segunda-feira, 31 de julho de 2017

MAIS TARDE, VOCÊ VAI ENTENDER... (2008)


Num dia fatídico para o cinema, nos deixaram duas figuras de peso do cinema mundial, o grande ícone do cinema francês Jeanne Moreau e o ator/roteirista/diretor/dramaturgo americano Sam Shepard, duas das perdas mais tristes desse ano no meio cinematográfico. Moreau fará muita falta, especialmente a seus admiradores, estive pensando nela ontem mesmo, assistindo a uma entrevista em que ela fora mencionada, e é impossível não ficar no mínimo estonteado com os feitos dessa intérprete maior do cinema. Aliás, assisti Jules e Jim: Uma Mulher para Dois há relativamente pouco tempo, questão de semanas, em que nota-se Moreau no auge de sua beleza e riqueza dramática. 

Atuara em aproximadamente 150 filmes, em uma das carreiras mais sólidas que uma atriz já teve na história do cinema, que descende há mais de 60 anos, desde a década de 50, e desde então foram muitos os trabalhos e com uma gama variadíssima de diretores conceituados e de primeira classe, tais como: Manoel de Oliveira, Jean-Luc Godard, François Truffaut, Orson Welles, Jacques Demy, Michelangelo Antonioni, Cacá Diegues (que a dirigiu em Joanna Francesa, que marca a passagem de Jeanne em solo nacional), Louis Malle, Elia Kazan, Rainer Weiner Fassbinder, Jean Renoir, Luis Buñuel entre muitos outros, inclusive (mais recentemente) com o diretor israelense Amos Gitai, que trabalhou com Moreau em alguns de seus últimos títulos do cinema, incluindo este Mais Tarde, Você Vai Entender..., em que ela interpreta uma senhora que testemunhou o horror do nazismo e que parece viver um dilema familiar ao lado de seus filhos.

Trata-se de um dos filmes mais bem-feitos e construídos de Gitai, com um andamento bastante calmo, tranquilo, mas definitivamente interessantíssimo, pode exigir um pouco mais de paciência de um espectador apressado, mas garante uma sessão repleta de pontos altos, e Moreau está em uma boa performance nesse filme (a cena da sinagoga, por exemplo, é capaz de emocionar bastante) embora apareça mais como coadjuvante. Seus filhos, interpretados por Hippolyte Girardot e Emmanuelle Devos, acabam aparecendo mais. Porém, o plano da personagem dela é dos mais curiosos.

O tema da religião está de volta, Gitai mostra, à medida em que se vê seus filmes, que recorrentemente aborda a religião e a política coladinhos, no mesmo plano, referenciando e casando temáticas da maneira mais cinematográfica possível, e isso só tende a fortalecer a mise-en-scene poderosíssima evocada por seus filmes (vá lá, Aproximação e Free Zone são exemplares grandiosos). Amos é um dos diretores mais interessantes em atividade, e a cada filme essa impressão é reforçada, com um cinema cada vez mais delicioso de se acompanhar e de se assistir, com uma construção repleta de delicadeza.

Aliás, é notável que Jeanne Moreau ainda continuasse a atuar firmemente mesmo de idade avançada, tendo trabalhado em muitos filmes antes de seu triste adeus, aos 89 anos. O legado dessa gigante, a lenda do cinema francês, é imbatível por si só, um legado que só uma intérprete do porte de Moreau, e com o seu talento, poderia gerar, e eternizar. Aqui fica o meu tributo a esta atriz que marcou o cinema pra sempre, como um de seus maiores mitos e ícones e que muito dificilmente sucumbirá ao nosso esquecimento. Vá em paz, Jeanne!!! 

Mais Tarde, Você Vai Entender... (Plus Tard)
dir. Amos Gitai
★★★

sexta-feira, 28 de julho de 2017

BARBARA (2012)


Entre os recentes assistidos, está Barbara, mais um filme que eu vejo pela minha lenta peregrinação pela filmografia de Christian Petzold, um dos maiores diretores do cinema alemão contemporâneo, e que dirigiu recentemente o belíssimo Phoenix (ainda preciso falar desse) também estrelado por Nina Hoss, atriz que é recorrente aos trabalhos dele e que inclusive ganhou o Urso de Prata em Berlim em 2007 por Yella.

