Quem vê Manderlay logo acha que Lars Von Trier é fascista, sem mesmo antes refletir sobre o que foi colocado em pauta pelo diretor nesse drama acirrado. Segmento de Dogville, Manderlay, projeto que encerrou prematuramente a trilogia de Von Trier "E.U.A. - Terra das Oportunidades", que havia iniciado com o já mencionado longa de 2003, é um dos filmes mais provocadores, desconfortáveis e perturbadores desse polêmico cineasta dinamarquês, chegando a ter me deixado bem mais desconfortável do que seu comentado filme Anticristo, embora também seja uma de suas obras mais inteligentes, maturas e profundamente sensíveis. O caso é que tal desconforto é bem proporcional da parte de Lars Von Trier, algo que já é notório desde Dogville, mas que aqui se apresenta com mais força, talvez intensidade, justo por ter colocado em discussão um assunto tão marcante, importante e polêmico como o racismo de uma maneira tão ousada da parte do diretor.
Depois dos eventos ocorridos em Dogville, Grace (interpretada aqui talentosamente por Bryce Dallas Howard) e seu pai, aqui feito por Willem Dafoe, vão parar numa fazenda no meio do nada no Alabama, chamada Manderlay, cuja ainda funciona o regime escravista, depois de quase setenta anos do fim do mesmo. Com a morte da mestra da fazenda, interpretada por Lauren Bacall, Grace e sua humanidade quase surreal decide agir e impor liberdade aos negros ali mantidos. Após algum tempo, Grace decide passar um tempo em Manderlay, e, em sua estadia, acaba se acostumando servindo e trabalhando na fazenda, enquanto tenta solucionar os muitos problemas que surgem lá, da forma na qual os leva à uma desgastante decadência moral.
Já não é tão desconhecido a característica principal do estilo notório cinematográfico de Lars Von Trier, que busca explorar de forma dolorosa e dramática o sofrimento feminino. Aqui, não é diferente. Algo que até deixa o desenvolvimento da narração mais profunda, pesada. E esse sentimento constante de culpa e angústia gerados pela história e pela posição com a qual a personagem principal Grace é imposta ao longo da jornada até que nos deixa de certo modo um tanto quanto fascinados, assustados e desconfortáveis, como disse.
Mas o que me deixa mais estabilizado e emocionado em relação à Manderlay é a precisão e a delicadeza com a qual Von Trier, de quem sou um grande fã, cuida dos detalhes narrativos e dos elementos, além da condução tocante do roteiro. Quem diz que Manderlay é teatro filmado engana-se, parcialmente. É bem notável que, assim como Dogville, Manderlay possui um set único, no qual os cenários estão divididos, separados por linhas brancas e, desta vez, grades, como é o caso dos portões da assombrada fazenda Manderlay, onde paira a imensa obscuridade da fraqueza e da insensibilidade humana. Mesmo que tudo indique que Manderlay é basicamente um teatro filmado, pode-se notar que a edição (propositalmente) picotada de Molly Marlene Stensgard separa desfuncionalmente os takes e as cenas justamente na função de deixar bem avisado: "isto não é um teatro!", embora exista, como eu disse "parcialmente", uma certa acomodação teatral nesses dois singulares filmes, e na maioria das obras de Lars, se visto de perto.
A experiência de ver Manderlay, que no fim até me agradou, me deixou muito pensativo quanto à questão do racismo e da escravidão. Mesmo que as intenções de Von Trier neste longa tenham à seu modo certo propósito "comunista" (risos), não deixa de ser um deleite ver a visão deste dinamarquês que "tem medo de tudo na vida, exceto filmar" sobre um dos assuntos que mais tem gerado tabu nos últimos tempos, além de ser um dos mais frequentes, já que tocamos no tema. Contrariando o propósito de que a América é a "terra dos sonhos" através de um conto que analisa a influência escravista atual na socialização e na convivência de brancos e negros na atualidade. Em Dogville, a mensagem explicitada por Lars era a da expansividade da violência no território, algo que aqui tem certa participação, mas em menor síntese. Vale também explicar que Manderlay é um filme cujos fortes centram-se em seu poderoso elenco (não temos Kidman nem Caan aqui fazendo os papéis de Grace e seu pai, mas sim os igualmente dadivosos Bryce Dallas e Willem Dafoe, acompanhados de Danny Glover, Jean Marc-Barr, Isaach de Bankolé, Mona Hammond, John Hurt (o narrador), entre outros, tal como a gloriosa Lauren Bacall) e no roteiro excêntrico e sempre brilhante de Lars, que, a todo projeto, nos promete e cumpre em intuitos de oferecer à comunidade cinematográfica obras de qualidade, como Manderlay, que completa dez anos.
Manderlay
dir. Lars Von Trier - ★★★★
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