quinta-feira, 3 de março de 2016

Crítica: "O ESCAFANDRO E A BORBOLETA" (2007) - ★★★★★


Lá vou eu me aventurar de novo em uma revisão. Há uns dois anos, O Escafandro e a Borboleta estava passando no canal Telecine Cult. Eu parei pra ver e não me lembro se vi inteiro (acho que comecei a ver pela metade, ou parei na metade, aí depois eu voltei e vi... Sei lá, só sei que, na minha memória, desde então, trata-se de um título deprimente - e ele, de fato, continua sendo, até mais do que tinha sido na época). Produção francesa financiada com dinheiro saído de bolso americano, e dirigida por um, O Escafandro e a Borboleta é uma obra vigorosa e inesquecível, uma das biografias mais bem-feitas dos últimos tempos e certamente um deleite cinematográfico pra quem aprecia um filme de qualidade. O longa acompanha o trágico destino do jornalista francês Jean Dominique Bauby, que sofreu um derrame e após um curto período em coma, como consequência, desenvolveu a raríssima síndrome do encarceramento, mal neurológico que afeta o sistema nervoso e paralisa todos os músculos do corpo humano, à exceção das pálpebras (o intelecto, bem como a visão e a audição da vítima, permanece intacto). Confinado a uma vida hospitalar incessante, o homem logo faz amizade com uma terapeuta que, ao lado dele, pratica uma linguagem de sinais através do olhar. Das piscadelas para "sim" e "não" à esquematização de um alfabeto, Bauby logo tem uma ideia: escrever um livro. 

Julian Schnabel é um artista completo. Diretor de O Escafandro e a Borboleta, o homem só possui quatro títulos na sua filmografia (incluindo este aqui). Acontece que o diretor trabalha muito no ramo das artes plásticas e realiza diversas exposições mundo afora, e ele também já atuou dentro da música. Lembrando que esses são quatro vastos títulos, diga-se de passagem. O que essas produções tem em comum? São retratos de artistas problemáticos e complexos de coração. O primeiro filme de Julian, Basquiat, falava da vida do artista múltiplo Jean-Michael Basquiat, descoberto por Andy Warhol (interpretado no filme por David Bowie), envolvido nas artes literária, cinematográfica, musical... O segundo, Antes do Anoitecer, rendeu a Javier Bardem a primeira das três indicações do ator até hoje ao Oscar,  na categoria de Melhor Ator. O espanhol encarnou o poeta e escritor cubano Reinaldo Arenas. Como O Escafandro e a Borboleta, Antes do Anoitecer inspirou-se na autobiografia literária de seu principal. Basquiat, Arenas e Bauby. O que esses homens tem em comum? Seres humanos vivendo em prol da expressão, apaixonados pela vida e de alguma maneira aprisionados aos seus demônios e mais obscuros medos e à dor, à perdição e à culpa. Só o pouco falado Miral, o último dele, que não se encaixa nesse grupo das cinebiografias.

Não vi ainda nem Antes do Anoitecer e Basquiat, mas pretendo num futuro próximo desvirginá-los dos meus olhos. A garantia é que O Escafandro e a Borboleta é um baita de um filmaço e creio que já por este é possível desvendar, muito facilmente, a potência cinematográfica e artística de Schnabel. O filme, de veia poética, reconta a trajetória final de um homem que, impossibilitado de se movimentar, teve como único recurso a imaginação para a sobrevivência. Imaginar para viver. A beleza por trás dessa trama toda vai bem além de um puro e inocente sentimentalismo lotado de atrativos. O Escafandro e a Borboleta é também a história de um cara arrogante e que fez muita burrada aprendendo a lidar com a redenção e com os seus próprios erros num estado vegetativo profundo e abstinente. É o ser frente a frente com os seus mais sórdidos defeitos.

O Escafandro e a Borboleta tinha tudo pra ser um melodrama furado e sem vida. Felizmente, não é: passa longe da cruel possibilidade. Há um jogo tenaz de gêneros e diálogos e climas que livra do filme do pecado e da perdição de um dramalhão sem vida. O sentimento que fica é de melancolia, ao contrário daquela sensação frívola de peso dramático nas costas que geralmente vem a ocorrer ao fim de um fracasso do drama, que não é o caso aqui. Há, inclusive, a adição de humor, o que chega a ser muito bem-vindo e extraordinário tratando-se de uma história dessas, tão carregada e intensa. Mas a descontração serve, nesse caso, para degustar melhor o tom do filme em si e também como confronto à certos embates morais cabíveis ao estado do Jeando. 

À medida em que vamos nos aproximando do fim, surgem as revelações e os emblemas. O Escafandro e a Borboleta é também um desafio ao nossos limites morais, à aceitação e à desconstrução dos erros. Todos somos humanos. Ser humano é o primeiro passo para abraçar a redenção e a liberdade de espírito.

A ciranda visual comandada por Janusz Kaminski que é a fotografia de O Escafandro e a Borboleta proporciona ao espectador uma experiência nutritiva, eletrizante e belíssima, das mais cativantes e fascinantes. A câmera brinca com as posições e muitas vezes nos põe na pele de Bauby. A pungência é delirante. A unicidade é ainda mais encantadora. Os ângulos trêmulos e planos individuais ajudam a construir o clima quebradiço e o cenário blue.

Afinal, é a superação que faz o herói? Indiretamente, o transtorno do jornalista desencadeou na auto-descoberta dele mesmo, na aceitação das decisões erradas e das feridas emocionais, de alma corrompida e moral descreditada. O filme, no geral, é crível e bem conduzido. Não há como reclamar. A pérola estonteante e maravilhosamente triunfal de Schnabel trata-se de uma obra-prima atordoante. Sua força é tocante. A performance de Mathieu Amalric, alado um elenco extraordinário, cheio de gente boa, é desoladora. Além da dupla Mathieu e Julian, temos, atrás das câmeras, o roteirista Ronald Harwood (que já trabalhou com cinebiografias anteriormente, por exemplo O Pianista, também vindo da autobiografia de um pianista polonês sobre sua trajetória em guerra), a editora Juliette Welfling (colaboradora do cineasta Jacques Audiard), e a produtora Kathleen Kennedy (sim, aquela que de algum jeito sempre aparece nos créditos dos filmes do Spielberg). O Escafandro e a Borboleta é, enfim, primoroso. Não tem como ir além disso. O filme é assim, impactante e delicioso, difícil de desapegar.

Só pra terminar, a cena mais dolorosa do filme: o derrame, ao som de "La Mer", provavelmente uma das cenas mais tristes que eu já vi em toda a minha vida. A reconstrução é épica. Posso estar enganado, mas é a melhor cena do filme.

O Escafandro e a Borboleta 
(Le scaphandre et le papillon / The Diving Bell and the Butterfly)
dir. Julian Schnabel - 

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