Barbara é um desses filmes cuja beleza está no que não é dito, naquilo que apenas é enxergado com a harmonia do espectador com as imagens e o que nos é mostrado dentro do filme, assim como nossa relação se dá com os personagens e as relações entre eles. A personagem-título é uma mulher que aparenta estar na casa dos 30 e que acabou de deixar a prisão e está retornando à sociedade, com isso ela começa a trabalhar como enfermeira num hospital, onde conhece um médico, André Raiser, com quem faz amizade.

A preocupação de Petzold está centrada na imagem, na forma como ele dispõe os atores em cena e também o trabalho magnífico de jogo de luz, sobretudo na fotografia que, dependendo da cena, pode originar impressões extasiantes acerca os personagens e estabelecer um clima muito verdadeiro e longe de ser artificial. Se Petzold está tão dedicado a manter uma funcionalidade dentro da estética do filme, há também um cuidado enorme com as personagens, em especial a título, uma mulher da qual parecemos acompanhar com mistério e ao mesmo tempo fascínio, identificação.

Com a suavidade e a delicadeza que essa obra é construída, passamos a observar a nova rotina de Barbara, o tratamento das pessoas com ela, e a relação desta personagem com as pessoas que frequentam o seu cotidiano, entre elas uma paciente, Stella, uma jovem que está grávida, e que tem muita consideração por Barbara.

Aliás, o que ajuda muito a personagem, além desses cuidados, é a performance extraordinária de Nina Hoss, que vem provando que é uma das melhores intérpretes do cinema europeu recente, e que já nos premiou com uma atuação pra lá de maravilhosa em Phoenix, já mencionado filme seguinte de Petzold em que ela interpreta uma cantora desfigurada à procura do marido (ela faz par com o mesmo ator que interpreta Raiser, o Ronald Zehrfeld.

O filme namora com o melodrama, mas ao mesmo tempo para estar muito determinado a construir um drama bem particular, focado mais nas emoções dos personagens do que no que eles dizem ou fazem durante o filme. Aliás, é uma dessas coisas que torna a filmografia de Petzold tão digna de uma comparação com Fassbinder, a de dar um novo olhar e entregar uma percepção honesta às minorias, os que são vistos com outros olhos pela sociedade alemã por conta de seus atos, seus posicionamentos políticos, suas nacionalidades, enfim, as suas passagens, mas nunca são julgados pelas suas emoções.

Como raros diretores nos dias de hoje, trabalhando dentro de terreno tão íngreme (o drama), Petzold obtém uma enorme e inquietante consistência dramática partindo da fragilidade (ou de uma noção muito particular de corrupção moralista) que subexiste na relação entre os personagens, neste caso um homem e uma mulher. A ex-condenada política de Nina Hoss (espetacular) e o médico isolado de Ronald Zehfeld, duas figuras emergindo das cinzas da catarse política. O caos calmo que surge do contato entre os dois é relatado de maneira seca e relativamente abrasiva, como quem busca uma tranquilidade em meio a um furacão. Ambas a cena do beijo e a sequência final são de uma expressividade impressionante, bem como a utilização da canção At Last I'm Free, que pode até passar batido, mas é o par perfeito para Barbara (o filme e a personagem também). Petzold filma o desolamento como ninguém.

Entre os muitos momentos belos de Barbara, estão o da personagem lendo um livro para Stella no hospital, e também uma cena em que a Stella canta uma musiquinha para Barbara, ou também a cena em que Stella e Reiser se beijam (perto do final) capaz de evocar sentimentos contraditórios, embora seja embebida de um romantismo único. E também a sequência final, acompanhada pelos créditos com a música "At Last I'm Free", do Chic (e que combina muito com o que o filme aborda, aliás). É a questão de uma liberdade, seja ela política, biológica ou fundamentalista – é a liberdade que tanto almejamos, ou mais do que a liberdade em conceito o que realmente queremos é o sentimento de ser livre. Mas, afinal, adianta a liberdade se não estamos livres daquilo que parece nos impregnar com a maior facilidade do mundo: o amor?

