sexta-feira, 29 de setembro de 2017

O ESTRANHO QUE NÓS AMAMOS (2017)


Aqui parece que existe uma relação muito curiosa de respeito entre o remake e o primeiro de Don Siegel (que é uma obra-prima, eu diria irretocável), já que Sofia poderia muito bem optar por emular a mesma catividade que Siegel imprimira em seu filme ou até mesmo provocar novos intuitos a partir de uma história já estabelecida, mas ela simplesmente prefere recontá-la usando de seus próprios adereços cinematográficos, mantém-se o mito, altera-se a disposição dos elementos fílmicos, e por mais que estejamos falando do mesmo filme, praticamente, existem muitas diferenças – estéticas, técnicas e narrativas – entre ambos os trabalhos. É claro, também pode-se dizer nos resultados, mas acho que, dado que a Sofia introduziu um parâmetro parcialmente anti-discernitivo em relação ao filme de 71, não sei se vale fazer comparações, o que importa mesmo é notar o que ela transpôs aqui e de que maneira. 

O deslize do filme é justamente na carga dramática, a Coppola erra a mão na direção do elenco, o que acaba gerando tanto atuações nem tão satisfatórias de Colin Farrell e Elle Fanning, e do outro lado ambas Nicole Kidman e Kirsten Dunst em papéis memoráveis e momentos gigantes. O destaque do filme, em resumo, parece ser mesmo o tratamento com a fotografia, que é deveras fascinante. Os enquadramentos, tão simples, são ricos, meditantes. A iluminação é tão discreta (e às vezes um tanto escura) que em dados momentos há cenas que provocam espanto com a mudança súbita de tonalidade, mas nada de grave que comprometa o trabalho encantador na fotografia do Philippe Le Sourd.

Se o despojo na construção dramática talvez provoque uma distância, há a fotografia concentrada em uma palidez que transita com naturalidade entre uma luz modesta e um sentimento cada vez mais crescente de cores escuras dominando a tela, no mesmo caminhar da tensão, a direção de arte que é por si só uma obra-prima. Se Sofia Coppola esboça seus domínios plenos de uma mise-en-scène com uma das arquiteturas mais completas (e talvez isso possa justificar o porquê do prêmio em Cannes) e recheadas de cuidados, há uma confirmação do que já era premeditado por trabalhos anteriores da filha do mestre Francis Ford, por exemplo em Maria Antonieta, que é a precisão estética, acompanhada de uma minuciosidade técnica, que abre espaço para a riqueza da construção narrativa em uma classe atordoante. É claro, não há muito o que dizer sobre este estar aquém à versão de Don Siegel, mas sim o processo criativo de reformatação estética e visual, e um aprofundamento formal que, embora não se distancie muito do esperado, gera resultados pra lá de interessantes. E, há de se relevar, em comparação ao anterior da diretora, Bling Ring, este aqui acumula méritos.

O Estranho que nós Amamos (The Beguiled)
dir. Sofia Coppola
★★

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

LADRÃO DE ALCOVA (1932)


"Casamento é um doce engano que duas pessoas cometem juntas"

O final (maravilhoso) consegue ser duplamente melancólico e alegre, belíssimo em ambas as formas, com um ritmo tão adorável quanto seu grupo de personagens. Não me lembro de quando foi a última vez que eu vi uma execução tão bonita de uma traminha romântica, ainda mais com o enorme cuidado que Lubitsch tem com a composição de cada cena e as atuações grandiosas de um elenco deliciosamente inspirado. O frescor é impressionante.

Ladrão de Alcova (Trouble in Paradise)
dir. Ernst Lubitsch
★★★★★

terça-feira, 26 de setembro de 2017

VOCÊ E OS SEUS (2016)


Hong Sang-Soo diz que, a cada filme que faz, é como se tivesse se livrado de um peso, "superado um obstáculo", e que espera que o mesmo aconteça a quem assiste. O sul-coreano (que mantém uma frequência de 1 filme anualmente desde 2008, tal qual um Woody Allen, e por vezes entrega dois ou três num mesmo ano, como aconteceu nesse) parece aprimorar lentamente seu estilo pacato de filmar, com planos fixos, estáticos, que raramente se permitem a movimentos bruscos ou coisas do tipo, mas que encontram justamente nessa construção plena e rígida de planos um lar para a expansão dos significados que uma imagem pode conter.

