas, uma conexão nada particular e bastante inteligente. A construção das pistas que vão lentamente unindo os elementos, os personagens e as mensagens é cuidadosa e nutritiva.
Minhas sequências favoritas em Crash são três: o acidente de carro (que cena avassaladora!), a cena do tiro (vocês não imaginam a minha reação da primeira vez que vi o filme, foi realmente chocante) e a cena da carona do policial (aquela é de sofrer).
Vale mencionar que Crash é um baita de um melodrama. Quem é mais emotivo tem tendência a se emocionar com o desfecho final, mesmo que lotado de defeitos. É claro, quem mais ajuda nisso é o elenco show. Dos que lembro: Terrence Howard, Don Cheadle, Sandra Bullock, Michael Peña (que no ano seguinte fez um papel pequeno num filme bem próximo de Crash quanto à temática abordada, que foi Babel), Ludacris (sim, o rapper, e diga-se de passagem a performance dele, mesmo que curta, é extraordinária - acho que até merecia uma indicação ao Oscar mais do que o Matt Dillon), Thandie Newton (vencedora do BAFTA, e, já que entramos no assunto, fez falta no Oscar 2006), Ryan Phillippe, Brendan Fraser, e por aí vai...
Se por um lado Crash até possui certas qualidades, do outro é totalmente imperdoável quanto às falhas. O longa possessa-se se de erros tão gritantes que é quase irreal crer na imensa quantidade de elogios que a crítica americana dirigiu ao filme. Quero dizer, não é impossível nem proibido, mas é um filme que tinha tudo pra ser desvalorizado até a última gota, e teve tanta aclamação. É de encorajar qualquer a botar qualquer produção meia-boca nos trilhos e ver funcionar com tanta glória. Bom, talvez seja algo geográfico - quem sabe?
Crash se repete tanto que dá a impressão do filme ser uma avalanche imparável, realmente sem freio. O filme não tem vida. Do começo ao fim, tudo posto em tela, cada cena, é um exemplar gêmeo do outro do preconceito, da dor, do ódio, da ignorância, da falta de amor em geral como um só. Estaria o diretor metaforizando o preconceito como efeito geral da ignorância à afeição e à humanidade?
De qualquer forma, Crash tenta impressionar. E impressiona. O problema do filme é que ele não anda, ele não retrata. O que o Crash faz é ilustrar pessimamente o mundo em que vivemos como abrigo do preconceito e da discórdia, um mundo em que todos nós praticamos o preconceito visível ou invisivelmente. Quer dizer, eu, tu, ele, nós, vós, toda a porra do planeta é preconceituoso. O grande quê é que Crash pinta esse quesito como uma doença, um "parasita dos tempos modernos": quem é preconceituoso, quem denuncia o preconceito, que nem sabe o que é preconceito, quem repudia o preconceito, quem propaga o preconceito: todo mundo, querendo ou não, tem o preconceito no sangue, isso aos olhos de Crash. Los Angeles virou a Terra: ninguém te toca, todos estão atrás do vidro e do metal.
Por outra via, essa ideologia movimenta uma reflexão interessante: o preconceito oprime a evolução de pensamento e de convivência. O preconceito é, de fato, algo maior do que a nossa mente pode projetar. Esse mal consome a liberdade, consome o direito de ser e de viver em harmonia. Paz? O que significa paz? Do título Crash (verbo "colidir" em inglês) vem o curto discurso que abre o filme (pelo personagem do Don Cheadle). Em Crash, estórias se cruzam e colidem umas com as outras. Essa interconexão é o efeito colateral de um impacto fatal. Agora, se é um filme bom ou ruim: Crash depende do público, da nossa relação com o preconceito e da nossa visão acerca o preconceito e o seu impacto no mundo e na atualidade.
Crash - No Limite (Crash)
dir. Paul Haggis - ★★★
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