domingo, 7 de fevereiro de 2016

Crítica: "CAVALEIRO DE COPAS" (2015) - ★★★★


Que diretor enigmático e genial é Terrence Malick. Sui generis. O cara é simplesmente um dos melhores, sem brincadeira. É cada filme bom que ele faz, com pegada de cinema da melhor qualidade. Como eu já conheço há tempos o estilo de Malick, nem me estranhei tanto com seu mais novo filme, Cavaleiro de Copas. Quero dizer, isso não ajuda, muito obviamente, a compreender o filme, que de complicado tem até o talo, mas é aconselhável a quem não conhece o cineasta e quer ver Cavaleiro de Copas ir atrás dele, sua história, seu estilo, bem como filmografia (aconselho ver Amor Pleno antes, que é bastante semelhante com esse). Malick novamente usa o cinema para converter o incompreensível em tateável, numa fábula moderna inventiva e sagaz.

Em Cavaleiro de Copas, Terrence brinca com os elementos em tela e desafia o espectador em uma aventura visual desnorteante, que transcende tempo e concreto. No filme, um roteirista de cinema bem-sucedido (Christian Bale) mora em Los Angeles e gasta a maior parte do seu tempo em festas e baladas, levando uma vida regada a luxúria e prazer, sem ter de se preocupar com nada. E, mesmo com toda essa maré de sorte, ele ainda não consegue se conectar a esse mundo. O personagem está perdido, não consegue se encontrar. É um sentimento de frustração que ele não consegue explicar. Misto a isso, duas figuras importantes do seu passado ressurgem, a devota ex-mulher (Cate Blanchett) e a amante casada (Natalie Portman). 

Se os dois trabalhos anteriores de Malick a este, A Árvore da Vida e Amor Pleno, envolviam temáticas como fé e religião, este novo, apesar de não englobar tão explicitadamente o tema quanto os antecessores, envolve uma filosofia muito interessante que se assemelha à abordagem Malickiana acerca as profundezas da fé tanto bem exploradas nos dois anteriores. É algo até mesmo metafísico, pra ser mais específico. Cada capítulo do filme (segmentos que circulam em torno da vida do protagonista) são apelidados com nomes de cartas de tarô (daí o nome do filme Cavaleiro de Copas), por exemplo: "Morte", "Sacerdotisa"...

Esses pequenos detalhes fazem parte do conjunto metafórico do filme. E, claro, nada vai se descobrir num piscar de olhos. Nada se absorve do nada. O filme é consciente, reage aos impulsos da trama, mas prossegue numa vibração desconfortável e ao mesmo tempo cativante. A relação de Cavaleiro de Copas com os dois filmes que vieram antes dele é justamente indireta. Estaria Malick desenhando aqui um retrato de um mundo sem a fé, um mundo onde nada parece fazer sentido e nada parece ter uma direção correta, tudo às avulsas? Ou então seria essa metaforização do mundo sem a fé uma outra metaforização? Sobre a indiferença humana? Sobre o fim? Sobre o mundo sem ilusão? Sobre o vazio? A fé, aqui, então, estaria representando a busca do homem por algo que lhe justifique a existência/algo que lhe dê razão para continuar vivendo? Ao ver a crença desmaterializada, o homem logo percebe a farsa e tudo se perde. A razão se perde. O limite se perde. Seria esta a "lição" de Terrence Malick?

Bem, o certo é que ele deixou uma baita lição pra casa, não? Cavaleiro de Copas talvez cresça no meu pensamento com o tempo. Ou quem sabe uma revisão não fará bem? Em casos desse patamar, é bem conveniente. O legal é ir imaginando sobre as mil e uma possibilidades de Cavaleiro de Copas, sobre as suas mensagens desencadeando em outras mensagens, e mais outras mensagens. É uma fantasia bastante divertida. E, se formos ver de perto, não é descartável essa noção. O filme é realmente merecedor de revisão. Ou melhor, revisões. Cavaleiro de Copas foi feito para fazer o público pensar. É também sobre a identidade, sobre o ser em reflexão, sobre a culpa, sobre o medo.

O vazio por Malick não poderia ser mais atordoante. O personagem de Bale, quase que apático, por conta da sensação de tédio e de confusão quase que constantes pelas duas horas de filme, transmite o peso do vazio para o espectador. E eu consigo sentir que é dilacerante, que é instável. Posso não sacar de primeira, mas sinto. Isso é muito bacana. Tomem como nota a incompleta narrativa de Cavaleiro de Copas, e como isso espelha o espírito inquieto e vazio do personagem. Na fotografia de Lubezki, por exemplo, predomina o azul, o cinza, o branco, cores pálidas e sem vida. Muitas cenas se passam no deserto. Há vários shots da praia, do sol, do céu (vazio).

E, já que entramos no assunto, bora falar da fotografia do Emmanuel Lubezki. O cara acabou de ser indicado ao Oscar por O Regresso e na minha opinião já merece mais uma indicação por Cavaleiro de Copas (o filme vai ser lançado nos E.U.A. só esse ano, então tecnicamente há chances para Lubezki em Fotografia no Oscar 2017). Que beleza é essa? Como alguém pode ser tão visionário a ponto de conseguir captar tantas coisas num único frame, tanta vida, tanta emoção? É muito lindo mesmo. E eu creio que Cavaleiro de Copas é principalmente bem-vindo e excelente por conta dessa comissão visual inacreditavelmente surreal e interminavelmente bela. Malick e Lubezki são uma dupla show, arrasando corações desde 2005 (O Novo Mundo). Mas, sinceramente, é muito bonito mesmo. E mais ainda. E muito mais. São vários e vários wallpapers em uma única cena. Cavaleiro de Copas é asseguradamente um balé visual encantador e cintilante. Cada paisagem mais triunfal do que a outra.

Elenco fenomenal também, hein? Tá bem que o elenco só aparece quase que metade do filme (os outros 50% por cento é a fotografia do Lubezki se mostrando), e que nessa metade é o Christian Bale que domina, mas vale mencionar as participações rápidas da Cate Blanchett, da Natalie Portman, da Imogen Poots, do Antonio Banderas e da Freida Pinto (até o Ben Kingsley deu as caras, quer dizer: apareceu como narrador).

Muitos estariam sugerindo que Cavaleiro de Copas seria uma continuação de A Árvore da Vida. E essa teoria é até crível, viu? As duas tramas se encaixam perfeitamente, ainda mais no núcleo da família do roteirista, que inclui o pai e um irmão (um outro irmão faleceu devido a circunstâncias desconhecidas). Mas, quem sabe não sejam estas apenas "meras coincidências". Estou começando a crer que é uma trilogia. Também não dá pra negar certas semelhanças com o clássico Felliniano A Doce Vida.

Enfim, pra quem admira o Terrence Malick e procura por um filme mais profundo, mais "pensante", Cavaleiro de Copas é o lugar certo. Recomendável. O visual densamente rico preenche o longa com sensibilidade e emoção. O vazio existencial, a relação pai e filho, a ótica Malickiana por sobre o choque entre as relações humanas, a fotografia hipnotizante do Lubezki (já falei?), a intensidade dramática, o caminhar singelo e alternativo. Quer mais motivos? Cavaleiro de Copas é um evento experimental imperdível. É tudo ou nada, e vice-versa. E belíssimo, e emocionante, e primoroso. E muito mais. Malick exercitando seu cinema poderoso com maestria é impagável.

Cavaleiro de Copas (Knight of Cups)
dir. Terrence Malick - 

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