Os zooms, excessivos, fermentam a continuidade desses mesmos filmes. Hong, mestre do cinema contemporâneo, a cada trabalho que entrega parece emergir em meio às mesmas histórias, personagens, situações, lugares e sentimentos um cerne diferencial. É como se ele procurasse, incessantemente, a diferença nas repetições, sem medo de afirmá-las quando necessário (ou reafirmá-las, dados os casos) ou brincar com as muitas possibilidades que podem surgir de histórias, de construções narrativas, de pequenos detalhes, de relações humanas aparentemente simples que se fragmentam em figuras complexas, estranhas, profundas. 

Esse novo filme do diretor, que não estreou ainda no Brasil, é um de seus mais deliciosos. Tem um quê de Esse Obscuro Objeto do Desejo, de Buñuel, no qual duas mulheres interpretavam a mesma personagem e ficavam alternando o papel ocasionalmente, de forma que tal mudança nunca era evidenciada pelo protagonista, Fernando Rey, uma vez que se tratava da mesma personagem, mas com intérpretes distintas. A mesma coisa acontece aqui, entretanto Hong é ainda mais radical: a mesma atriz interpreta duas personagens que são praticamente idênticas, mas nunca conseguimos descobrir qual é a diferença entre elas (nem mesmo os personagens, já que por repetidas vezes há confusão envolvendo seus nomes).

Esse paradoxo meio alternativo da história traça um movimento muito interessante na construção da personagem, que nada mais é do que um complemento às típicas figuras do cinema de Sang-Soo, pessoas envolvidas em relações amorosas conturbadas, e passando por "perrengues românticos". Do drama à comédia, do estranho ao casual, Hong passeia por entre esses personagens já tão conhecidos de seu cinema, mas que nunca são os mesmos, não importe o filme o diferencial está ali, podemos estar falando de histórias idênticas, mas que nunca são realmente iguais, tal como as duas personagens que estão neste filme, podemos talvez não diferenciá-las fisicamente, mas psicologicamente há distinções entre elas (nomes, personalidades, etc.).

A essência de Você e os Seus está cravada no seu frescor narrativo. Seguir a rotina do "mais do mesmo" pode parecer um desafio para o espectador, mas captar as frestas, isto é, os diferenciais de uma constante, adquire um imenso potencial quando estamos falando do cinema de Hong Sang-Soo. Ele se permite a mudanças, só que às vezes o que é frequente, o que se faz "clichê" fala mais alto, e nos deixamos levar pela mesmice, sem dar atenção ao que está transformando mesmo que evidentemente. Estamos acostumados a um cotidiano, a um certo formato de executar e enxergar as coisas, e alterar esse molde de alguma forma pode parecer uma tarefa difícil. Não é assim na vida também? E no cinema?

Os filmes de Hong, entre outros aspectos, sobressam-se pelo uso inacreditável da metalinguagem (acho que deve ser a segunda coisa que a gente mais encontra nos filmes dele além do zoom – sem querer generalizar, só tecnicamente falando mesmo) que aprofunda-se em camadas, é o ato de transpor no material artístico uma carga completamente imersiva, por vezes alusiva, mesmo que o próprio Hong afirme que "a profissão de um personagem em um filme seu nunca é mais importante que a própria personalidade do mesmo – se um tal cara é cineasta, é porque trata-se de uma realidade que está mais corrente à dele, talvez não poderia filmar alguém que ele não conhece, correria riscos de recorrer a estereótipos para esculpi-lo, mas provavelmente se ele fizesse um personagem de uma outra profissão, alguns sentimentos e sensações permaneceriam nesse corpo, a profissão acabaria subexistindo em um outro contexto, mas não necessariamente emocional"

As curiosas obras desse diretor não param de crescer na minha cabeça. É um cinema incisivo, com gosto de quero mais e que parece ir cavando mais fundo à medida em que preserva seus mesmos consensos. Há todo um cuidado reverberado por trás dessa aparente sutileza (ou como alguns críticos persistem, uma certa "preguiça"), que revela que o cinema de Hong é mais complexo do que podemos imaginar, e que ainda guarda, na sua simplicidade formal, um sabor delicioso... Embriagador.

