(alerta de spoiler)
Demorou, mas Paul Verhoeven finalmente
voltou, dez anos após o espetacular A
Espiã, com um filme ainda mais extraordinário que pode ser considerado a
sua obra-prima máxima. Elle é um
filme simplesmente genial, em todos os sentidos. A atuação estrondosa de
Isabelle Huppert (uma das melhores, aliás, da carreira da lendária diva do
cinema francês) aliada à direção meteórica de Verhoeven fazem de Elle um filme poderoso, essencialmente
impactante e importante, quão perverso e intimista.
Elle começa com uma
sequência um tanto desconfortável e gritante. Assim que os créditos iniciais
terminam (acompanhados de uma melodia tão melancólica que chega a ser fúnebre),
é possível ouvir uma série de gritos e gemidos pavorosos e estremecedores.
Assim que essa inesperada e extenuante sinfonia de berros se finda, a figura de
Isabelle Huppert, que no filme interpreta a personagem Michele Lèblanc, aparece
estirada no chão, paralisada, acabou de ser estuprada por um sujeito de preto cujo
rosto é velado, que abandona o local rapidamente após seu ato infame.
As cenas a seguir demarcam uma atitude
conformista e meramente tolerável de Michele, que simplesmente reage de forma
indiferente ao brutal estupro que acabara de sofrer. Naquela mesma cena da
banheira, na qual ela encobre um rastro de sangue na espuma, fica bem clara
essa posição da personagem, que provoca intriga e mistério em quem assiste.
Elle manipula o espectador
até o último segundo. Estamos o tempo todo diante de uma situação repreensível
que toma um rumo completamente alternativo do que provavelmente seria esperado
para algo dessa magnitude. Elle se
dedica a investigar de maneira audaciosa e detalhista a personalidade de uma
personagem marcada pela crueldade, ambígua, cheia de mistérios e segredos, um enigma a se decifrar.
O filme entrega um retrato digno, honesto,
veemente dessa personagem apontando suas características mais sórdidas e
insensatas, mas ao mesmo tempo a humaniza, fazendo com que o espectador se
simpatize e sinta apreço por ela, compreenda a sua angústia, a culpa e a frieza. O riquíssimo estudo em torno de Michele Lèblanc é
minucioso e sagaz, nada óbvio, que vem para abalar as nossas certezas.
São expostas a força e a fragilidade da mulher, e o efeito paranoico do recente
evento “traumático” (ironicamente apontado pela própria personagem durante uma
cena em que masturba o marido da melhor amiga) que sofreu. Aliás, a
transparência, a indiferença diante de um ato tão repugnante e condenável diz
muito sobre o lado sociopata e dominador dessa personagem que esbanja poder,
charme e frieza.
Porém, o que realmente estremece a anti-heroína,
ainda que não fique tão claro, é a associação tenebrosa entre o estupro e seu
passado envolvendo uma tragédia cometida pelo seu pai, um terrível psicopata, acontecimento que é relembrado com amargura em vários momentos durante a trama.
Uma mulher, inclusive, chega a reconhecer Michele em um restaurante e a
humilha levando em consideração esse ponto (o país inteiro conhece Michele Lèblanc como "a filha do maníaco").
O fato da personagem ser a sócia de uma
empresa que produz videogames faz uma alusão à violência que cerca seu
mundo, sua força e autoridade (ela, que é a patroa de uma empresa com um grande número de funcionários homens e que produz produtos direcionados ao público masculino) e a neutralidade da personagem justamente em relação à essa violência
tão próxima dela e que acaba sendo retratado como o fator-chave de sua sociopatia, mas que, de certa maneira, não parece afetá-la diretamente.
A impiedade também se revela constantemente
presente no terreno das relações familiares. Na maioria das cenas em que a mãe
está ao seu lado, Michele a trata com arrogância e sarcasmo, e chega a debochar
dela durante uma festa de Natal quando a mesma revela que vai se casar com um
cara que não tem a metade da idade dela (amante da senhora), algo que a filha
rejeita severa e escancaradamente. Essa cena do jantar, inclusive, é uma das
pouquíssimas cenas engraçadas do filme. Quando ela morre, Michele não acredita
e pede para que os médicos vejam se ela não está se fingindo.
Assim que o espectador finalmente desvenda o
mistério de quem é o estuprador (uma sacada genial), algo que iminentemente provoca surpresa e ao
mesmo tempo excitação não só no público mas também em Michele. O desfecho
abraça uma reviravolta eletrizante e arrasadora, quão astuta.
