A receita não é complicada. De fato é originada da simplicidade. Será um grande desaforo Que Horas Ela Volta? ser ignorado no Oscar 2016. Selecionado na última quinta para concorrer a uma vaga em Melhor Filme Estrangeiro, depois de tantas e cruéis rejeições a obras-primas como O Som ao Redor, Cidade de Deus e Carandiru nos últimos dezesseis anos desde que Central do Brasil foi indicado, será inaceitável a Academia ignorar um trabalho tão merecedor e bonito como esse, que bem de longe cheira a Oscar. Isso é, se o filme não for indicado e ganhar o prêmio de cara. Mas o que realmente importa é o filme, sendo ou não nomeado. Com certeza a maior surpresa do cinema nacional deste ano, Que Horas Ela Volta?, com leves pitadas de comédia, é um drama excepcionalmente bem-feito como nenhum outro, tem a Regina Casé na atuação da carreira dela e uma história pra lá de arrebatadora e emocionante.
Em Que Horas Ela Volta, Casé vive Val, uma empregada doméstica que, há dez anos, deixou a filha Jéssica no Nordeste para trabalhar como servente e babá de Fabinho, que considera a empregada sua própria mãe, e nisso ele mesmo descarta a existência de sua mãe biológica, Bárbara, sempre muito atarefada e raramente com tempo de estar ao lado do filho. Com um toque talentoso e muito forte de sensibilidade, Anna Muylaert, a mesma de É Proibido Fumar, constrói uma grandiosa obra sobre a ausência e a presença, o amor de mãe e a divisão das classes sociais no Brasil atual, que muita gente já diz estar bem menos preocupante, mas caso analisada de perto, é demais problemática.
Tudo se complica na trama quando Val recebe a notícia de que a filha, Jéssica, com quem ela mal falava e que a rejeitava interminavelmente, virá a São Paulo para prestar um concurso. Apta disso, Val se anima para a chegada da filha e se enche de felicidade, mas logo que a garota, já crescida, desembarca na cidade, a mãe passa por maus bocados ao lado da menina, que não obedece a ela em nenhum instante e ignora o clássico estereótipo de "filha de empregada", ficando bem à vontade com os patrões e ocupando até mesmo o quarto de hóspedes da casa ao invés do próprio quartinho dos fundos, moradia da mãe, o que enfurece ela e a patroa, que fica nitidamente incomodada com a situação.
Tratando dos conflitos entre as classes sociais, tema que recentemente veio sendo debatido com um astronômico sucesso em longas como O Som ao Redor e Casa Grande, Que Horas Ela Volta? marca pontos e se junta a esse grupo de filmes ótimos sobre o assunto, e mais uma vez simboliza a boa fase que o cinema brasileiro está passando. Foi exibido em Berlim, onde arrecadou um prêmio, e em Sundance, onde Casé levou pra casa o prêmio de Melhor Atriz.
Muita gente pode achar que as situações pelas quais Val é obrigada a trilhar ao lado de sua filha possam ter certa influência cômica, mas sinceramente o clima dramático e o desconforto que o público também sente na pele é tão grande que fica impossível rir diante de momentos tão tensos. Sem falar no brilhante roteiro que constitui o filme, e que, além de ser uma fonte constante de reflexão, devido à contemporaneidade da abordagem, é também produto do retrato e da consistência narrativa. Afinal, mesmo que tanto tempo desde então tenha se passado, a posição da doméstica hoje em dia é a mesma da escravidão, onde continuam ativos os velhos limites da casa grande-senzala, senhor-escravo, e mesmo que a família tenha certa consideração pelo empregado, na grande maioria das vezes, essa restrição ainda é existente. E eu lhes pergunto: como uma pessoa tem a coragem de proferir encorajada e descaradamente que em nosso país não existe mais o preconceito? Por favor, né?
Apesar do fim "revolucionário" que toma, a personagem Val não mostra quaisquer incômodo com essa restrição. Depois de tantos anos submetida a esse tratamento, ou até nem mesmo tendo vivenciado-o, apenas por ter visto em uma situação semelhante, ela soa muito indiferente, acostumada. Só quando a filha chega em São Paulo é que ela põe pra fora o quão está cansada da vida que leva, tendo que servir calada e obedecer regradamente às tarefas impostas pelos "superiores" e ainda sim ter que passar o resto do tempo que lhe sobra preocupada e intrigada com os maus-tratos da filha, que em certo momento a indaga citando que "não é regra e não está escrito em nenhum lugar para ela se pôr no lugar de uma serva", apesar da profissão já em seu nome nos remeter à esse preconceito. Não é essa a vida?
Chega a ser assustador - sufocante, especificando - imaginar, ocasionalmente, que isso continuará por anos, e que o preconceito não acabará enquanto ele continuar sendo praticado. Afinal, é a maldita herança de tempos obscuros em que o Brasil era regido injustamente e com um rigor inabalável. Uma vez que essa herança não foi arrancada pela raiz, não há mais como exterminá-la. O que nos leva a conclusão de que por um bom tempo essa mesma história se repetirá. E dentro dessa repetição, outra infame repetição: a vinda dos menos afortunados para os centros em busca de melhores condições, e usualmente essa busca toma como resultado esse mesmo ciclo. E nem sempre a realidade vai condizer com a ficção, como acontece aqui no longa.
Mas, nem tudo são pensamentos negativos. Como vive revolucionariamente proferindo uma amiga minha, a força e persistência faz a mudança. E, em tempos de inovação do modo de pensar, com a juventude tão ativa logo cedo lutando pelos direitos e pela igualdade, a ideologia evolucional da geração tão almejada parece finalmente ganhar vida.
Mas, nem tudo são pensamentos negativos. Como vive revolucionariamente proferindo uma amiga minha, a força e persistência faz a mudança. E, em tempos de inovação do modo de pensar, com a juventude tão ativa logo cedo lutando pelos direitos e pela igualdade, a ideologia evolucional da geração tão almejada parece finalmente ganhar vida.
E nesse ponto, Que Horas Ela Volta?, além de terrivelmente chocante, é muito interessante. Sua proposta me deu muito o que pensar, e, porque não?, me fez enxergar melhor sobre certos quesitos, e com certeza fará muita gente repensar sobre esse inquérito das barreiras e preconceitos que permeiam a sociedade brasileira desde os primórdios do descobrimento até os dias de hoje.
A performance de Regina Casé, muito possivelmente a maior da atriz que, apresentadora do popular e cativante Esquenta! e outras atrações televisivas, é sim muito talentosa e aqui demonstrou excelentemente a força de seu talento para com a interpretação. Mais do que nunca, ela apresenta um lado atraente e muito digno em Que Horas Ela Volta? de seu lado atriz, um dos muitos lados de sua multifacetada carreira artística. Por estes mencionados e mais outros motivos, recomendo muito Que Horas Ela Volta?, uma experiência mais que marcante pra mim.
Que Horas Ela Volta?
dir. Anna Muylaert - ★★★★★
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