Você e os Seus (Dangsinjasingwa dangsinui geot)
dir. Hong Sang-Soo
★★★★

A GHOST STORY (2017)


Alguém tentou mesclar Malick, post-horror, crítica anti-Trump (totalmente sem nexo), fotografia sensorial, vibe "romance do milênio" e deu nisso. Aquela cena da Rooney Mara comendo a torta chega a ser um espetáculo (sozinha, longe do filme) e deve ser a única coisa que realmente me interessou (se é que a gente pode chamar isso de interesse) + por conta da presença da Mara do que pela concepção em si. O esquema de provocação é muito ambicioso (isso não foi um elogio) e o Lowery tenta estabelecer contatos visuais e estruturais o tempo inteiro mas por algum motivo não percebe que isso tá prejudicando a coesão do seu filme, como se ele quisesse extrair algum tipo de fascínio mirabolante de cada partezinha desse draminha experimental partindo de descuidados, de lógicas individuais, de espaços vazios. Fica muito forçado, a ponto de parecer patético, e piora quando ele joga algo em cena, aleatoriamente, pra ver no que é que vai dar.

Quer me fazer rir? Indica isso aqui pro Oscar.

A Ghost Story
dir. David Lowery
½

O RAPAZ QUE PARTIA CORAÇÕES (1972)


A desconstrução amarga do sonho americano, exposta ao ridículo e cruel, o abandono das heranças culturais pelo ideal burguês de status. Elaine May trabalha seu filme de maneira tão direta, corrosiva e ainda sim reserva o melhor para os pequenos detalhes da sua comédia de desconfortos e humilhações. O que era leve logo se torna denso, à medida em que o casamento de Lila (a mulher, imperfeita, sensível e comum) e Lenny começa a ruir com a chegada de Kelly (a mulher, esbelta, bela, de cabelos loiros, o padrão) que causa no homem uma atração homérica e um desejo impulsivo de se livrar da esposa, ou, como ele se refere, "um erro". É simplesmente incrível como May consegue gerar tanto desconforto a partir dessa instância humana de que as nossas determinações, em algum ponto, refletem nas próprias fraquezas que carregamos. E pode-se dizer o mesmo de um ponto de vista social. Existem cenas hilárias, outras duras, cruas, mas o limite entre a comédia e o insano está presente em cada uma delas, à mesma ilustração, com o mesmo efeito tenso e estupefato. Performances excepcionais de Jeannie Berlin e Charles Grodin. 

O Rapaz que Partia Corações (The Heartbreak Kid)
dir. Elaine May
★★★★

MATANÇA NECESSÁRIA (2010)


Há pouquíssimos diálogos em Matança Necessária, dá pra contar nos dedos – o próprio personagem principal, vivido por Vincent Gallo, em performance dilacerante (premiada em Veneza com o Volpi Cup), sequer pronuncia uma única palavra – Skolimowski prefere que as imagens nos contem a história e transmitam as forças emanadas pela narrativa audiovisual (os sons, os rostos dos atores, a câmera que escolta a jornada desértica do terrorista com precisão biológica, a expansão e a retração dos planos, a constante sensação de deslocamento e perda, a exatidão primitiva e essencial do campo imagético) para a expressão completa (ou pelo menos muito próxima) de um conto de guerra, de sobrevivência e daquilo que urge por trás de toda catástrofe humana: a incomunicabilidade. É um filme instigante, cuja essência está calcada no seu ritmo ofegante, disparado, inquieto. 

Matança Necessária (Essential Killing)
dir. Jerzy Skolimowski
★★★★★

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

3 ANOS DE BLOG


Hoje é um dia bastante especial para este espaço, que completa seus três aninhos de existência. Quero agradecer aos leitores por sempre estarem acompanhando as publicações e por terem sido tão fiéis a este pequeno lugarzinho durante esses três anos. É sempre uma honra poder comentar sobre minhas paixões cinéfilas e compartilhar com vocês minhas modestas opiniões sobre filmes, séries, premiações, festivais, etc. 