Barbara
dir. Christian Petzold
★★★

quarta-feira, 26 de julho de 2017

CONDUTA DE RISCO (2007)


As performances de George Clooney, Tom Wilkinson e Tilda Swinton (brilhantes) ainda continuam sendo os melhores motivos para se ver este filme. Se por um lado Tony Gilroy acerta ao apostar em um mecanismo de tensão que movimenta a trama e traça paralelos entre os personagens criando um ritmo de fluidez impressionante, por outro acaba desvalorizando a mise-en-scene (a fotografia, excessivamente cinzenta, é tanto prejudicada com essa manutenção constante de suspense quanto ajuda a desenvolver uma noção bastante estável de solidez visual) e acaba focando mais em um roteiro que, apesar de saber o que quer, acaba caindo na própria incerteza de polarizar as tensões entre os personagens e arquitetar uma atmosfera de thriller, mesmo que esta não se revele tão facilmente. Há um favorecimento incrível por parte do elenco e também da trilha sonora magnética de James Newton Howard. No que diz respeito a dirigir os atores, Gilroy está um passo à frente. Embora não se possa dizer que é frustrante/decepcionante o suspense que ele tenha criado dentro de uma redoma de relações elétricas e pulsantes, permanece a sensação de que esta poderia ter sido trabalhada de maneira mais densa e consistente.

Conduta de Risco (Michael Clayton)
dir. Tony Gilroy
★★★½

DANIEL & ANA (2009)


Neste filme, Michel Franco vai mais fundo ao limite do seu cinema de raízes hanekianas com uma história (real) extremamente provocadora e desconcertante, com momentos de tensão muito bem articulados e uma construção minuciosa de personagens, o foco é a relação de dois irmãos, Daniel e Ana Torres, antes e depois que eles são sequestrados e forçados a fazer sexo diante de uma câmera, vídeo esse que seria vendido através da indústria pornô. A cena em questão é desoladora, tão inquietante quanto claustrofóbica, e a observação da reação dos atores torna-se uma tarefa chocante, embriagada pela perversidade, é um momento seco e impactante, em que não sabemos muito bem o que esperar, embora tenhamos a consciência de que, de uma forma ou de outra, a vida desses dois irmãos sofrerá um forte abalo. Os laços afetivos são inexistentes, apenas restam olhares frios e embaraçosos daquilo que um dia foi uma relação entre irmão e irmã, expostos a um trauma maior. Franco filma tudo isso, o devaneio sexual, a distância, a falta de sentimentos com uma dimensão eloquente e assustadora. Os momentos finais são silenciosamente devastadores, vemos ruir aquela relação e o calmo desespero do irmão por um irmã agora vista com outros olhos, com um sentimento de confusão ou inexplicabilidade. A tonalidade áspera ajuda a compor um clima sinistro, bizarro, evocando o inesperado em uma trama ainda imprevisível.

Daniel & Ana
dir. Michel Franco
★★★

sábado, 22 de julho de 2017

TWIN PEAKS – OS ÚLTIMOS DIAS DE LAURA PALMER (1992)


Twin Peaks voltou com tudo em 2017, a tão esperada 3ª temporada, cogitada e tão sonhada através dos anos desde que a série original fora cancelada na década de 90 (e desde então passaram-se 25 anos – see you again in 25 years – desde que a segunda temporada foi dada como a última, e Lynch anunciou que a Showtime voltaria a produzir uma sequência da série, uma nova Twin Peaks, e sua terceira temporada). Foi uma notícia recebida com muito amor pelos carinhosos fãs de David Lynch, um dos mais importantes diretores da história do cinema e que também revolucionou a TV com sua criação (em parceria com Mark Frost, é claro) Twin Peaks, cujo sucesso foi tamanho que até levou Lynch a dirigir um filme sobre a personagem Laura Palmer pouco tempo depois que a série foi dada como terminada.

Trata-se de Os Últimos Dias de Laura Palmer, de co-produção francesa, que debutou em Cannes em 92 e recebeu elogios de sobra, embora tenha sido um fiasco comercial (o que chega a ser um pouco esquisito, dado que o seriado tinha atingido tanta fama e uma legião de fãs). É neste filme que conhecemos de perto a personagem Laura Palmer, o pivô das duas temporadas iniciais de Twin Peaks, a jovem assassinada que todos na pequena cidade tinham tanto carinho e amor por, de tal forma que a notícia de sua morte abalasse a todos, seus colegas de classe, familiares, moradores, conhecidos e etc. Mas a jovem, se era tida como um "exemplo", não era uma moça tão exemplar como tantos achavam que era. 

Afinal, foram os problemas com as drogas e a prostituição que levaram Laura Palmer ao caminho da perdição, da corrupção dos valores de sua juventude – mas acompanhamos também os problemas em família de Laura, o pai problemático, e um espírito – Bob – que a atormenta e transtorna e é a motivação de sua decadência moral e psicológica – assim como podemos ver também a relação de Laura com outros dois personagens da série, seus amantes da escola: James Hurley e Bobby Briggs, assim como seu envolvimento com os negócios ilegais dos irmãos Renault e também com Leo Johnson. 

