sábado, 10 de outubro de 2015

Crítica: "HUCKABEES - A VIDA É UMA COMÉDIA" (2004) - ★★★★★


Necessariamente complicado, mas brilhante, Huckabees - A Vida é uma Comédia, o melhor trabalho até o momento do David O. Russell, é uma obra constantemente desafiadora, que busca interpretar o sentido da vida humana e a nossa posição dentro de uma sociedade manipuladora e preenchida por falhas, e ao mesmo tempo pretende teorizar nossos transes de personalidade, a carência do ser por atenção, sucesso e lazer, e a falta de limites da nossa ambição particular: a ambição pelo prazer. É um filme que foi desnecessariamente ridicularizado e desperdiçado, tanto que é quase impossível encontrá-lo hoje em dia. Rende uma ótima sessão, autenticamente thought-provoking e minimalista, cheia de desafios e emblemas.

No início do filme, somos introduzidos a uma figura de comportamento melancólico e totalmente pessimista: o ativista e poeta iludido Albert, interpretado por Jason Schwartzman, que contrata um casal de "detetives existencialistas" para investigar uma coincidência estranha e quase irreal, impossível. O casal de detetives é feito por Lily Tomlin e Dustin Hoffman, que estão convencidos de que é apenas uma boba coincidência, embora Albert viva metendo na cabeça deles de que não é tão simples quanto aparenta. Tal coincidência envolve um rapaz africano, com quem Albert topou numa loja de fotos para autógrafos, mas cujo ele também voltou a encontrar na portaria de seu próprio apartamento e também quase o atropelou no estacionamento de uma das filiais da Huckabees, "a loja que vende tudo". É nessa coincidência que é germinada uma conexão existencialista e non-sense que aparentemente pode soar confusa e maçante, mas que, revista, pode mudar opiniões conforme vai se tornando a profunda raiz do longa, que é movido por essa simples coincidência.

O elenco é grande, formado por Jason, Lily, Dustin, Naomi Watts, Jude Law, (o surpreendentemente talentoso) Mark Wahlberg, Isabelle Huppert (que, ainda na faixa dos 60, continua excepcionalmente radiante, isso por que o filme é de 2004, quando a atriz estava com 51 - Huckabees também é a rara oportunidade de ver Isabelle num papel falado em inglês) entre outros, incluindo iniciantes como Isla Fischer e Jonah Hill. O elenco tem um papel super fundamental no funcionamento do filme. É a partir da elaboração destes personagens que surge toda a grande movimentação desta poderosa trama. 

A síntese filosófica de Huckabees gira em torno da nossa própria identidade, relacionada com o mundo ao redor. Será que estamos no papel certo? Não será essa vida uma grande falácia? É tudo mesmo um acaso? As questões estão aqui para serem desvendadas. E o filme justamente por isso gera múltiplas interpretações. Talvez o que eu tenha visto aqui não seja o mesmo que você viu, até porque o filme, além de debater essa reflexão ideológica sobre o nosso ser trabalhando dentro de um círculo social compulsivo e cada vez mais imprevisível, também busca compreender os limites da corporação e do sistema capitalista na atualidade, tal como os efeitos desse sistema em nossa vida pessoal quanto a sua influência na construção das nossas ideias e, consequentemente, nas ações. 

A figura do homem dentro desse sugador plano é de uma ciência duvidosa e que exige certos cuidados, uma vez que nele é tudo muito avulso, com caminhos cruzados e estratégias alternativas. O que, de fato, explica sua maior expansão e ocupação de espaço em nosso cotidiano é a isolação dos recursos e a exatidão da tecnologia, que torna mais viável a conquista de quaisquer bens. Dawn Campbell, a garota-propaganda da Huckabees, é uma pessoa que esconde por trás de um rostinho bonito, um corpo sensual e malhado, o sorriso atraente e o olhar charmoso uma angustiada tensão, acumulada em excesso no seu subconsciente, que, quanto mais alto grita, menos frequentemente é ouvido. Consequências de um vício que, à medida que enfraquece nossa estima, vai se tornando mais irreversível. É aos poucos que Dawn, claramente perturbada emocionalmente, percebe a farsa que sua vida se tornou, e o quanto ela foi batizada com mentiras para se iludir com uma vida que posa com o sucesso, mas não engana um astral corrompido e traumatizado.

Albert, de tão solitário que é, não vê uma razão para sustentar a sua vida, até por que seus protestos ambientalistas já não mais correspondem à busca dele por esse sentido. É nessa coincidência, efeito colateral de seu espírito fragilizado pelo destino, que ele vê a chance de mudar de vez a sua vida, a chance de encontrar o real significado dela, e de poder se conectar com os outros ao redor. E, ao mesmo tempo, ele procura ser visto, ser percebido. A falta de alguém já é bastante intolerável. A falta de algo, então, só ajuda as coisas a piorarem. É nesse distópico fundo do poço, num lugarzinho grotesco e curioso chamado Huckabees, é que ele finalmente vai escalando para o topo, pela primeira vez. E, quando ele vê a queda de seu arqui-inimigo Brad Stand, o ricaço e bem-sucedido funcionário da loja, é aí que cai a ficha. Ele retorna ao topo do poço. Afinal, é nesses momentos mesmos, observando o próximo falir, que vemos refletido ali naquela desgraça nossa própria jornada, e uma identificação. Afinal, somos todos iguais. É o que o lençol metaforiza. Tudo na vida é a mesma coisa. Mas, naturalmente, vemos tudo distorcido, diferente da realidade estética. 

O personagem do Mark, um bombeiro que, após os atentados terroristas às torres gêmeas em 2001, ficou neurótico e obcecado com o episódio a fim de maldizer o petróleo, indo trabalhar até de bicicleta. Na cena em que ele anda de carro com o Albert, vemos que nem sempre, no nosso mais profundo instinto, é possível segui-lo até mesmo cegamente, e nesses contrapontos somos enganados por nós mesmos, do nada. É a auto-ilusão, uma ação quase auto-imune. A figura do bombeiro representa o ser em foco, caminhando na escuridão na intenção de encontrar uma faísca de luz que lhe guie por meio de toda uma onda de dúvidas. 

É um filme muito bom mesmo. Vale ver. Me deixou encucado com algumas coisinhas, mas é inegavelmente uma pérola. Huckabees - A Vida é uma Comédia, o horrendo título que as distribuidoras nacionais tiveram a pachorra de dar a I Heart Huckabees (Eu Coração Huckabees), rima filosofia e comédia no ponto perfeito. E tenho a coragem de dizer que é o melhor filme do Russell, que só agora veio a ter o devido reconhecimento, com a realização de bons longas como O Lado Bom da Vida, O Vencedor Trapaça, nenhum deles grande o suficiente quanto este aqui, creio. É maravilhoso. Tem a fotografia inspirada do Peter Deming, que trabalhou com David Lynch no que é considerado um dos filmes mais complexos da história do cinema, Cidade dos Sonhos, o roteiro excelente do David com a parceria de Jeff Baena. Esse elenco, demais. Pra quem for ver, recomendo também a revisão, nem tudo pode ser digerido num só gole. Afinal, entre umas e outras, a vida é literalmente uma comédia. Uma experiência mais que devastadora e maravilhosa. 

Huckabees - A Vida é uma Comédia (I ♥ Huckabees)
dir. David O. Russell - ★★

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