terça-feira, 26 de setembro de 2017

VOCÊ E OS SEUS (2016)


Hong Sang-Soo diz que, a cada filme que faz, é como se tivesse se livrado de um peso, "superado um obstáculo", e que espera que o mesmo aconteça a quem assiste. O sul-coreano (que mantém uma frequência de 1 filme anualmente desde 2008, tal qual um Woody Allen, e por vezes entrega dois ou três num mesmo ano, como aconteceu nesse) parece aprimorar lentamente seu estilo pacato de filmar, com planos fixos, estáticos, que raramente se permitem a movimentos bruscos ou coisas do tipo, mas que encontram justamente nessa construção plena e rígida de planos um lar para a expansão dos significados que uma imagem pode conter.

Os zooms, excessivos, fermentam a continuidade desses mesmos filmes. Hong, mestre do cinema contemporâneo, a cada trabalho que entrega parece emergir em meio às mesmas histórias, personagens, situações, lugares e sentimentos um cerne diferencial. É como se ele procurasse, incessantemente, a diferença nas repetições, sem medo de afirmá-las quando necessário (ou reafirmá-las, dados os casos) ou brincar com as muitas possibilidades que podem surgir de histórias, de construções narrativas, de pequenos detalhes, de relações humanas aparentemente simples que se fragmentam em figuras complexas, estranhas, profundas. 

Esse novo filme do diretor, que não estreou ainda no Brasil, é um de seus mais deliciosos. Tem um quê de Esse Obscuro Objeto do Desejo, de Buñuel, no qual duas mulheres interpretavam a mesma personagem e ficavam alternando o papel ocasionalmente, de forma que tal mudança nunca era evidenciada pelo protagonista, Fernando Rey, uma vez que se tratava da mesma personagem, mas com intérpretes distintas. A mesma coisa acontece aqui, entretanto Hong é ainda mais radical: a mesma atriz interpreta duas personagens que são praticamente idênticas, mas nunca conseguimos descobrir qual é a diferença entre elas (nem mesmo os personagens, já que por repetidas vezes há confusão envolvendo seus nomes).

Esse paradoxo meio alternativo da história traça um movimento muito interessante na construção da personagem, que nada mais é do que um complemento às típicas figuras do cinema de Sang-Soo, pessoas envolvidas em relações amorosas conturbadas, e passando por "perrengues românticos". Do drama à comédia, do estranho ao casual, Hong passeia por entre esses personagens já tão conhecidos de seu cinema, mas que nunca são os mesmos, não importe o filme o diferencial está ali, podemos estar falando de histórias idênticas, mas que nunca são realmente iguais, tal como as duas personagens que estão neste filme, podemos talvez não diferenciá-las fisicamente, mas psicologicamente há distinções entre elas (nomes, personalidades, etc.).

A essência de Você e os Seus está cravada no seu frescor narrativo. Seguir a rotina do "mais do mesmo" pode parecer um desafio para o espectador, mas captar as frestas, isto é, os diferenciais de uma constante, adquire um imenso potencial quando estamos falando do cinema de Hong Sang-Soo. Ele se permite a mudanças, só que às vezes o que é frequente, o que se faz "clichê" fala mais alto, e nos deixamos levar pela mesmice, sem dar atenção ao que está transformando mesmo que evidentemente. Estamos acostumados a um cotidiano, a um certo formato de executar e enxergar as coisas, e alterar esse molde de alguma forma pode parecer uma tarefa difícil. Não é assim na vida também? E no cinema?

Os filmes de Hong, entre outros aspectos, sobressam-se pelo uso inacreditável da metalinguagem (acho que deve ser a segunda coisa que a gente mais encontra nos filmes dele além do zoom – sem querer generalizar, só tecnicamente falando mesmo) que aprofunda-se em camadas, é o ato de transpor no material artístico uma carga completamente imersiva, por vezes alusiva, mesmo que o próprio Hong afirme que "a profissão de um personagem em um filme seu nunca é mais importante que a própria personalidade do mesmo – se um tal cara é cineasta, é porque trata-se de uma realidade que está mais corrente à dele, talvez não poderia filmar alguém que ele não conhece, correria riscos de recorrer a estereótipos para esculpi-lo, mas provavelmente se ele fizesse um personagem de uma outra profissão, alguns sentimentos e sensações permaneceriam nesse corpo, a profissão acabaria subexistindo em um outro contexto, mas não necessariamente emocional"

As curiosas obras desse diretor não param de crescer na minha cabeça. É um cinema incisivo, com gosto de quero mais e que parece ir cavando mais fundo à medida em que preserva seus mesmos consensos. Há todo um cuidado reverberado por trás dessa aparente sutileza (ou como alguns críticos persistem, uma certa "preguiça"), que revela que o cinema de Hong é mais complexo do que podemos imaginar, e que ainda guarda, na sua simplicidade formal, um sabor delicioso... Embriagador.

Você e os Seus (Dangsinjasingwa dangsinui geot)
dir. Hong Sang-Soo
★★★★

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