sábado, 30 de outubro de 2021

Azor

Em Azor, é bem pontual aquilo que transmite o medo e a tensão gerados pela ferrenha ditadura militar na Argentina. Nesta trama, esse medo só é sentido de forma muito contida, em conversas sussurradas, em trocas de olhares, telefonemas, menções a pessoas. O terror fica à espreita, velado. O que está no centro do filme é o mundo de negociações, acordos, conversas e sugestões que acontecem nas entrelinhas de uma Argentina mergulhada no brutal. Azor não quer esclarecer muita coisa. Mas ele sabe para quem quer olhar. O que acontece aqui é o estabelecimento de um suspense distorcido, fantasmagórico, onde até mesmo os fantasmas são silenciados. É poderoso enquanto um filme que está muito atento aos silêncios, preciso na sua discrição. Muito sinistro ao dar conta de vozear o que está sendo silenciado, tentando ser apagado. Um filme de terror mesmo, praticamente. 

Ahed's Knee

Mais raivoso que Sinônimos, tão interessantemente fluído como ele. Lapid continua destrinchando a nacionalidade israelense, indo fundo no seu questionamento enlouquecido da identidade por trás de sua nação, tecendo uma reflexão sobre o pertencimento a um país de muitas contradições e conflitos. Não está muito longe do espírito indignado de Sinônimos, mas é muito diferente dele, na provocação, no modo como o diretor parece expressar que a raiva está no limite, uma panela de pressão pronta pra explodir, no modo como ele se volta pro próprio cinema. Isso gerou um filme incomodado, incisivo, embriagado de um certo ódio e também de melancolia. Mas é apenas a continuação da crônica desse diretor dos seus sentimentos complicadíssimos em relação à sua pátria. Para retratar esses sentimentos, Lapid se permite experimentar, quebrar regras, ir nas direções que ele bem quer. É um grito de revolta em forma de filme, enérgico na sua retórica e sentimental ao ser particular, íntimo até. Ahed's Knee vai de encontro ao particular, porque quer que isso se choque contra o que ele acusa: a privação e o peso de Israel. É um filme objetivo nos seus motivos. Mas também, de certa forma, consegue ser tenro, por nos fazer enxergar todo aquele caos, o homem e o país em conflito, com outros olhos. 

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Sr. Bachmann e Seus Alunos


É com muita sensibilidade que Sr. Bachmann e Seus Alunos acompanha a rotina de um grupo de alunos e um professor numa cidade industrial da Alemanha, fazendo um exercício muito saudável de observação das interações que surgem dentro daquele ambiente. É também do seu interesse captar as tensões étnicas e sociais daquele grupo de pessoas, tecendo um comentário importante voltado para a atual tensão da imigração na Europa, para as diferenças que se fazem presentes dentro do grupo, pensando bem as situações e os temas envolvidos, partindo do registro para fazer uma reflexão mais profunda sobre a escola, a identidade e seu poder catalisador, o estabelecimento da convivência num cenário em que culturas diferentes dialogam, o amadurecimento, entre outras coisas. É também um filme que, mais intimamente, reflete a figura do professor, o sr. Bachmann, enquanto participante muito ativo dos processos dentro da escola, um ser atento à integridade e ao bem-estar daqueles alunos. O filme dá espaço para as preocupações e esforços desse agente, dando conta de expressar a essência da profissão e suas muitas responsabilidades, mas especialmente aquela de tornar um lugar mais saudável para as relações se estabelecerem, mediação dos conflitos, diálogo, discussão de questões relevantes. Sr. Bachmann e Seus Alunos é muito competente como um registro dos mais diversos acontecimentos da rotina escolar, porém vai longe ao se permitir construir uma visão muito interessante sobre essa conversação entre professor e aluno, sobre as dificuldades de fazer dois mundos diferentes se conversarem, e no fundo tece, aí, uma mensagem muito mais universal, para além da sala de aula. Porém, novamente, é sua delicadeza ao percorrer esses temas que faz com que ele se sobressaia, e dentro desse subgênero dos voltados pra educação, é um desses que merecem atenção especial.

domingo, 24 de outubro de 2021

Pegando a Estrada

Filme de estréia do filho do Jafar Panahi, Panah. É um filme bem-vindo no sentido de ele conseguir dar conta de sentimentos bem específicos, que às vezes outro filme abordaria indo em outras direções, tentando ser mais expansivo, mas aqui funciona bem nesse formato de road movie mais íntimo, isolado. Ele tem esse interesse por cenas em que as músicas tem bastante expressividade, na assertividade passada pelos atores, nos diálogos bem-humorados. De alguma forma, ele não consegue passar batido, não é um filme raso de maneira alguma. A ida do filho ao exterior mexe com uma estrutura mais particular (a família, os pais que assistem esse filho deixar o país) na mesma medida que reflete sentimentos muito próprios de uma nacionalidade inteira (o deslocamento, a ruptura), ambos parecem se confundir aqui. 

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Jovem Mulher (2017)

O jeito como esse filme abraça a cativante protagonista por si só já faz ele valer a pena. Uma defesa muito alegre da espontaneidade dessa "jovem mulher". Dosch é o carro-chefe do filme, óbvio, e ela está ótima. É quando o filme abre espaço para observar as interações de Paula com os outros que vemos a sensibilidade de seu olhar, cômico, melancólico, tão fora da casinha quanto a protagonista. 

