Confesso: até agora, nunca me surpreendi tanto com uma adaptação cinematográfica (desde Onde os Fracos Não Tem Vez e Dúvida, apenas para citar exemplos), principalmente quando essa adaptação vem da premiada peça Deus da Carnificina, da dramaturga francesa Yasmina Reza. E apenas a visão incondicional de Roman Polanski poderia adaptar a peça para uma versão cinematográfica, que é exclusivamente fantástica. Deus da Carnificina trata-se de uma eficiente, cômica, feroz e meticulosa narrativa sensata e cheia de pontos altos.
Não trata-se apenas de 79 minutos. Trata-se de uma comédia dramática recheada com os detalhes do cotidiano fatídico e às vezes, inusual e divertido. Talvez, essas características dão a Deus da Carnificina um gostinho teatral, que o faz mais aproximado da fidelidade ao original, mas isso não significa que o filme não deixe de ser uma experiência consagrada quanto a sua estrutura cinematográfica e sua transformação em um conteúdo filmado. Dois casais firmam uma reunião para conversar sobre o recente episódio violento do qual seus dois filhos protagonizaram. Após uma briga na escola, em que um dos filhos foi espancado pelo outro, esses dois casais se unem para falar sobre o acontecimento, e o que acontece vai bem além do planejado. Com um elenco pequeno, mas intenso, contamos com as performances das protagonistas femininas: Kate Winslet e Jodie Foster, ambas mulheres que apenas querem se concentrar nos objetivos e encerrar da melhor maneira a situação da qual atravessam; e do outro lado, os protagonistas masculinos: Christoph Waltz e John C. Reilly, dois homens enfocados no trabalho, despreocupados, irônicos e prepotentes que se julgam mais hábeis em condenar posturas do que as esposas (fetiche machista proposital do enredo). A principal semelhança entre estes dois casais é a presença inevitável da crise, aqui retratada com sensibilidade por Polanski.
A cada cena, os casais vão se isolando um dos outros, gerando problemas em cima do atual problema. É como se surgissem novas barreiras dentro das já existentes, e isso gerasse uma enorme confusão, mas uma confusão que, embora brusca, faz o público rir e hilariar-se. Porém, há ainda algo mais subversivo, antecipado, ambicioso da parte de Roman. A adaptação deste premiado ícone da dramaturgia também exibido no Brasil (com Julia Lemmertz, Paulo Betti e Deborah Evelyn, cuja eu aplaudi incansavelmente) não poderia apenas se suceder entre cenas desanimadas de diálogo, que não cabe bem nesse ponto onde a trama avança. E é nessa exata parte onde o conflito se desenvolve. O filme exige mais do diálogo, algo que é usualmente visto, mas sem sucesso em filmes que fracamente tentam elaborar engenhosas situações utilizando-se de falas, muitas vezes sem mesmo usufruir do não-verbal. Aqui, Polanski faz diferente, e de uma forma absolutamente nova e profunda. Kate e Jodie, Christoph e John. Os quatro, no set de filmagens, com os textos decorados, atuam as cenas cordialmente projetadas desta película, todos tão bem enfocados que é quase como - mesmo - ver uma peça, como dito, o que torna Deus da Carnificina uma experiência sobrenatural. De fato, é um filme sentimental, e que ainda busca analisar a expressividade do ser (absolutamente genial) com tamanha proficiência que é indiscutível aqui criticar. Há um humor negro na sucessão e na ordem dos acontecimentos, e isso é o que torna o filme interessante. Cenas que constroem um impacto bem diferente de outras comédias.
E por isso, a magnum opus de Yasmina Reza não poderia ser melhor, na adaptação por um gênio tão qualificado quanto a ela. A desconstrução dos personagens é extrema, e ao mesmo tempo, virtuosa de se ver. É algo raro, mas ao mesmo tempo, soa o mais possível parecido com uma possível realidade. É assim que Polanski, mais uma vez, assina uma obra-prima autêntica, maravilhosa, dedicada, potente, impecável, e é claro, com o rótulo da percepção aguçada, já vista em O Pianista, Chinatown, dentre outros mais, e que agora é demonstrada a todo vapor neste brilhante presente do cinema contemporâneo. Um retrato mais que realista do comportamento humano ao lado da sociedade abusiva e eloquente, que anseia por um sentimentalismo, que só é visto aos olhos da beleza e do concreto: (concluindo) um retrato extremamente belíssimo do conflito humano. Só que aqui, o que poderia soar de repente demais filosófico ou inteiramente sério, torna-se pura comédia, o que o faz tão genial. Sublime obra de arte!
Deus da Carnificina (Carnage)
dir. Roman Polanski - ★★★★★
Deus da Carnificina (Carnage)
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