Apesar da maioria do elenco estar presente no filme, até mesmo Kyle MacLachlan (embora apareça como personagem secundário), a única surpresa é a ausência de Lara Flynn Boyle, a Donna Hayward da série, aqui substituída por Moira Kelly (a atriz teria recusado fazer o filme por conta de sua agenda), que é, digamos, uma versão mais "inocente" de Hayward, no que diz respeito à aparência física e imatura da jovem atriz.

Sheryl Lee, que na série aparecia em poucos episódios, e na maioria das vezes em flashes (isso falando dela como Laura Palmer, e não como a Madeleine, sua prima distante) aqui tem uma ênfase bem maior – e a performance dela é devastadora, inigualável – tanto no desenvolvimento quanto na caracterização em si da persona pela qual ela ficou tão reconhecida na criação de Twin Peaks;

Lynch parece estar seguro de inserir certos enigmas e entregá-los ao espectador conferindo um astral surrealista que seria bastante esperado do diretor, e no que diz a isso, se Os Últimos Dias de Laura Palmer é um de seus trabalhos cinematográficos mais convincentes (no que diz respeito à forma como ele costura a narrativa) ele não tem medo de anular as convicções deste filme na intuição de desmoralizar uma atmosfera de tensão, de horror. 

É claro, o filme em muito depende da série original, principalmente nos personagens, mas Lynch dá um passo à frente quando se dedica a não apenas referenciar a sua criação televisiva e sim complementar a imaginação do espectador a respeito da personagem da qual a série gira em torno de, que é Laura Palmer. Além dessa questão da complementação, o filme traz uma compreensão maior acerca de certas relações entre os personagens (excepcionalmente entre Laura e seu pai, Leland).

Enfim, é como se fosse um spin-off da série e que, dessa dependência tão grande de signos e contatos diretos com o trabalho realizado nesta, o filme se sobressai em uma independência enorme de fatores e realiza desta conexão uma sutil metalinguagem. Lynch sempre foi genial em seu estilo tão único de fazer filmes, tão surreal, e desta vez, acreditem, ele não decepciona em nada. 

Twin Peaks – Os Últimos Dias de Laura Palmer (Twin Peaks: Fire Walk With Me)
dir. David Lynch
★★★★★

quinta-feira, 20 de julho de 2017

Twin Peaks – Segunda Temporada


Eis que ninguém esperava que a 2ª temporada de Twin Peaks fosse ser tão longa e a ansiedade em saber quem é o assassino de Laura Palmer cresce mais a cada episódio, com o mistério mantido desde a primeira temporada. Uma pena que a série foi cancelada pelos produtores da ABC, mesmo que tenha um final tão desconcertante e misterioso, um tanto obscuro, majestoso, que deixa a gente morrendo a descobrir seus porquês. Nesta temporada, vemos o desenrolar e um foco maior nas subtramas de Twin Peaks, dos triângulos amorosos, das relações entre os moradores e dos envolvidos no assassinato de Laura Palmer e os afetados e possíveis suspeitos. 

A revelação do assassino me deixou em dúvida, mas fez um completo sentido, até porque o modo como ele é revelado, à frente de tantos outros episódios, pode deixar muita gente em dúvida se foi ele mesmo que matou a Laura. No episódio final, mais revelações são feitas e mais questões são abertas (e, infelizmente, deixadas em branco). É a segunda temporada que afirma esse status de trabalho artístico de Twin Peaks, com grandes episódios muito bem dirigidos e alguns experimentos incríveis (em especial no último episódio, marcante em sua concepção). 

É nesta temporada que passamos a descobrir mais sobre Laura Palmer e os seus lados "bom" e "ruim", a jovem mocinha que todos da cidade tinham o maior carinho e mal sabiam que tinha um envolvimento sério com prostituição, drogas e crime. A questão da dualidade é trabalhada com afinco por toda essa temporada, e pode ser muito bem observada tanto nas relações dos moradores da cidadezinha (os triângulos amorosos de Ed e de James Hurley) e como estes acabam se refletindo e contextualizando caso postos frente a frente, como um espelho. 