Não vou escrever muita coisa, só quero agradecer mesmo ao público por toda a dedicação, o trabalho de cederem um pouco da atenção de vocês ao que eu escrevo aqui, já vale muito pra mim. É aqui nesse blog onde eu escapo, onde eu confronto e também procuro informar sobre o que acontece na sétima arte. Bem, obrigado por tudo. E que venham mais anos e comemorações deste espaço que eu amo tanto!!! 

sábado, 16 de setembro de 2017

NA PRAIA À NOITE SOZINHA (2017)


São muitas as semelhanças do cinema de Hong Sang-Soo com os de diretores como Éric Rohmer (muitos diálogos, temáticas envolvendo relações amorosas, personagens vivendo emblemas românticos) e Woody Allen (neste caso não só no que diz respeito às próprias temáticas trabalhadas mas também o ritmo de filmar, visto que só no ano de 2017 Sang-Soo já entregou três filmes, incluindo este), e embora existam várias influências, o cinema do sul-coreano está cada vez mais se tornando um sui generis, cada vez que ele aprofunda esse conceito do "simples que é complexo". 

Esse olhar que ele tem para a beleza do ordinário, da construção fílmica mais genuína que parte desse , dos planos mais modestos e ao mesmo tempo preenchidos com vida, com carinho, e talvez não exista outro diretor hoje em dia capaz de conciliar imagens às palavras como Sang-Soo faz e, ainda, trabalhar de maneira tão absurdamente minimalista e expressiva com a linguagem cinematográfica (nos seus aspectos mais introspectivos). 

Na Praia à Noite Sozinha, filme que deu a Kim Min-Hee o (merecido) prêmio de melhor atriz em Berlim em fevereiro, é mais uma delícia de filme desse cineasta, que parece se renovar a cada filme mesmo sem sair do seu estilo, permanecendo com o mesmo modus operandi nos quesitos técnico (a câmera estática, os zooms, o formato de tela) e narrativo (subdivisão estrutural, falsa sequência, tratamento de diálogos). Quem brilha em tela é Kim, com seu charme radiante, imersivo, cativante. 

O interessante deste filme é a manifestação da metalinguagem, que se dá através do caso envolvendo a principal do filme, Kim, e o diretor, Sang-Soo (na vida real, ambos, que são casados, revelaram ser amantes) e que é referenciada por várias vezes no filme (há também muitas referências à própria filmografia de Hong, por exemplo numa certa fala um personagem diz a respeito de um certo material músico que é "aparentemente simples, porém complexo"), e vale lembrar que a metalinguagem é um artifício extremamente presente no estilo dele (quase todos os seus filmes tem como personagens principais pessoas envolvidas no ramo cinematográfico, sejam diretores, atores, agentes de venda de filmes, críticos, professores) e aqui o cuidado que ele tem, não só com a narrativa que ele disseca mas essencialmente a imagem, é por si só de uma grandeza irrecusável. 

É do prazer de cenas em que vemos personagens interagindo em mesas de bares e pequenos restaurantes, conversando sobre vida e amores, ou de quando a própria Min-Hee canta à capela enquanto fuma um cigarro, ou quando ela dá um beijo em uma amiga, há todo um mecanismo que conspira para um certo dimensionalismo, uma revitalização dos manejos fílmicos e da própria carga imagética, os ângulos inventivos parecem não acabar, bem como os zooms – que sempre foi a especialidade de Hong – na sua completa despretensão acaba por desvendar uma ferramenta inteligente que possibilita ora intriga, ora espanto, ora encanto, e sempre muito seguro da dimensão que quer obter, mesmo que isso não pareça depender em nada de um certo calculismo para acontecer, e seria até irônico afirmar isso em face dos "improvisos" que esse cinema esbanja. 

Quase uma poesia, de um lirismo secreto, de uma beleza que convida o espectador a se deliciar com o simples, com um gesto modesto de delicadeza e de alta expressividade, que emana uma força estrondosa, como raramente se viu surgir em tela. Cada filme de Hong Sang-Soo é um pequeno milagre do cinema, um tesouro cuja riqueza reside no que passa despercebido quando não estamos assistindo a um filme, e esses gestos ressignificados passam a ter uma grande importância dispostos, pelo menos nos filmes dele. Sobre este filme lindo, acho que é uma das experiências mais gratificantes, e até agora o melhor filme do ano de 2017. Que venham os outros filmes desse cineasta genial, certamente um dos meus prediletos do cinema atual.

