Desde
que me entendo por cinéfilo, considero Woody Allen meu grande ídolo. E, no
mínimo, é uma obrigação ver os seus filmes, em especial aqueles que integram
sua filmografia a cada ano, mesmo que tal tarefa, até hoje, não passasse de um
sonho (uma vez dada a circunstância da minha localização), tendo eu visto Magia ao Luar ano passado na internet.
Hoje, tive a oportunidade única de ver um filme do cineasta no cinema, mais
especificamente no Espaço Itaú de Cinema da Augusta (2), numa sessão que,
embora tenha sido reservada a uma sala pequena demais pro meu gosto, não deixou
de ser agradável e aconchegante. Uma experiência que, com certeza, se repetirá
nos anos seguintes com as respectivas estreias dos filmes de Woody em nosso
circuito, apenas com a probabilidade da qualidade desses filmes oscilarem,
creio. E, além dessas aquisições, o que centralmente torna essa experiência um
primor é o fato de ter sido exibida uma obra excelente dele: o extraordinário
thriller Homem Irracional.
Allen,
abusando menos do humor aqui, apresenta a inusitada história de Abe Lucas,
professor de filosofia afogado numa crise existencialista que reprime suas
forças e faz dele um personagem autodestrutivo e depressivo, cheio de defeitos.
Após aceitar o convite de lecionar numa determinada universidade, Abe conhece
uma linda e dedicada aluna, Jill, que está claramente apaixonada por ele, embora
Lucas sempre a rejeite. Impotente, alcoólatra e suicida, Abe (como ele mesmo
cita em uma de suas falas) chegou psicologicamente ao fundo do poço. É num
encontro com Jill, em um pequeno café, que ele reencontra a esperança numa
obscura e perigosa ideia: matar um juiz injusto. Após ouvir os relatos de uma mãe que
perdeu a guarda dos filhos para o ex-marido, que cuida mal deles, e nesse
relato a mãe falar que desejava a morte desse juiz, que comandou o caso, Abe
torna dessa ideia maluca sua missão, e obsessão.
No
entanto, a impressão de Abe sugerida por esse argumento é de um cara frio,
louco, provável esquizofrênico, entre outras atribuições do gênero. Engana-se
quem pensa que a nossa interpretação de Abe para por aí. O que explica essa
obsessão inusual do professor é a sua angústia e infelicidade com o mundo ao
redor dele. Tendo visitado diversos países, experienciado as piores condições,
Abe é uma pessoa depressiva por natureza. Quem não fica triste por viver num
mundo tão injusto e cheio de maldades? Abe é aquele cara que quer mudar o
mundo, mas não sabe por onde começar. Acha que dando aulas de filosofia poderá
mudar os pensamentos e as noções sobre o universo, mas no fundo essas aulas não
o satisfazem por completo.
O
idealismo de Lucas necessita de um preenchimento, de um resultado. Caso esse
resultado não seja obtido, sua vida é totalmente sem significado, totalmente
vazia. Por um lado, é bom ver que Woody tá evoluindo nessa questão do
existencialismo, que, em filmes passados, era projetada em moldes cruéis e excessivamente
transtornados. Aqui, pelo menos, o conceito que move essa ambição criminal
justamente já muda dos filmes anteriores dele. É um mundo injusto,
infelizmente. Mas, o que fazer? Como podemos contribuir, fazer “a nossa parte”, estampar a humanidade?
Embora levemente exagerada, essa obsessão de Abe contrasta com a aparência
dessa terrível sociedade, e o intuito de matar uma pessoa ruim é de uma
extremidade tão grande que muito bem pode significar a mudança.
