quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Crítica: "VOLVER" (2006) - ★★★★


Muito provavelmente Volver é o filme do Pedro Almodóvar com o qual eu mais me identifiquei. Sem querer minimizar o profundo impacto das mil e uma outras obras que decoram a filmografia do espanhol no que diz respeito a essa questão, mas é que determinados fatos presentes dentro da narrativa são de uma familiaridade tão grande, como a perda, o ressurgimento de um amargo passado, em si a própria dor. Se bem que os trabalhos de Almodóvar naturalmente carregam consigo um ar meio nacional, uma vez que da Espanha não estamos tão distanciados em questões culturais, políticas e sociais, com muitas histórias passadas lá tendo um reflexo das passadas aqui. Tá bem que os espanhóis, como a cena de abertura já deixa claro (Raimunda, sua filha, e a irmã Sole limpando as lápides dos pais, falecidos num incêndio, em um cemitério de um pluebo, com várias outras mulheres executando a mesma tarefa, combatendo um brabo vento), possuem tradições distintas das nossas, mas o que vem seguindo essa cena prova parcialmente o contrário. Talvez seja por isso que é tão fácil se espelhar em Volver, independente de elementos mais particulares se ligarem à minha história pessoal. 

Raimunda é uma mulher que faz tudo para tudo e todos, e nunca tem tempo para ela mesma. Enquanto tem que aturar o marido desempregado e preguiçoso, também trabalha em dois ofícios ao mesmo tempo e tem que correr de um passado estremecedor que vira e mexe ameaça vir à tona, contra a vontade dela. Certa noite, ao voltar do trabalho, ela nota a estranha presença da filha a aguardando no ponto de ônibus, com um olhar chocado e uma expressão esquálida. Chegando em casa, ela se depara com o pior dos terrores, que a faz viajar adentro perigosas lembranças de dias permeados pela infelicidade. 

Depois do autobiográfico e igualmente profundo Má Educação, Almodóvar retorna às suas origens, filmando no lugar onde nasceu e cresceu (La Mancha) mais um reprodução do seu passado, e que talvez seja também o reflexo do nosso próprio passado (como aconteceu comigo). O reflexo da esperança, da luta inacabável por tempos melhores, das dificuldades que enfrentamos, dos erros que necessitam ser corrigidos, e da volta que precisa ser realizada. Essa volta tão rejeitada ao pretérito, com suas qualidades e seus defeitos, sempre nos isolando de uma melhor resolução dos acontecimentos. É preciso volver. Almodóvar traja um manto de humanidade esplêndido para tecer o desfecho final da trama, com vários planos se encaixando numa deliciosa concatenação, cheia de conflitos, como é típico dos filmes do diretor. 

A sensibilidade de Volver transita entre o poderoso e emocionalmente perturbador Tudo Sobre Minha Mãe (apesar de não conseguir atingir o nível de depressão que este domina) e o já mencionado Má Educação, com sutis toques vindos do recente (e excelentemente brilhante) A Pele que Habito, cujo suspense assemelha-se ao grande match do clímax de Volver, que oscila em drama, suspense e uma suave comédia, mais especificamente no núcleo da Sole, a irmã atormentada por pesadelos e que tem medo de fantasmas (o encontro dela com o mãe no porta-malas do carro e os segmentos da "russa" no cabeleireiro, assim como as bizarras conversações das clientes, são extremamente hilárias, e não excedem o talento para o humor que Almodóvar também impera).

O roteiro é de uma proficiência absoluta. O notável nele é que, mesmo num filme onde a sexualidade não é tão expansivamente examinada, nua e crua, como é de costume, o cineasta faz questão de incluí-la nas referências espalhadas em relação ao próprio destino da narrativa, como no início, onde a tela é preenchida com a visão do quadril de Sole enquanto ela fecha o porta-malas do carro na saída do cemitério. Ou então, mais pra frente, quando a câmera capta de cima o momento em que Penélope Cruz, com os seios quase à mostra num decote da blusa, lava uma faca suja - o mesmo objeto que viria a transtornar radicalmente os rumos do filme -. Proposital ou não, tal insinuação é de uma curiosidade complexa, e, indiretamente, explique essa fraca exposição da sexualidade. 

A fotografia kitsch de José Luis Alcaine, que rima obscuros tons de vermelho à teor violento da jornada de Raimunda, pode ser mais uma vez vista numa de suas fases mais belas e atrativas, ainda que o exímio trabalho de Javier Aguirresarobe em Fale com Ela, onde o diretor de fotografia soube impôr-se ao estilo de Almodóvar, também fosse aconselhável e imaginável neste longa. Os personagens estão em foco e não abusa muito do nosso gosto, mas não deixa a veemência da película transparecer em nenhum segundo. O elenco quase anti-masculino (com apenas dois atores), todo formado por um grupo talentoso de mulheres, é liderado pela belíssima e extraordinária Penélope Cruz, que, na época, era apenas famosa por tímidos destaques do cinema espanhol e a grande obra de Almodóvar Tudo Sobre Minha Mãe, onde fez o papel da freira Rosa, além da participação em Vanilla Sky, o primeiro "grande" filme americano da espanhola. A consagração por Volver provou a sua competência e firmou-a como uma atriz séria e potente, de bom tamanho para que no ano seguinte a atriz já ganhasse os olhares de Woody Allen na performance que a renderia o Oscar por Vicky Cristina Barcelona, ainda que eu tenha certeza que a estatueta deveria ter vindo antes, por Volver, onde ela tá impecável. 

Volver
dir. Pedro Almodóvar - 

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