É também nesta temporada que, em seu desfecho enigmático, propositalmente desarmador, que é possível observar mais de perto o detetive Cooper, em sua bondade e generosidade, sendo corrompido pela maldade, no último episódio, quando este entra em contato com o espírito de Bob, um personagem que também é observado com mais proximidade nesta temporada, e é nesta que passamos a saber quem ele é e qual papel desempenha na vida de personagens como Leland Palmer e, posteriormente, de sua filha, a assassinada Laura.

O bem e o mal. Os picos gêmeos. Lynch e Frost criaram uma das maiores (se não é a maior, creio) série da história da TV, alados de um time de diretores e roteiristas competentes. Enfim, nunca é demais elogiar Twin Peaks, e sim celebrá-la é um ato tentador a ser feito com palavras. Se a primeira temporada já tinha sido um estouro, a segunda foi ainda mais extasiante, embora eu ache que o seu único defeito seja mesmo a quantidade de episódios que matam a gente de ansiedade, mas no final, olhando para trás, a gente observa quantas coisas vimos no caminho e podemos aprender. 

Twin Peaks
2ª Temporada
★★★★★

NÃO ME FALE SOBRE RECOMEÇOS (2016)


A imagem e suas infinitas possibilidades. Cada frame é uma realidade. Cada palavra é o receptáculo de uma abstração. A desconstrução de uma linguagem – os sons, as cores e as formas que habitam nesta – e a renovação de tudo que a subverte como o impulso de uma comunicação inevitável de sensações resultantes do choque entre duas realidades ambivalentes, o sensível e o efêmero. Desse choque aflora, enfim, o cerne da emissão imagética, da ilusão e da realidade fundidas num corpo só, o milagre da produção audiovisual.

Onde morre uma imagem, nasce outra: um ciclo de recomeços (ou cinema, simplesmente cinema). Trata-se de um trabalho muito especialíssimo, uma experiência inusual e bastante tentadora, que nos convida a contemplar a imagem e suas admiráveis funções e contextualizações dentro da atmosfera cinematográfica,  a serviço de uma configuração quase irreal de realidades, de subtextos e experimentalismos. 

Não Me Fale Sobre Recomeços
dir. Arthur Tuoto
★★★★

quarta-feira, 19 de julho de 2017

Twin Peaks – Primeira Temporada


Uma pequena cidadezinha. O corpo de uma jovem adolescente enrolado em plástico à beira de um rio. Um detetive idiossincrático do FBI. Uma pergunta que não cala: "quem matou Laura Palmer?". Eis que surge aquela que é (justamente) considerada por muitos a maior série de TV dos anos 90 e a mais revolucionária produção da televisão americana: Twin Peaks. A televisão nunca mais foi a mesma depois que David Lynch e Mark Frost criaram esta maravilhosa série, que já em seus primeiros episódios é capaz de fazer o espectador vibrar, se emocionar e ao mesmo tempo questionar e também ser pego de surpresa (ou talvez não, para os admiradores do diretor) pelos elementos surrealistas inseridos na obra por Lynch. É um trabalho muito único tanto dentro da filmografia de David quanto na própria TV em si. Foi Lynch que deu traços de arte à TV americana tão fadigada e regurgitada de reinserir os mesmos padrões e as mesmas técnicas que não davam muita relevação para a sua arte. E o mais genial é que em Twin Peaks vemos o encontro magnífico (a ressaltação, a lembrança de que TV também é um conteúdo artístico) entre estes dois picos: a TV e a arte. 

A primeira temporada resume-se a 8 episódios especialíssimos que acompanham os acontecimentos seguintes à morte de uma jovem popular e conhecida por praticamente todos os habitantes de Twin Peaks chamada Laura Palmer, e a chegada de um simpático detetive do FBI encarregado de investigar o seu assassinato e encontrar o autor, Dale Cooper. Vemos estes dois personagens e o desenrolar das situações nesta estranha e aparentemente pacata região, como também acompanhamos os enlaces amorosos de outros personagens da trama e os triângulos que se instalam. 

Nem todos os episódios são dirigidos por David Lynch (e alguns nem são escritos por ele também) mas nota-se uma qualidade e um empenho extraordinários por parte do talentoso time de diretores e roteiristas por trás da produção da 1ª temporada além de Lynch e Frost. Interessante como alguns episódios flertam com o horror, e outros que são mais românticos e suaves, mas sempre sob um clima de tensão, e às vezes até cômico. 