Por
um lado, Jill é mais emotiva, otimista, esperançosa, e acha que, mesmo matando uma pessoa que possa
ter prejudicado outra, devemos levar em conta o caráter que não nos é visível
correspondente a ela. No mundo de Jill, nem todo mundo é imprestável e ruim
como pode parecer, superficialmente. Jill acredita na culpa e na desonestidade,
e quer protestar que pra tudo tem uma saída. O que dá a entender, a partir de
um final irônico e bem-feito, é que Woody teoriza que, quanto mais possamos nos
sentir reprimidos e decepcionados com nosso mundo, não é sempre que essa nossa
concepção sairá viva da batalha. Afinal, é a própria Jill que começa e termina
com toda essa ideia. Ela, e seu idealismo consistente e moralista, transformam
a vida de Abe. É uma questão de ética filosófica. Esse contorno minimalista do moralismo rege a relação deles, sempre enfeitada por altos e baixos.
A
trama de Homem Irracional não sofre
com um desperdício de dois úteis e claros finais alternativos, e seu fim
continua sendo crível e inteligente, particularmente semelhante a um outro
filme do Woody, O Sonho de Cassandra. A filmografia dele, pelo menos a boa
parte dos suspenses, é inteiramente duvidosa quanto a finais alternativos. Mas,
deixemos isso de lado. O roteiro assinado por Woody, mesmo com fracas sacadas,
se salva em função de personagens bem-elaboradas e à presença de um clima Hitchcockiano
esplêndido, somado às implicações filosóficas sobre a moral do autor russo Fiodór Dostoiévsky
(especificamente Crime e Castigo,
clássico literário tão sucessivamente adaptado por Woody em filmes como Match Point e Crimes e Pecados, aqui novamente utilizado como base), além do uso impecável da narração.
Muito
se esperava de Homem Irracional desde
que Joaquin Phoenix foi anunciado no elenco, e a parceria que tanto estava
sendo comentada entre ele e Woody não podia ter sido melhor, afinal, mais com
mais dá mais. A atuação de Joaquin como Abe Lucas marca mais um rico exemplar
do esforço e da excelência desse homem, que em sua filmografia lendária leva
títulos grandiosos, e com este aqui a lista fica mais cheia. Sem dúvida, é uma
performance espetacular. E só agora vim perceber como o Joaquin tá
envelhecendo. Espero que não seja por acaso ele estar no papel de um acabado.
Por
mais incrível que pareça, a comédia em Homem
Irracional é costurada por Parker Posey, que está linda como a Rita,
ficante de Abe. Sua personagem é a única do elenco “iluminada” por um senso
humorístico tipicamente Alleiano. Não é sempre que dá pra rir, e nestes raros
momentos temos em cena Parker, que veio sendo muito elogiada por essa atuação,
e eu sinceramente não vejo porque não, mesmo que ela apareça esporadicamente.
A
fotografia de Darius Khondji assemelha-se a um filtro cool de Instagram, mas
mesmo assim é colírio para os olhos. Consegue acompanhar o clima do suspense em tons ensaiados e quentes que aromatizam o telão. Ele e Woody são tecnicamente ótimos
juntos, ainda que eu estivesse esperando desde o início Vilmos Zsigmond, embora
o Khondji também seja tão brilhante quanto. Enfim, não negarei que esperava
mais do filme, mas o que importa é que saí da minúscula sala saciado. Afinal,
não se pode exigir demais de um diretor como Woody, que realmente, nesta
altura, não vai começar a desembestar em novas e alternativas produções, e só
tem mesmo a usar como base as experiências que funcionaram em sua carreira.
Todo gênio precisa de um tempo. Woody está tendo o dele. E,
nesse ponto, Homem Irracional, ode à ironia e às muitas perspectivas em torno da moralidade, aqui entonadas pelo embate entre Jill e Abe, já tá
de bom tamanho, ainda que seja suavemente decorado por falhas. Woody em boa forma é tudo o que necessitamos. Homem Irracional exemplifica otimamente essa boa fase, de exemplares ímpares.
Homem Irracional (Irrational Man)
dir. Woody Allen - ★★★★
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