quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

O RAIO VERDE (1986)


Meu ano cinéfilo começou com esta obra brilhante do francês Éric Rohmer, O Raio Verde. Clássico esquecido, o longa é um dos mais pungentes e deliciosamente verborrágicos que o mestre francês já concebeu. Trata-se do quinto filme da série "Comédias e Provérbios", antecedido por (em ordem cronológica) A Mulher do Aviador, Um Casamento Perfeito, Pauline na Praia Noites de Lua Cheia e sucedido por O Amigo da Minha AmigaO Raio Verde trata de maneira delicada e agridoce a história de uma mulher tentando engatar uma relação amorosa na badalada temporada de férias.

Interpretada por Marie Rivière (em uma atuação incrível, e que também assume o roteiro ao lado de Éric), a personagem Delphine confronta a fragilidade de suas emoções e expectativas ao embarcar em uma típica jornada de férias (um ritual dos franceses, que sempre buscam se refugiar em regiões litorâneas e paisagens distantes dos grandes centros) ao lado de amigos enquanto busca um novo amor, ainda que ela repetidamente fuja desses cenários quando se encontra muito triste, e "impossibilitada" de desfrutar das férias e do verão com a disposição "requerida" para essa época.

Insatisfeita e com tendência depressiva, Delphine não consegue ficar por muito tempo na praia, cercada de pessoas amorosamente afloradas e que estão sempre falando de amor. Neste contexto romântico, ela dá uma fugidinha para Paris, onde sofre com suas amarguras e desilusões. Supersticiosa do jeito que é, ela sempre fica encucada ao se deparar com cartas de baralho jogadas na rua, que para ela sempre estão ali por algum motivo. Interessante é que as cenas em que ela encontra esses objetos na rua – duas cenas curtinhas, eu creio – são bastante enigmáticas, embebidas de um certo suspense, que corta um pouco o clima de leveza que o longa naturalmente carrega, com uma musiquinha de fundo bastante mística, que dá a entender a intenção de causar um certo estranhamento.

Delphine exala timidez e introspecção, chegando a dar até a impressão de que é um pouco contida, ainda que apareça vez ou outra chorando, liberando suas emoções, alegando um desprezo nítido quanto à sua vida amorosa. Confinada à solidão, ela faz de tudo para livrar-se da mesma, mas sempre acaba se refugiando nesta quando a desilusão se aproxima. Por vezes decidida, e em outras confusa sobre si mesma, Delphine é um reflexo sagaz da irradia mesmerização e da baixa estima como um efeito colateral da falha pela busca amorosa e a insatisfação, talvez até crônica, em relação ao destino sentimental.

A nossa personagem luta para fugir das desilusões amorosas e, busca nesses sinais, nessas superstições, um sinal para ter esperança, para crer em um novo capítulo de sua vida amorosa e seguir com suas catividades. O raio verde do título, aliás, diz respeito a um raro fenômeno da natureza, em que, durante o fim do pôr-do-sol, a última luz refletida pela atmosfera é a cor verde, gerando um pequeno raio no horizonte, que dura milésimos de segundos. Referenciando um livro de Julio Verne, há uma crença popular na França que diz que a pessoa que testemunhar esse evento será capaz de ler os sentimentos alheios. É dito que Rohmer custou a tentar captar esse fenômeno através de suas lentes para compor uma cena do filme, entretanto sua missão findou-se sem sucesso. O jeito foi elaborar o fenômeno em laboratório. A cor verde, que está presente de forma bastante discreta em quase todas as cenas deste filme, seja no figurino dos atores ou no espaço em que as sequências se passam, representa a exaltação das expectativas em meio à conturbação amorosa. 8

Verborrágico, sutil e suave (como todo bom filme de Éric Rohmer), O Raio Verde é mais uma brilhante e perspicaz observação do diretor sobre o exasperado astral das relações humanas e da maneira que lidamos com as desilusões e fracassos em relação à interação romântica. Muito bom de verdade, recheado de momentos intrigantes e diálogos pontuais. Rohmer firma-se com mais uma crônica excepcional muito bem desenvolvida e que prova que ele é um mestre da narrativa. O controle diante da mise-en-scène sensivelmente magistral que ele assume é de deixar qualquer um boquiaberto. Um exemplar de qualidade da filmografia deste cineasta genial, merecidamente vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza em 1986.

O Raio Verde (Le Rayon Vert)
dir. Éric Rohmer
★★★★★

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