Na Praia à Noite Sozinha (Bamui haebyun-eoseo honja)
dir. Hong Sang-Soo
★★★★★

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

TWIN PEAKS – THE RETURN


É, chegou ao fim. Foi difícil dizer adeus a Twin Peaks – The Return, o tão aguardado, tão esperado delicioso, maravilhoso e arrepiante comeback de uma das maiores séries já produzidas – ou melhor dizendo, a maior série de televisão de todos os tempos, creio eu – depois de um intervalo de 25 anos desde que "how's Annie?" intrigou os espectadores ao final de uma 2ª temporada (e o "see you in 25 years"). 

O retorno. A cidade. Laura Palmer. O mistério. O bem e o mal. David Lynch há anos não entregava um trabalho assim, de um pique tão estupendo, é a volta do mais consagrado, famoso e popular feito da carreira desse mestre que, ainda com a sua filmografia (única), curioso perceber que nenhum filme obteve tamanho sucesso (em termos de popularidade) como o de Twin Peaks, um eco, um marco, a revolução da televisão norte-americana, de uma grandeza ímpar.


Também vale lembrar que é o próprio comeback do diretor também, que está sem dirigir um longa-metragem desde 2006 (há 11 anos) quando entregou Império dos Sonhos (tido por ele próprio, recentemente, como seu "último" longa), ou seja, estamos falando de um regresso duplo, de Lynch e de Twin Peaks. E, ainda, de Lynch a Twin Peaks. Sem falar dos espectadores, é claro.

Se formos compreender Twin Peaks – The Return como um filme de 18 horas, vale a pena pensar que trata-se de uma das experiências mais incríveis que Lynch já produzira com a imagem, com a câmera. Mas, principalmente, é um retorno aos princípios da arte televisiva. A TV é subestimada? Superestimada? Lynch procura atenuar uma provocação da linguagem televisiva ao inserir uma atmosfera tipicamente cinematográfica (percebe-se na construção de planos evocativos, que pensam além da tela e convidam o espectador a uma dimensão introspectiva) e trabalhá-la com um frescor tão benévolo que não há quaisquer distinções imagináveis entre a imagem de TV e a imagem de cinema. Mas, afinal, são imagens.


Lynch é um mestre das imagens, ele sabe como manipular cada fragmento e cada elemento disposto em tela, ele compreende a subexistência de uma ilusão que se alterna a cada piscadela. O olhar é ilusão, mas o olhar é real. E a imagem é um veículo pelo qual Lynch monta, desmonta e remonta visões, pontos de vista, o puro ilusionismo imagético.

Se há mentira no que é visto, há também a verdade do sentimento (o que os olhos não veem, o coração não sente) mas onde é que entra a compreensão? Sim, a busca por um sentido. Afinal, não é esta a principal "reclamação" dos queixosos de Twin Peaks? "O que quer dizer isto, aquilo?". Quem conhece David Lynch sabe que interpretar seus trabalhos como meros "enigmas a serem desvendados", "quebra-cabeça a ser montado" é no mínimo um puta de um insulto. E isso não quer dizer que não é preciso significado, mas é preciso sentido? Precisamos mesmo de um sentido para entender tudo o que está acontecendo ao nosso redor? E porquê?

Lynch junta todos seus esforços para nos fazer sentir, sentir mais e sentir no volume máximo, mas não compreender – e isso parece ser a causa da frustração de muita gente que, ainda num final arrebatador daqueles, procura um sentido, pra quê? Em tempos onde razão fala mais alto, coração é desvalorizado, incompreendido, rejeitado. Sabemos compreender. Sabemos sentir? Discernir a mentira da verdade, e a doce ilusão que é estar diante do desconhecido?


David entrega mais perguntas do que respostas, e se o incômodo que isso pode gerar talvez afaste uma plateia com gostos mais convencionais, por outro ensina que uma pergunta pode ser uma resposta também. A nova temporada de Twin Peaks tem um foco especial no detetive Dale Cooper, desaparecido há 25 anos, cujo paradeiro ninguém sabe no que deu.

Eis que somos apresentados a duas versões de Dale Cooper, os "duplos", um cara que realiza trabalhos sujos e tem contatos no mundo do crime – o doppelganger – bem como possui certos "poderes" estranhíssimos, e do outro lado um homem de família, que trabalha em uma empresa de seguros e que também está envolvido em confusão, mas a sua identidade trapaceira acaba sendo trocada – na verdade meio que filtrada – pela de um personagem adorável, o mais adorável da série: Dougie, um sujeito de quem conhecemos muito pouco mas aprendemos a gostar dele ao percebermos a inocência de seus atos e o seu jeito meio sonolento e pacato de ser, como se fosse um velhinho, emitindo um misto de fofura e humor.


