sábado, 24 de outubro de 2015

Crítica: "SINDICATO DE LADRÕES" (1954) - ★★★★★


Ontem fui pego de surpresa por uma braba intoxicação alimentar, tudo por conta de um maldito lanche vegetariano que comi numa cantina de rua (teimosia a minha). Que raiva! Passei o dia todo enjoado, com náuseas, tonto e febril. Foi uma desgraça. Felizmente hoje apresentei melhoras e me livrei daquele infernal mal-estar dessa última sexta, tanto que nem pude ver um filme de tão cansado e debilitado que estava. Sem contar que minha garganta tá péssima por conta da gripe. Hoje, apesar de ter gasto minha manhã inteira no hospital, onde tive que ser furado duas vezes pela enfermeira, que tinha errado da primeira vez o lugar, e fiquei quase meia-hora entediado levando soro na veia, coisa que eu odeio, já que tive também de ouvir as lamentações de outros pacientes que compartilharam o espaço comigo, uma delas uma senhora com labirintite que estava praticamente caída numa cadeira, mas não parava de choramingar sequer um segundo, e repetia incessantemente a frase "Meu Deus!", com o rosto péssimo. Seriamente, pensei que ia morrer ontem. Espero nunca mais ter que passar por tal infâmia novamente na minha vida. Enfim, mas, apesar do dia corrido, tive a oportunidade de conferir Sindicato de Ladrões, do Elia Kazan, considerado uma das maiores obras da história do cinema, e há muitas razões para crer em tal fama, ainda mais quando se tem em mãos uma cópia remasterizada e de perfeita qualidade do longa, exibido na sala 4 do Itaú da Augusta.

Dirigido pelo controverso grego naturalizado americano Elia Kazan, Sindicato de Ladrões é uma competente acusação contra os inaceitáveis abusos dos sindicatos trabalhistas americanos, e um glorioso, porém triste, grito de redenção às brutais demandas do capitalismo. O filme acompanha a jornada de Terry Malloy, ex-boxeador que vive fazendo pequenas pontas num cais, até que recebe uma inusitada missão vinda do poderoso chefe do sindicato do local, de alertar um jovem delator, que acaba resultando em sua morte, inocente. Seguindo esse tenebroso assassinato, outros vão surgindo à medida em que Terry é pressionado pela dúvida e pela divisão entre o amor da irmã do falecido "dedo-duro", uma estudante católica, e seu trabalho e reputação entre os bonzões do sindicato, que o levariam à morte caso ele revelasse para alguém os bastardos segredos por trás dessa falácia.

É interessante ver que Kazan é direto em sua argumentação e na montagem da trama, sem exagerar e enrolar muito. Coisa que é pouco vista nos dias de hoje, Sindicato de Ladrões não é apelativo, em falas marcantes, segmentos obscuros e pesados, e uma lista de personagens simbólicos ele já ganha nosso voto de adoração, e com uma extrema facilidade ele abocanha esse notório feito. Vale também reconhecer a extrema dedicação do protagonista Marlon Brando, na performance que viria a consagrá-lo como um dos maiores intérpretes do cinema americano, algo que já havia sido confirmado com a carreira teatral de Brando, e que, antes de Sindicato de Ladrões, já tinha sido bem arquitetada em Uma Rua Chamada Pecado. É claro, seria fatal aqui esquecer da linda Eve Marie Saint, no papel de maior destaque de sua filmografia, uma atuação preenchida por uma tenra sensibilidade e uma enorme força. Há também o vilanesco e carrasco Lee J. Cobb, como Johnny Camarada, e Karl Malden (o padre), em desempenhos igualmente fantásticos. Menção honrosa à desoladora trilha sonora, imprescindível. 

Mesmo depois de tanto tempo, Sindicato de Ladrões é um reflexo da nossa atualidade, preenchida por toda essa angústia que gira em torno das façanhas e irresponsabilidades no conjunto serviçal, algo que até hoje implica em diversos quesitos, como o desemprego, a pobreza, assédio moral contra o empregado, entre muitos outros. É muito legal ver um filme sobrevivendo à passagem de tempo com sua importância e relação com o tempo presente intactas. Embora minha memória esteja fraca demais pra exercitar a lembrança de alguns desses títulos, e agora só me vem à cabeça M, O Vampiro de Dusseldorf, pode-se dizer que um ótimo exemplar de um filme que eterniza essa artimanha é Sindicato de Ladrões.

O sistema que nos suga diariamente, nossas forças devastadas pela falta de progresso, as muitas perspectivas que rondam a desigualdade e a tendenciosidade de um mundo onde se é preciso batalhar, com toda a nossa energia, atropelar até mesmo ao mais íntimo, para conquistar um lugar. Muitas das passagens icônicas aqui explicitadas nesse clássico definem esses padrões, como os tensos e desesperadores minutos finais da película, a multidão reunida no cais tentando capturar senhas para conseguir uma brecha nos navios, ou até mesmo (spoiler) a do marcante discurso do padre após a morte de "Nocaute", provocada propositalmente por dois companheiros de Johnny, de forma com que, em cada grande segmento não se ausente um inovador clima de ação e abalo, como a qual Terry é perseguido pelo caminhão ao lado da amada. O filme também deixa algumas pequenas pistas irresolvidas, de forma a deixá-las à mercê da decisão do espectador, como a cena do tribunal, interrompida quando um senhor desliga a TV, interrompendo o julgamento realizado pela comissão e a acusação de Terry. Ao longo dos séculos, a verdade é encoberta e a justiça exterminada. Sempre foi assim, e enquanto existir a ignorância e desproporção social e econômica e desavenças entre as classes, continuaremos a ver esse filme sem fim. Sindicato de Ladrões, seja um espelho do passado ou daquela época, mostra que apesar das mil e uma mudanças que aconteceram desde lá, entre promessas e miséria, ilusão e avanços, o mundo continua parado no mesmo lugar.

[39ª mostra internacional de cinema de SP]
Sindicato de Ladrões (On the Waterfront)
dir. Elia Kazan - ★ 

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