segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Crítica: "ELLE" (2016) - ★★★★★


(alerta de spoiler)

Demorou, mas Paul Verhoeven finalmente voltou, dez anos após o espetacular A Espiã, com um filme ainda mais extraordinário que pode ser considerado a sua obra-prima máxima. Elle é um filme simplesmente genial, em todos os sentidos. A atuação estrondosa de Isabelle Huppert (uma das melhores, aliás, da carreira da lendária diva do cinema francês) aliada à direção meteórica de Verhoeven fazem de Elle um filme poderoso, essencialmente chocante e importante.

Elle começa com uma sequência um tanto desconfortável e gritante. Assim que os créditos iniciais terminam (acompanhados de uma melodia tão melancólica que chega a ser fúnebre), é possível ouvir uma série de gritos e gemidos pavorosos e estremecedores. Assim que essa inesperada e extenuante sinfonia de berros se finda, a figura de Isabelle Huppert, que no filme interpreta a personagem Michele Lèblanc, aparece estirada no chão, paralisada, acabou de ser estuprada por um sujeito de preto cujo rosto é velado, que abandona o local rapidamente após seu ato infame.

As cenas a seguir demarcam uma atitude conformista e meramente tolerável de Michele, que simplesmente reage de forma indiferente ao brutal estupro que acabara de sofrer. Naquela mesma cena da banheira, na qual ela encobre um rastro de sangue na espuma, fica bem clara essa posição da personagem, que provoca intriga e mistério em quem assiste.

Elle manipula o espectador até o último segundo. Estamos o tempo todo diante de uma situação repreensível que toma um rumo completamente alternativo do que provavelmente seria esperado para algo dessa magnitude. Elle se dedica a investigar de maneira audaciosa e detalhista a personalidade de uma personagem marcada pela crueldade.

O filme entrega um retrato digno, honesto, veemente dessa personagem apontando suas características mais sórdidas e insensatas, mas ao mesmo tempo a humaniza, fazendo com que o espectador se simpatize e sinta apreço por ela, compreenda a sua angústia, a culpa e a frieza. O riquíssimo estudo em torno de Michele Lèblanc é minucioso e sagaz, nada óbvio, que vem para abalar as nossas certezas.

São expostas a força e a fragilidade da mulher, e o efeito paranoico do recente evento “traumático” (ironicamente apontado pela própria personagem durante uma cena em que masturba o marido da melhor amiga) que sofreu. Aliás, a transparência, a indiferença diante de um ato tão repugnante e condenável diz muito sobre o lado sociopata e dominador dessa personagem que esbanja poder, charme e frieza.

Porém, o que realmente estremece a anti-heroína, ainda que não fique tão claro, é a associação tenebrosa entre o estupro e seu passado envolvendo uma tragédia cometida pelo seu pai, um terrível psicopata, acontecimento que é relembrado com amargura em vários momentos durante a trama. Uma mulher, inclusive, chega a reconhecer Michele em um restaurante e a humilha levando em consideração esse ponto (o país inteiro conhece Michele Lèblanc como "a filha do maníaco"). 

O fato da personagem ser a sócia de uma empresa que produz videogames faz alusão à violência que cerca seu mundo, seu caráter forte e autoritário (levando em conta que ela é uma mulher que comanda uma empresa cuja fabrica produtos predominantemente masculinos e que possui um grande número de funcionários homens), e a neutralidade da personagem justamente em relação à essa violência tão próxima dela e que acaba sendo retratado como o fator-chave de sua sociopatia.

A impiedade também se revela constantemente presente no terreno das relações familiares. Na maioria das cenas em que a mãe está ao seu lado, Michele a trata com arrogância e sarcasmo, e chega a debochar dela durante uma festa de Natal quando a mesma revela que vai se casar com um cara que não tem a metade da idade dela (amante da senhora), algo que a filha rejeita severa e escancaradamente. Essa cena do jantar, inclusive, é uma das pouquíssimas cenas engraçadas do filme. Quando ela morre, Michele não acredita e pede para que os médicos vejam se ela não está se fingindo.  

Assim que o espectador finalmente desvenda o mistério de quem é o estuprador, algo que iminentemente provoca surpresa e ao mesmo tempo excitação não só no público mas também em Michele. O desfecho abraça uma reviravolta eletrizante e arrasadora, quão astuta.

Inevitavelmente, Michele se torna naquele mesmo monstro que sempre amaldiçoou em seu pai, pelos traumas do passado, pelas feridas psicológicas, pela humilhação e pela culpa. A personagem chega a um ponto tão desesperador e agoniante que se torna a vítima de sua própria sociopatia, assim como todos ao seu redor. Não à toa, há uma impressão constante ao longo do filme de que Michele é quem atrai as tragédias que vão se concretizando após o estupro em seu círculo social.

O estuprador vira a presa de Michele. Um jogo de gato e rato, manipulação com consequências trágicas cruéis e explosivas. Se por um lado temos uma sociopata abalada psicologicamente e pressionada pelo passado instigante, do outro a representação da mulher moderna, que cada vez mais vem ganhando espaço, força, poder e igualdade na sociedade atual, mas que ainda tem de enfrentar um inimigo maior: a violência.

O foco do filme também se aproxima de um contexto potencialmente crítico e mais crível, de que a mulher dos tempos modernos (no filme, Michele) reage à violência de forma indiferente, devido à falta de segurança, proteção e atitude por parte das autoridades, e do universo gráfico agressivo e machista dos videogames que tanto influenciam os jovens dos dias de hoje a desrespeitar a figura feminina e a corromper a sua liberdade sexual.

Seja como metáfora, ou crítica, ou ainda sim como um estudo de personagem excepcionalmente bem-feito, Elle é um filme que merece ser ressaltado. Isabelle Huppert está em uma de suas melhores performances. A lenda máxima do cinema francês apresenta-se em plena forma aos 63 anos, esbanjando coragem, dedicação e força ao se entregar plenamente a uma personagem complicada de se atuar e repleta de detalhes, que acaba por ser um dos maiores desempenhos dessa estrela talentosíssima e que nunca se cansa de brilhar e se renovar a cada atuação, sempre magistral e elegantíssima.

A indicação ao Oscar já vem tarde. Vai ser uma baita mancada se não indicarem a maior e mais talentosa atriz do cinema francês (e possivelmente mundial) ao então dito reconhecimento máximo do cinema, ainda mais quando ela está numa performance tão celebrável e inesquecível como essa. Que ela merece isso nós sabemos há muito, muito tempo. E a querida Huppert nunca esteve tão próxima da estatueta antes. É a grande chance dela.

A fotografia de Stéphane Fontaine, que consegue tonalizar com perfeição a atmosfera obscura de suspense e tensão, é um mérito a ser frisado. A extasiante e palpitante trilha sonora de Anne Dudley cai como uma luva. Elle é adaptado do livro Oh..., de Phillipe Djian. O roteirista do filme é David Birke.

Enfim, Elle é tudo isso e mais. Um filme brilhante, uma obra-prima difícil de esquecer, um retrato perturbador de uma mulher afetada pela violência, pelo trauma e pelo horror. Uma crítica feroz à ciranda de relações familiares e às convenções da sociedade moderna. Tudo isso em 2 horas. Só uma dupla como Paul Verhoeven e Isabelle Huppert para conseguir um feito tão extraordinário como esse. O resultado é um filmão primoroso, que conquista tanto pelo aspecto inconvencional, desafiador e provocador de sua proposta vibrante quanto pelo caráter metafórico, crítico e psicológico de sua trama inteligentíssima. O melhor thriller do ano! 

Elle
dir. Paul Verhoeven - 

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