domingo, 1 de novembro de 2015

Crítica: "O REI DA COMÉDIA" (1983) - ★★★★


Massacrado pela crítica em seu lançamento, sendo muito provavelmente o filme menos conhecido e reconhecido do Martin Scorsese, O Rei da Comédia, apesar dessa desfavorável recepção trata-se de uma das obras mais inteligentes e bem-feitas do cineasta americano, que é certamente um trabalho desafiador, íntegro e precioso. Pouco visto, é o único filme do diretor a integrar a lista dos filmes exibidos na 39ª Mostra, que leva no cartaz anotações e desenhos em notas realizados pelo diretor nas filmagens de seu próximo filme. Tal escolha é admirável, tanto pelo bom filme que é O Rei da Comédia quanto pela exposição e maior difusão do título, pouco visto, nesta edição. Precisa e severa crítica às desenfreadas loucuras do showbiz, à influência artística e à corrupção do sistema televisivo e artístico, O Rei da Comédia é também nato exemplar de uma estilosa comédia dramática, rara nos dias de hoje. 

Logo na cena inicial, uma multidão aguarda em frente ao estúdio onde é gravado o The Jerry Langman Show, conhecido programa de um famoso comediante, querido por muitos mas que não retribui da mesma maneira tal ato de adoração aos fãs, o que já é demonstrado na sequência a seguir, quando Jerry sai, acompanhado por seguranças, da gravação e entra num carro. Neste carro, é surpreendido pela presença de uma desconhecida, que o agarra e começa a acariciá-lo e beijá-lo. Após se desvencilhar da escandalosa e maluca mulher, que é trancafiada no veículo, a figura de Rupert Pupkin, "fã" do humorista, aparece de canto num plano onde as mãos da enlouquecida moça, do interior do carro, são flagradas por um flash grudadas ao vidro, com o rosto de Pupkin no fundo. Créditos. O tema musical é "Come Rain or Come Shine", perfeito para a abordagem da película, e que logo vira sua marca registrada. 

Nos momentos a seguir, o roteiro foca na ingênua, porém incessante, ilusão de Pupkin em se tornar um comediante de stand-up. Sua aspiração contrasta com a surreal conexão com Jerry Langman, marcada por um encontro entre os dois na mesma noite citada, onde, se passando por um segurança, Jerry consegue entrar de fininho no carro que leva Jerry após a multidão "cessar" um pouco a euforia. Nervoso, Rupert, apesar da simpatia, não consegue minimizar de jeito algum a arrogância do comediante, sempre de cara fechada, ranzinza. Antes de deixar o carro, Pupkin logo se apega à ideia de rever Jerry, o que certamente nunca será consumado, mas Rupert continua firme e forte acreditando que ele o verá novamente, indo visitá-lo todos os dias em seu escritório, perdendo tempo numa recepção medíocre e entediante. 

O que talvez tenha promovido a má fama de O Rei da Comédia à época de sua estreia tenha sido a superestimada participação do Jerry Lewis, aqui um coadjuvante num papel que não dá chance de obter muitas risadas pela constante seriedade, intranstornável. Agora, imaginem só, se a crítica já estava puta desse jeito com o filme, e então o público, que meramente entraria numa sala de cinema para ver mais uma comédia escrachada do Jerry Lewis em mais um daqueles seus papéis bobões e clichês, e se depara com uma sátira inspirada sobre a fama e o reconhecimento? É bem compreensível a razão do fracasso comercial de O Rei da Comédia. E, embora Lewis esteja finalmente num papel prestável, quem ganha a cena em O Rei da Comédia é o Robert De Niro, num dos melhores personagens de sua carreira, um dos mais vitais - uma parceria excepcional entre o mestre Martin e seu intérprete favorito (motivo para sê-lo há). 

O Rei da Comédia não peca no exagero e na montagem de seus personagens, montando um perfeito equilíbrio entre os dois lados, fãs e artistas, de forma com que nenhum deles esteja 100% certo quanto a suas fórmulas (enquanto dá raiva do personagem bonzão do Jerry, é impossível não ficar "por aqui" com o irritante personagem do Robert, pedante e lerdo, que faz de tudo para agradar a qualquer custo a quem lhe dê corda - e quem não lhe der muito menos não escapa). A obsessão infinita pela recognição pública de Rupert representa o ser humano elevando suas expectativas e capacidades ao máximo pela conquista de um determinado poderio, aqui o de "Rei da Comédia". A eficiência dos detalhes, incorporados a um final de tirar o fôlego (os últimos momentos de O Rei da Comédia são os melhores, com a descoberta essencial de pontos-chave e energéticas interligações no roteiro brilhante de Paul. D Zimmerman anexado à condução espetacular do Scorsese, que esteve doente durante as filmagens do longa, padecendo de uma grave pneumonia, o que não lhe impedira nem de fazer uma pequena ponta perto do fim), enaltecem a qualidade desta comédia de humor negro que suavemente vai metamorfoseando num amargo e melancólico drama sobre as ambições e as inglórias de um homem que apenas quer um lugar adentro um colossal mundo que restringe espaços aos menos poderosos, O mesmo termina alegando "melhor ser rei por um momento do que idiota por toda uma vida", e ninguém é determinado o suficiente, nessa hora, pra tirar a razão dele. Um viva à edição espetacular da Thelma Schoonmaker, uma das melhores já realizadas por ela. 

[39ª mostra internacional de cinema de SP]
O Rei da Comédia (The King of Comedy)
dir. Martin Scorsese - 

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