sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Crítica: "TIO BOONMEE, QUE PODE RECORDAR DE SUAS VIDAS PASSADAS" (2010) - ★★★★★


Demorou, mas finalmente vi Tio Boonmee, Que Pode Recordar de Suas Vidas Passadas. É o primeiro filme do cineasta Apichatpong Weerasethakul que eu vejo, aliás. Vergonhoso, eu sei. Mas, não é que eu gostei desse filme, rapaz? Estava em dúvida se começava a filmografia dele pelos primeiros, ou se via esse, o mais famoso e aclamado. Será o melhor? Bem, até agora, levando em conta que ainda desconheço grande parte da fillmografia de Apichatpong, Tio Boonmee é uma obra-prima. Arrisco dizer, sem medo de estar errado (sei que não estou – e aqueles que viram vão concordar comigo) que é um dos filmes mais poderosos realizados nos últimos anos. 

Queria ter visto no cinema. O filme deve ser ainda mais impressionante na telona. Pelo menos, a experiência de ter visto em casa, na televisão, foi extremamente magnífica. Acho que nem as palavras mais bonitas, ou os elogios mais formais podem resumir a grandiosidade cinematográfica de Tio Boonmee. É um filme que fala por si mesmo, ainda que suas intenções não fiquem claramente evidentes à primeira vista, o que exige ao espectador revisões e análises minimalistas para identificar e compreender melhor as suas possibilidades. E justamente por isso é válido dizer que trata-se de um longa riquíssimo em detalhes, e que só tende a melhorar conforme a gente revê. 

A primeira cena do filme é estranhíssima e ao mesmo tempo esplêndida. Nesta sequência, vemos um boi (ou um touro, não sei?), amarrado numa corda no meio de um matagal. Embora essa cena seja um pouco escura, a imagem do animal está perfeitamente nítida. Em um certo momento da cena, ele se solta da árvore à qual estava amarrado e corre pela mata adentro. Um homem, cujo creio ser um indígena, se dá conta da ausência do animal e assim que o encontra tenta domá-lo. É uma sequência fantástica, irreal, com uma fotografia admirável e uma delicadeza magistral. O homem e o animal, o selvagem, a natureza. A ausência de luz cria um clima de medo cogitável. A apreensão é constante, enquanto nós, o público, observamos atentamente à fuga do animal e seu encontro posterior com o homem, numa tensa expectativa que combina perigo e paranoia. 

Nos minutos seguintes do filme (e apenas nestes), quebra-se a estranheza causada pela cena inicial com a elaboração de uma trama mais crível e óbvia, centrada num certo Boonmee, um homem que outrora fora torturador de comunistas, que padece de insuficiência renal e que, temendo morrer, decide reunir sua família em sua casa no interior. Avançando, a atsmofera do estranho novamente toma conta da tela, adquirindo proporções surreais e transcendentais. Na virtuosa sequência do jantar, uma das mais importantes do filme, o fantasma da esposa de Boonmee e de seu filho, que se transformou num homem-macaco, aparecem para ele e seus outros convidados. É uma cena com diálogos lentos, longas pausas, que permitem o espectador contemplar os detalhes mais profundos da cena e os aspectos gerais da atsmofera de suspense que a cena provoca, especialmente com a entrada do homem-macaco de olhos vermelhos, uma imagem exuberante e ao mesmo tempo estremecedora. 


Weerasethakul (a.k.a. Joe, o apelido ocidental do diretor tailandês) opta por planos demorados e contemplativos, apostando em uma estética desafiadora e belíssima, dotada de uma originalidade singela, como poucas vezes se viu funcionar tão plenamente em uma produção cinematográfica do gênero, reforçando o conceito de que Tio Boonmee é um filme único, em todos os sentidos, tanto na técnica arrasadora quanto no contexto inteligente. A câmera permanece fixa, com poucas movimentações, à exceção de uma cena em que a câmera está nervosa. O visual é excepcional. 

Outra sequência que merece destaque é a da cena de sexo entre a princesa e o bagre no rio. A surrealidade dá espaço à uma fantasia épica completamente onírica (e não é a única cena do filme que transmite a sensação de estarmos praticamente dentro de sonho, lembrando da cena do jantar, que é possivelmente até mais onírica do que esta). Dentro desta sequência, fotografia e som estão perfeitamente trabalhados. O design de som do filme é genial. Utilizando sons da natureza, e raramente quebrando esse protocolo, cria-se um suspense maravilhosamente tremendo como nunca se viu antes. 

Uma cena que eu gostei bastante foi aquela que faz uma óbvia referência ao clássico curta La Jetée, numa sequência onde narra-se um “futuro” onde o governo tem o poder de fazer as pessoas “desaparecerem”, com direito a uma narração consistente e amedrontadora, e fotos autênticas que ganham profundidade e com a intensidade da narração, um equilíbrio exótico e muito bonito de se acompanhar.

A interpretação do filme é individual a cada espectador e podem existir algumas divergências entre as opiniões daqueles que viram a respeito do que o filme vem a metaforizar. O meu conselho para quem quer que se aprofundar na história e no que ela quer transmitir é rever o filme repetidamente, e procurar se informar em textos e críticas sobre o filme na internet para se ter uma noção da compreensão e dos pretextos do filme. O mais legal de Tio Boonmee é que trata-se de um filme político, de fantasia, de comédia, de suspense, de terror, tudo junto e misturado (mas muito bem-feito) repleto de referências a outras grandes obras da sétima arte (como Blow-Up, de Antonioni), que nos oferece algo completamente novo e diferente do que já vimos, poderoso e marcante a cada instante, que foge do padrão auto-explicativo para dar lugar a impressão experimental e surrealista e à exploração dos elementos cinematográficos. Sobretudo, é uma meditação metalinguística sobre o efeito das imagens e das crenças sobre nós e o poder absoluto do cinema em recriar o imaginário, arquitetar e dar vida ao improvável, fazer o espectador ver o invisível, acreditar no inacreditável. Por essas e outras mais razões, Tio Boonmee é um filme mais que essencial. Merece ser visto, revisto e refletido. É uma experiência fílmica certamente inesquecível. 

Tio Boonmee, Que Pode Recordar de Suas Vidas Passadas (Lung Bunmi Raluek Chat/ลุงบุญมีระลึกชาติ)
dir. Apichatpong Weerasethakul - ★★★★★

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