O primeiro episódio é fascinante, comovente, acompanhar a dor e o sofrimento dos pais e daqueles próximos e conhecidos e Laura Palmer, como amigos e também de outras pessoas que conviviam com ela rotineiramente, é um clima misto de tragédia, tensão e tristeza que toma conta do episódio, deixando o espectador com um ar de melancolia. 

Entre os ótimos episódios desta bem-sucedida temporada, que conseguiu atrair uma legião de seguidores e admiradores e até mesmo pôde ser exibida com muito sucesso aqui no Brasil, na década de 90, na TV aberta (primeira vez na Globo, com uma exibição cheia de cortes e, enfim, depreciativa do material original, e posteriormente pela Record), acho que devo ressaltar alguns que me tocaram de maneira muito especial, que são, além do já mencionado episódio-piloto de 90 minutos: Zen, or the Skill to Catch a Killer, dirigido pelo próprio Lynch, e que temos a "aparição" de um dos grandes momentos surrealistas e pivôs desta temporada, Rest in Pain, o episódio em que acompanhamos o velório de Laura Palmer, e The Last Evening, o episódio maravilhoso que encerra esta temporada e abre um caminho para a segunda temporada ainda mais enigmática e repleta de suspense.

Muito interessante poder ser introduzido a uma lista tão rica de personagens e subtramas que dão vida a esta pacata cidadezinha de Twin Peaks chocada pelo assassinato brutal de uma jovem que todos tinham tanto respeito e admiração, mas que, a partir da segunda temporada, passa a ter um retrato ainda mais duvidoso quando estamos cientes de que a jovem não era completamente quem aparentava ser. O filme dela, que viria dois anos após, Fire Walk With Me, é ainda mais assustador nesta questão do retrato do lado obscuro da personagens e de sua personalidade perturbada. 

Twin Peaks
1ª Temporada
★★★★★

sábado, 15 de julho de 2017

Z: A CIDADE PERDIDA (2016)


James Gray voltou às tela, em plena forma. Se Z: A Cidade Perdida, o seu mais novo aguardadíssimo filme, não se trata de seu melhor trabalho, e fica bem longe de ser até comparável aos últimos filmes do diretor, uma safra de trabalhos especialíssimos, tais como Os Donos da Noite, Amantes e Era Uma Vez en Nova York, nos revelaram um dos mais prolíficos diretores do cinema americano contemporâneo. Mas a espera valeu a pena, mesmo depois de tantas expectativas frustradas em relação ao seu lançamento, se Z: A Cidade Perdida custou a chegar nos cinemas, pelo menos depois de vê-lo podemos ter a certeza de ter testemunhado um grande trabalho, mesmo que não esteja à altura do que Gray sabe fazer de melhor.

Estão presentes o classicismo, uma das características principais do estilo de Gray, o foco nas relações de pai e filho e nos círculos familiares, o que não está presente neste trabalho, e apenas, é Joaquin Phoenix, o ator que melhor se encaixa nos filmes do Gray e que fez trabalhos tão dignos nos três longas anteriores do cineasta, mas aqui está ausente. Temos em tela Charlie Hunnam, vivendo um explorador que enfrenta diversas dificuldades em sua jornada pela floresta amazônica à procura da "cidade perdida", "Z", que perdura toda uma vida, nessa busca incessante e incerta por uma civilização escondida no meio das matas profundas da Amazônia.

É um filme bastante interessante, consegue extrair momentos de grandeza dessa jornada de aventura e redescoberta entre dois mundos completamente distintos, duas civilizações, duas culturas. É justamente nessa questão da dualidade, de estar dividido entre esses dois mundos, o trabalho e a família, a Amazônia e a Inglaterra, que o protagonista é posto à prova por diversas vezes durante o filme, inclusive por sua esposa e seus filhos, que cobram presença paternal e na família inclusive.

O desfecho é um pouco intrigante, duro, talvez um pouco triste, melancólico, embora não intencionalmente. Gray e a arte de transformar imagens em monumentos, frames em quadros, a maneira meticulosa como ele filme cada movimento, cada gesto, cada jogada de seus personagens, é realmente a maior prova da força das imagens que compõem seu filme como um todo.

Assim como Era Uma Vez em Nova York remete a Coppola, Amantes remete a Allen e Os Donos da Noite remete a Scorsese, Z: A Cidade Perdida remete a David Lean. A estruturação épica de uma narrativa cinematográfica, a cultura desse subgênero captada em todos os seus máximos e mínimos luxos, remetem ao vigor do cinema de Lean, completando mais uma vez essa linda filmografia classicista de James Gray, que cada vez mais nos surpreende, cada vez mais trazendo cinema do bom e do melhor.

