sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Crítica: "DO QUE VEM ANTES" (2014) - ★★★★★


A memória de um cataclismo

Aos poucos, os filmes de Lav Diaz vão chegando ao circuito, de forma lenta e remota, e nesse mesmo ritmo o público brasileiro tem acesso à filmografia do cultuado diretor filipino que a cada filme se supera. Ano passado, quem assistiu Norte, o fim da História, cujo lançamento atrasado permitiu aos espectadores uma introdução desafiadora e essencialmente necessária ao estilo de Diaz, já pôde reconhecer desde então um traço determinante do cinema de Diaz que é tido como sua marca registrada: a duração. Nove, oito, seis, quatro horas... Seus filmes são extensivamente duradouros e requerem um certo tipo de disposição, digamos, por parte do espectador. No caso de Do Que Vem Antes, a sessão dura cinco horas e quarenta minutos.

À medida em que sua filmografia é explorada, passam a ser reconhecidos aspectos mais desenvolvidos e pungentes de seu estilo magistral, que vão desde a desconcertante maturidade dramática até a belíssima composição de planos demorados e caprichosamente marcantes, cobertos pela brilhante e complexa dimensão narrativa que o diretor ostenta, e que transforam o ato de assistir em uma experiência dilacerante, transcendente e única. 

Seu (nem tão) novo trabalho Do Que Vem Antes chegou ao circuito atrasado, em fevereiro, como aconteceu com Norte..., que demorou dois anos para ganhar uma estreia por estas bandas. Entretanto, é bastante compreensível que os filmes do filipino tardam a chegar nos cinemas. São poucos os que se dispõem a distribuir um longa seu correndo o risco de fracasso comercial, sem falar em outros problemas que acabam por acarretar nessa lenta distribuição e comprometem a chegada do filme ao público cinéfilo, e quase que logicamente sempre fica limitada ao circuito de arte quando concretizada. É uma pena, porque esses filmes foram feitos para serem vistos na telona. Visto que são pouquíssimos seus filmes disponibilizados na internet, alguns caso não forem conferidos no cinema, talvez nunca cheguem aos olhos de um cinéfilo que não possui acesso ao circuito mais afastado e restrito. 

Nas primeiras horas de Do Que Vem Antes, somos introduzidos aos personagens, moradores de um vilarejo quase isolado numa região litorânea em Filipinas. A história se passa no começo da década de 70, quando o país estava sob o rígido comando do ditador Ferdinand Marcos. Neste pacato local, coisas estranhas começam a acontecer. Vacas são misteriosamente assassinadas, as pessoas começam a ficar assustadas com acontecimentos tenebrosos envolvendo os habitantes da vila e um clima de terror é instalado, provocando tensão e medo em todos. 

Entre um plano e outro, Diaz costura vagarosamente sua genial trama, que aos poucos vai se enchendo de detalhes e elementos, enquanto os personagens ganham foco e firmeza. Cenas de um cotidiano aparentemente vazio se misturam a sequências desesperadoras, de uma força estremecedora, e que estão ali tanto para nos impactar quanto para causar um certo estranhamento àquele ambiente que transparece tranquilidade, mas na realidade é o palco de bizarrices e tormentos desta crônica hostil.

O suspense meteórico fica evidente nos atos dos personagens, suas ações e reações, verdades e mentiras, segredos que ficam cravados no tempo e no horror. Apesar das demoradas sequências que preenchem este monumento cinematográfico magistral, Diaz segue um padrão narrativo clássico. A trama é enriquecida pela excelência do roteiro, a ótima construção e análise dos personagens e do espaço onde a história se passa, bem como os acontecimentos que rondam o vilarejo e os mais exuberantes truques da linguagem cinematográfica, desfrutados com astúcia e esmero. O domínio de Lav Diaz sobre a história que ele conta é estremecedor e plausível.

O elenco está formidável, simplesmente maravilhoso. Diaz, que também é ator, prova, mais uma vez, que sabe dirigir atores como ninguém, e este é um mérito maior de seu cinema repleto de riquezas. Dentre as performances de destaque, merecem menção: Mailes Kanapi, que já havia dado um show em Norte, o fim da História; Karenina Haniel (provavelmente a melhor do elenco) que interpreta uma jovem com problemas mentais que tem o poder de curar os doentes da vila, e Hazel Orencio, que interpreta a irmã desta jovem que se esforça para cuidar dela. 

Mais uma vez, o genial Lav Diaz prova que sabe fazer cinema como ninguém. O cara foi feito para contar suas histórias e é um mestre nessa arte. As metáforas, as cenas inesquecíveis, os traços mais peculiares e minuciosos deste conto sobre uma sociedade atormentada pelo terror de uma cruel ditadura não apenas política, mas também moral e étnica, e os efeitos mais escabrosos da alienação. Lav se confirma como o cineasta filipino mais importante da atualidade, cujo cinema merece ser revisitado e apreciado em grande escala. E este filme, provavelmente seu melhor, uma obra-prima de puro êxito cinematográfico, uma meditação sobre o sofrimento, os valores humanos e a existência, é um presente para os cinéfilos.

Do Que Vem Antes ganhou o Leopardo de Ouro no prestigiado Festival de Locarno em 2014. O filme mais recente de Lav Diaz, A Mulher Que Se Foi, que conquistou em setembro o Leão de Ouro em Veneza, tem data de estreia no Brasil prevista para 2017, embora já tenha sido apresentado no Festival do Rio recentemente. Enquanto isso, o também atual Canção Para um Doloroso Mistério, que conta com uma duração de incríveis oito horas, segue sem previsão, ainda que tenha participado da Mostra de SP em outubro. 

Do Que Vem Antes (Mula sa kung ano ang noon)
dir. Lav Diaz - ★★★★★

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