Inevitavelmente, Michele se torna naquele mesmo monstro que sempre amaldiçoou em seu pai, pelos traumas do passado, pelas
feridas psicológicas, pela humilhação e pela culpa. A personagem chega a um
ponto tão desesperador e agoniante que se torna a vítima de sua própria
sociopatia, assim como todos ao seu redor. Não à toa, há uma impressão
constante ao longo do filme de que Michele é quem atrai as tragédias que vão se
concretizando após o estupro em seu círculo social.
O estuprador vira a presa de Michele (metáfora feminista?). Um jogo
de gato e rato, manipulação com consequências trágicas cruéis e explosivas. Se
por um lado temos uma sociopata abalada psicologicamente e pressionada pelo
passado instigante, do outro a representação da mulher moderna, que cada vez
mais vem ganhando espaço, força, poder e igualdade na sociedade atual, mas que
ainda tem de enfrentar um inimigo maior: a violência.
O foco do filme também se aproxima de um
contexto potencialmente crítico e mais crível, de que a mulher dos tempos
modernos (no filme, Michele) reage à violência de forma indiferente, devido à
falta de segurança, proteção e atitude por parte das autoridades (dando a entender que toda essa violência se tornou uma coisa tão comum e frequente que as mulheres começaram a ignorar o peso desse trauma, entendem?), e do universo
gráfico agressivo e machista dos videogames que tanto influenciam os jovens dos
dias de hoje a desrespeitar a figura feminina e a corromper a sua liberdade
sexual.
Seja como metáfora, ou crítica, ou ainda sim
como um estudo de personagem excepcionalmente bem-feito, Elle é um filme que merece ser ressaltado. Isabelle Huppert está em
uma de suas melhores performances. A lenda máxima do cinema francês
apresenta-se em plena forma aos 63 anos, esbanjando coragem, dedicação e força
ao se entregar plenamente a uma personagem complicada de se atuar e repleta de
detalhes, que acaba por ser um dos maiores desempenhos dessa estrela
talentosíssima e que nunca se cansa de brilhar e se renovar a cada atuação,
sempre magistral e elegantíssima.
A indicação ao Oscar já vem tarde. Vai ser
uma baita mancada se não indicarem a maior e mais talentosa atriz do cinema
francês (e possivelmente mundial) ao então dito reconhecimento máximo do cinema,
ainda mais quando ela está numa performance tão celebrável e inesquecível como
essa. Que ela merece isso nós sabemos há muito, muito tempo. E a querida
Huppert nunca esteve tão próxima da estatueta antes. É a grande chance dela. Sem falar que o filme foi selecionado pela França para concorrer a uma vaga em Melhor Filme Estrangeiro. Será que dessa vez o Verhoeven, que já dirigiu tantos sucessos nos EUA (de Instinto Selvagem a RoboCop) vai conseguir a sua primeira indicação esse ano, junto com a Isabelle? Que sonho!
A fotografia de Stéphane Fontaine, que
consegue tonalizar com perfeição a atmosfera obscura de suspense e tensão, é um
mérito a ser frisado. A extasiante e palpitante trilha sonora de Anne Dudley
cai como uma luva. Elle é adaptado do
livro Oh..., de Phillipe Djian. O roteirista
do filme é David Birke.
Enfim, Elle
é tudo isso e mais. Um filme brilhante, uma obra-prima difícil de esquecer,
um retrato perturbador de uma mulher afetada pela violência, pelo trauma e pelo
horror. Uma crítica feroz à ciranda de relações familiares e às convenções da
sociedade moderna. Tudo isso em 2 horas. Só uma dupla como Paul Verhoeven e
Isabelle Huppert para conseguir um feito tão extraordinário como esse. O
resultado é um filmão primoroso, que conquista tanto pelo aspecto inconvencional,
desafiador e provocador de sua proposta vibrante quanto pelo caráter
metafórico e crítico de sua trama inteligentíssima. O melhor
thriller do ano! É um filme obrigatório. Assistam!
Elle estreia mês que vem aqui no Brasil, dia 17 de novembro, além de ser uma das atrações da 40ª Mostra Internacional de Cinema de SP, que começa daqui a 9 dias. Mas, pra quem não consegue segurar a ansiedade (assim como eu) o filme já saiu na internet, em uma cópia de qualidade bastante satisfatória.
Elle
dir. Paul Verhoeven - ★★★★★