Nas Garras do Vício (1958)

É com um sentimento de coração partido que se assiste à trajetória de Serge, o motorista do caminhão que passa a maior parte do tempo bêbado, arrumando encrenca, um homem magoado e decepcionado, que espelha suas feridas interiores em atitudes autodestrutivas, o torna quase insuportável. A volta de um amigo de longo tempo só irá perturbá-lo ainda mais. A mulher está grávida, porém até a gravidez o deixa com desesperança, e isso se reflete no tratamento dele para com ela, que aceita em silêncio sua infidelidade, que atura sua indiferença. O cotidiano provinciano só é suportado com a ajuda do álcool. Há todo um suspense em cima da instabilidade de Serge e da compaixão de François, o amigo movido a ajudá-lo de todo jeito, mas é um suspense muito mais focado no estudo de comportamentos ao invés de uma determinada situação em si. O foco está no efeito que cada personagem tem sobre o outro. Um filme compreensivo em expor como os traumas são normalizados, transformados em banal. É quase como se fosse um segredo que Serge conta a François, um segredo da vida ali, ao comentar sobre a menina que ficou vulnerável a essa "normalidade". Uma das cenas mais expressivas de um filme tão atencioso a essa relação entre as dores que se internalizam, e as que se provocam.

Soul (2020)

Não é segredo que a Pixar faz animações muito populares para as crianças, geralmente lidando com temáticas universais para todas as idades, não apenas destinadas a esse público em específico. E Soul é talvez o filme do estúdio que mais possa ser lido como voltado mais ao público adulto que ao infantil, muito embora seja apenas uma presunção, porque o filme ainda sim é cativante e interessante às crianças, e há tantos outros filmes seus que assimilam uma mensagem mais universal, dirigida a qualquer pessoa de qualquer idade, sem desviar o foco desse público em específico. Poderiam haver riscos, mas a história é tratada com tamanha inventividade, que se passa por temas existencialistas, reflexões e questões bem mais adultas do que infantis, sem que se perca um equilíbrio, que rege o filme e permite que ele respire. É verdade que o filme parece reciclar ideias que já são praticamente familiares aos filmes da Pixar, mas o diferencial é que ele realmente está seguro do que quer transmitir, seguro dessa entrega a uma série de inovações e abordagens, e a competência dele é construir algo que não é nem muito sério e nem muito infantilizado, e está longe dessas duas definições. É um conto universal e existencialista. É uma viagem, no melhor sentido, e um abraço da vida. É muito bom ver os lugares aos quais a Pixar está se permitindo chegar.

Diários de Otsoga (2021)

A trilha é fantástica e Diários de Otsoga é uma experiência bem casual, leve, de uma filmagem que não deu certo na pandemia e seguiu uma direção diferente daquela prevista. É um filme que brinca com esse conceito de ser rodado em meio a restrições, na face de um evento sem precedentes e que acaba atrapalhando muitos dos planos e das intenções dos envolvidos. Mas a surpresa dele é que ele acaba funcionando sem precisar ir muito longe, sem ir fundo demais nesse contexto pandêmico, mas sim lidando com o que vai surgindo e deixando que o filme vá apenas absorvendo isso. Mas, logicamente, é um filme com um gosto bem particular, íntimo, e bem descontraído, como se tivesse sido feito para ser visto dessa maneira, "descontraidamente".

Pedregulhos (2021)

O andamento desse filme é muito expressivo, com muito pouco até. Ele faz as escolhas certas e trabalha muitíssimo bem esse andamento, pacífico, mas de certa forma muito ágil. Na trama, a relação de um pai (alcoólatra, explosivo) e filho ao longo de uma tarde muito quente, andando entre vilarejos. A maneira como ele se desenha a partir de sensações específicas (o deserto árido, as caminhadas) projetadas por suas imagens, a precariedade dos diálogos verbais, é também um indicador dessa atenção às imagens, a um contar de histórias baseado na expressividade da linguagem do filme. É árido, seco, ao capturar todas as tensões e a precariedade do contato, mas parece ser um filme que sempre busca por algo a mais, um completar, no meio disso tudo.

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

A Mão / The Hand

Lindo curta do Wong Kar-Wai, com seu estilo habitual de sempre, um trabalho muito sutil com as cores e a luz, muito prazeroso de se ver, surpreendente porque parece ser muito mais descontraído que seus melhores trabalhos, e o resultado ainda sim remete ao que esses trabalhos - e seu estilo - tem de melhor e mais sensível, até um pouco irônico na sua dramatização de um atípico caso de amor. Não há muito de novo pra quem já conhece Kar-Wai, o que conta aqui é o tratamento que o curta recebe. A comparação com Amor à Flor da Pele é inevitável: A Mão está na sombra dele. 

terça-feira, 5 de outubro de 2021

Roma, Cidade Aberta

Desolador. É um filme carregado de esperança, sim, ao acompanhar os personagens cujas vidas é dilacerada pela guerra, mas é essencialmente um retrato arrasador da brutalidade e da irracionalidade daquela guerra, da sua violência injustificável. Para dar conta da desumanidade, Rossellini olha para a perseverança das vítimas dela, sem nunca se esquecer de fazer um filme de guerra, mostrando o que ela realmente é: é necessário um filme doloroso para retratar uma guerra dolorosa. E, ao mesmo tempo, ser fiel à lealdade daqueles personagens, cujo único poder era o de resistir. Roma, Cidade Aberta é dilacerante, necessariamente dilacerante, mas também se trata de uma obra muito humana.