segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Crítica: "SOBRE MENINOS E LOBOS" (2003) - ★★★★


Dois crimes. Três meninos. Futuro destruído. Passado vingado. Na década de 70, a vida de Dave Boyle sofre uma grave reviravolta quando ele é vítima de um tenebroso sequestro que, mesmo depois de trinta anos reflete no seu comportamento introvertido e personalidade problemática. Enquanto brincava ao lado dos dois amigos da vizinhança Jimmy Markum e Sean Devine, Dave foi interrompido por um carro e um homem que dele saiu, afirmando ser da polícia, deixando distintivo e algemas à mostra. O pobre garoto, sem o que fazer, obedece ao pedido do misterioso homem: entrar num carro, onde ele o conduzirá até sua mãe e a comunicará do delito cometido por ele, já que o mesmo estava terminando de escrever seu nome num cimento recém-posto com os amigos. Depois daquele dia, Dave nunca mais voltou a ser o mesmo. Aquele Dave havia morrido. O reencontro desses garotos é flechado por um bárbaro crime, que afeta Jimmy, o antigo líder do grupo.

O suspense em Sobre Meninos e Lobos é fermentado com uma delicadeza tão próspera e minuciosa que não é de se estranhar que o filme tenha conquistado um prematuro legado tão facilmente. Clint Eastwood, filmando mais uma vez o impetuoso universo em que habitamos, é brilhante, e faz a platéia se comover diante de uma de suas obras mais pesadas, bem filmadas, inteligentes e eficientes. Sobre Meninos e Lobos busca o menino e o lobo dentro de cada um de nós, preparando um ágil jogo que nos engana e nos entretém. É a mais pura reflexão já realizada por Clint, até hoje, sobre o devastador efeito do destino, e suas fatais consequências nas vidas de seus envolvidos, executados um por um na guilhotina da verdade. O poder que nos é instruído às vezes não corresponde, ou tem o azar de chegar atrasado e vincular um final diferente.

Se lá no fundo não é o melhor do Clint Eastwood, pelo menos Sobre Meninos e Lobos articula bem um roteiro profundo e excelentemente dramático, assinado por Brian Helgeland, e faz bom uso de uma turma de atores simplesmente fenomenal e imperdível, sob qualquer perspectiva que tal definição possa oferecer. Sean Penn é magistral, tenso e bem trabalhado como nunca, sem querer titular Sobre Meninos e Lobos como seu melhor trabalho no cinema, mas que sem sombra de dúvida não fica nem um pouquinho pra trás, na pele do conturbado James Markum, que revoga o mundo ao redor e suas forças quando fica ciente da morte de sua filha mais velha. O intenso Tim Robbins, nesta que é a melhor interpretação que sua carreira já nos proporcionou, uma vez que já é um pouco raro ver o ator em tela, ainda mais na atualidade, e numa pérola dessas não ousaria descartar a chance de parabenizá-lo por seu extraordinário talento e a incrível montagem e preparação que ele impôs a seu problemático personagem, um pai de família assombrado por um cruel passado. Quanto ao Kevin Bacon, não tenho o que dizer sobre ele não. É uma hora ou outra, por exemplo na cena da interrogação, que ele realmente merece ser destacado, até porque até agora me pergunto que diabos estavam pensando ao colocá-lo aqui, e talvez ele mesmo seja o particular e singular pesar do elenco. Laura Linney e Marcia Gay Harden comandam o núcleo feminino com uma singeleza versátil e que é difícil de expressar com palavras, já que é bem difícil vermos personagens femininas e suas atrizes tão bem entonadas em filmes do Clint. Não podemos esquecer do Tom Guiry, rapaz cujo papel também é estremecedor, ainda que só seja visto em poucas cenas.

Tomando como partida um cenário em comum (o antigo bairro), personagens intercalados entre si, seja laços de família ou provenientes do pretérito (o trio Sean, Jimmy e Dave), e uma complexa ligação entre esse trio e outros personagens ao redor, por sua vez pregados uns aos outros por capítulos que vão sendo relevados pouco a pouco dentro da trama, Eastwood faz do filme não só um thriller potente e que não dá ao espectador o privilégio de respirar por um segundo, quem dirá mover os olhos para outro lugar senão direcionados à tela, mas também dá um pouco de liberdade para que o roteiro de Brian vá construindo o filme sozinho, tanto que é visível que não há uso de flashback, excedendo um na sequência inicial e próximo do fim. Isso evita que o clima seja partido, e apenas alimenta nosso prazer e ansiedade em reunir as peças dessa grande conexão e então poder compreender o ver do filme, o que não depende apenas de uma grande sacada final, mas também de algumas pistas que vão sendo, de fininho, liberadas. É tudo uma questão de atenção e paciência.

Sobre Meninos e Lobos dialoga sobre o passado, e como ele é onipresente e importantíssimo para o trio, de diferentes formas. O sequestro na infância para o Dave, a prisão e alguns pequenos fragmentos instalados em torno desse plano para o Jimmy, e o afastamento da mulher, que permanece até o fim sem respostas, para o Sean. Outra coisa interessante é a forte sede por vingança que preenche o enorme vazio instalado em Dave e Jimmy. Enquanto um busca a redenção através da libertação de uma vítima, o outro procura limpar seus pecados com o sangue de quem lhe causou tanto infortúnio. Seus caminhos, nessa passagem, se cruzam, como um simultâneo piscar de olhos. Porém, aqui (mérito novamente para o essencial roteiro, que é adaptação do romance Mystic River, de Dennis Lehane) há uma estratégia muito bem arquitetada no intuito de evitar a vulnerabilidade e falta de sentido no final. E o caminho encontrado para unificar de vez as peças soltas da trama não muda em nada a percepção quanto à competência da construção. O Clint cria um clima perfeito, obscuro e perverso, e atinge o máximo na exploração marcante da tragédia dentro da história, auxiliada pela fotografia do Tom Stern e a excelente edição do Joel Cox. Gostei muito de Sobre Meninos e Lobos, ainda que tenha ficado desapontado com relação a certas coisas. Sinto que, de alguma forma, o capítulo final, mesmo que glorioso e bem-feito, não consegue compensar por completo o desfecho. Há um desencontro. Achei que ficaria mais chocado, impactado, do que fiquei. Faltou muito pouco mesmo.

Sobre Meninos e Lobos (Mystic River)
dir. Clint Eastwood - ★★★★

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