No decorrer da série – permeada por estranhos eventos dentro e fora de Twin Peaks – há experimentalismos dos mais diversos, o universo lynchiano e o estilo surrealista do diretor, entre as provocações que surgem nesse ínterim, completam e preenchem a tela. Há referências diversas a filmes que ele dirigiu, por exemplo Cidade dos Sonhos (há algumas cenas que inclusive parecem ter sido gravadas em um lugar muito semelhante ao Club Silenzio, e a participação de Rebekah del Rio, de "Llorando", ao final de um episódio), Veludo AzulEraserhead e inclusive Twin Peaks Os Últimos Dias de Laura Palmer, o famoso filme da personagem.

Nesta temporada, alguns personagens secundários da trama da série de outrora retornam com mais amplitude, por exemplo o Gordon Cole, interpretado pelo David Lynch (numa das atuações mais importantes do seriado), a Diane (que não chegou a aparecer nas duas temporadas anteriores, mas era mencionada com frequência pelo Dale Cooper em mensagens num gravador – e que nesta temporada é interpretada belamente pela sempre fascinante Laura Dern), Sarah Palmer, mãe de Laura, que também está com um foco maior, principalmente nos episódios derradeiros; entre outros.

Há também novas personagens nesta geração, além do já mencionado Dougie, temos a sua esposa, Janey E. (Naomi Watts, em mais uma parceria triunfal com o mestre), uma mulher de punhos de ferro e que não tem medo de enfrentar ninguém, e o filho deles dois, Sonny Jim; Steven Burnett, um rapaz perturbado que mantém uma relação tempestuosa com a jovem Becky, filha de Shelly Johnson e de Bobby Briggs, formando uma lista de personagens das mais fartas e interessantes.

Se houver uma quarta temporada – e se ela chegar, Lynch com certeza não a fará para dar respostas, mas sim para criar perguntas ainda mais excepcionais – será muito gratificante, até porque sempre que tem algo de novo do Lynch é uma grande honra para nós, os espectadores. Com este retorno triunfal, ele prova não só que continua em controle pleno de sua arte como também está cada vez mais aberto a experimentar em novos terrenos, desta vez, por exemplo, com a fotografia digital (tecnicamente falando) que está muito bem construída e tem uma funcionalidade incrível; e também com uma índole construtiva bem mais liberal, e uma linguagem visual com aprofundamentos impressionantes (isso se dá à fotografia magistral de Peter Deming).


Entre outros aspectos técnicos desta nova temporada, também se sobressai a montagem, que é de uma valorização sublime (e dá pra acreditar que teve gente que ainda criticou a edição dos episódios?). Há também o uso fascinante de efeitos visuais por diversas vezes (e maneiras). Lynch sempre foi um mestre no quesito "causar visualmente" e os recortes e impressões que ele realiza ao inserir objetos em cena e os experimentalismos das técnicas de efeitos são realmente deliciosas.

Embora seja uma temporada com um foco disperso entre muitos artifícios de gênero, em dado momento temos o horror, o pânico, o suspense; e dado outro, temos o romance, a beleza, o sentimentalismo, uma naturalidade imensa que recaí para um senso de humor aguçadíssimo (principalmente no núcleo de Dougie, o núcleo "benévolo" da bondade, reconciliação, fraternidade, graça e alegria) e pelo outro lado temos núcleos mais tensos, desestabilizados, perturbadores, que acabam evocando no público a estranheza, o medo, o choque, e também a raiva (como é o caso do núcleo do Richard Horne, um personagem com um tom mais vilanesco).


Entre retornos e novas chegadas, Twin Peaks – The Return deixa uma marca no nosso coração, e um suspiro que já alerta a saudade. E aquele final... Os gritos de Sheryl Lee... Dale Cooper... E os gritos, e os cochichos. Puxa vida. Aquilo sim é um final. Quem dera eu pudesse agradecer à Lynch e também à Mark Frost, esses dois gênios, por uma criação tão singular como esta. E parabenizar, é claro. Twin Peaks – The Return é inesquecível, é simplesmente um estouro, maravilhoso. E eu mal posso esperar pra rever essa obra máxima.

Twin Peaks – The Return
★★★★★