Z: A Cidade Perdida (The Lost City of Z)
dir. James Gray
★★★★

quinta-feira, 6 de julho de 2017

OLMO E A GAIVOTA (2014)


O mais interessante é que, apesar de ser um documentário, Olmo e a Gaivota tem um atmosfera de ficção bem onipresente, a ideia de ser um filme documental chega a ser um pouco distante, até. Às vezes a gente esquece que são pessoas reais e passamos a enxergá-los como atores imersos em personagens, dando a noção de uma lógica invertida do cinema-teatro, do body of work de um intérprete. Legal também essa questão do filme ser trabalhado quase todo dentro de um apartamento, ou em cenários internos, relevando esse aspecto teatral tão característico que o filme exala. É uma proposta tentadora, mas a câmera minimalista consegue extrair momentos de pura beleza.

Olmo e a Gaivota
dir. Petra Costa & Léa Glob
★★★

terça-feira, 4 de julho de 2017

melhores do 1º semestre (off-circuito)


Decidi organizar uma lista do "outro lado" dos filmes que ainda estão aguardando distribuição no circuito (e eu realmente espero que eles entrem ainda esse ano)... 

1. Certas Mulheres (Kelly Reichardt)
2. Nocturama (Bertrand Bonello)
3. Quase 18 (Kelly Fremon Craig)
4. Docinho da América (Andrea Arnold)
5. Loving (Jeff Nichols)
6. Graduação (Cristian Mungiu)
7. Três (Johnnie To)
8. O Dia Mais Feliz da Vida de Olli Maki (Juho Kuosmanen)
9. Wiener-Dog (Todd Solondz)
10. Krisha (Trey Edward Shults)

domingo, 2 de julho de 2017

O ORNITÓLOGO (2016)

DE CANÇÃO EM CANÇÃO (2017)


Uma experiência sensorial de Terrence Malick, que está aquém aos trabalhos anteriores do diretor mas que nem por isso fica atrás. Anula a narrativa convencional e afirma o senso experimental da imagem, de uma harmonia quase poética, que a câmera de Lubezki, divagando entre personagens traduzidas com a serenidade do sentimento e a adrenalina da emoção, deslocados, movidos por uma energia hermética, e paisagens deslumbrantes sejam elas urbanas ou naturais, capta com a alma, a contemplação e a euforia.

A incomensurável êxtase do ser livre nasce dessa aspiração humana pelo sentimento de liberdade que parte do amor, da verdade dos sentimentos, do extremo dos sentidos, do espírito que transborda em elevação. Cada olhar é um ato de força e sedução, cada toque é uma onda que percorre as ínfimas terminações nervosas em um gesto de arrebatamento, tão pequeno e tão grande ao mesmo tempo, tentando ultrapassar a barreira física, e atingir a alma.

De canção em canção, de acorde em acorde, Malick constrói o seu movimento de poesia e cinema, de rebeldia e de transformação, com uma classe experimental que parece estar muito à vontade com a descontração e espontaneidade das performances de um grupo de atores em ótima forma, cujas reproduções estão mais próximas de suas figuras humanas, e isso é muito bonito. Não seria exagero afirmar que a cada frame nasce um monumento.

Mais curioso ainda é ver como o diretor procura reinventar os próprios maneirismos que seu imaginário evoca, sem precisar de uma certa lógica pra funcionar, usufruindo de um material mais surreal, e dele acaba surgindo essa dinâmica metafísica que é muito fascinante.

Pra quem viu pelo menos os quatro filmes anteriores de ficção de Malick não há muita surpresa com a abordagem poética deste novo filme do cineasta, a impressão que fica é a de que justamente trata-se de uma experiência muito mais perceptual do que narrativa conceitualmente dita, entretanto é possível denotar a força imagética que a fotografia de Emmanuel Lubezki carrega, gerando uma coleção de pequenas obras de arte que emergem a cada sequência. É a catarse do cinema que se afirma como poesia e corpo condutor de um estímulo sobrenatural, irreal, que só a sétima arte poderia trazer à vida e refletir na transcendência da dimensão sensorial.

De Canção em Canção (Song to Song)
dir. Terrence Malick
★★★