sábado, 28 de novembro de 2015

Crítica: "O SOM AO REDOR" (2012) - ★★★★★


Um dos filmes mais reverenciados e cultuados do cinema nacional nos últimos anos, O Som ao Redor me deixou colossalmente extasiado. É um sentimento difícil de explicar, fenômeno raríssimo, e confesso que poucos filmes o provocaram em toda a minha vida cinéfila. Bem... Como eu posso definir essa frenesi sem que soe absurdamente espampanante, ou efêmero? É a atração do novo que não é novo. Aquilo que estava adormecido e voltou à vida, num plano que faz com que nossa memória se perca na busca por algo semelhante ou consequente à essa reação. Eu realmente nunca vi nada igual a O Som ao Redor. Nunca. Nem aquilo que é parecido passa a fazer sentido como parecido. O que é algo totalmente benéfico, já que atesta sua exclusividade. É impar. Solene. Rico. Extravagante. Pleno. Exímio. Engenhoso. Sagaz. Sensato. Poético. E tudo mais o que vier. 

É Recife, é Brasil, é universal. Kleber Mendonça Filho, outrora experiente diretor de curta-metragens, revela-se ainda mais competente com longas de ficção (se é que é possível chamar O Som ao Redor, filme tão definitivamente identificável, de ficção), filtrando a simplicidade em complexidade numa história encapada com realismo, mas que não dificilmente parafraseia seu real sentido noutro numa intenção subliminar. Muito barulho por nada, definitivamente. Quer dizer, não por nada. A intenção aqui é denunciar e exibir a crescente paranoia em virtude da onda de violência que ataca um bairro de classe média do Recife, e o quanto essa paranoia influencia nos conflitos adentro diversas relações entre os moradores da região. E/ou também pode simbolizar a importância cinematográfica dos efeitos sonoros, cujo papel na indústria hoje é tachado pelo Kleber como minorizado e negligenciado, sendo este um dos elementos principais na estrutura de qualquer produção. Afinal, qualquer interpretação é bem vinda quando o filme pode/deve gerar distintas avaliações.

Nesse ano, foram vários os meus ataques de paranoia. Acho que até faz parte da minha personalidade agitada e atenta, o que nem sempre é tão bom quanto parece. Foi no início do ano que me assustei por nada quando estava sozinho em casa numa tarde que ameaça findar num temporal. Comecei a ouvir um barulho estranho vindo do portão, seguido de vozes, e logo imaginei que estavam tentando entrar na casa. Entrei em pânico, sendo frouxo como sou, mas no fim os gritos nem eram aqui, já que pararam rapidamente assim que minha neurose atacou. Mês passado, de noite, estava no banheiro prestes a escovar os dentes quando ouvi alguns ruídos, estranhos e incomparáveis. Pensei que eram bandidos. Todo mundo tava dormindo, e eu começava a caminhar pela casa impaciente com a coluna abaixada, no fim de "evitar lesões". 

No fim, era um gato que estava quebrando tudo. No mesmo momento em que tomei coragem e me apoiei na janela para ver o que havia sido, vi o bichano em pé, num tijolo. Ele acabara de pular, e só tive tempo de ouvir o quebrar do tijolo, que chocou-se contra o chão na destreza do seu pulo. A situação era idêntica a que tinha me ocorrido antes, nesse mesmo semestre, tido que ela fora mais rápida do que esta última, o que não deu trégua para a minha tensão. É o que acontece em O Som ao Redor. O constante clima de suspense indica que algo não está certo, e acaba nos contaminando com esse pensamento até que nos darmos conta de que o ali mostrado é produto do nosso cotidiano, é puro realidade, por se dizer. Não há ficção alguma. Pode ter acontecido comigo, com você, e com qualquer outra pessoa na Terra. 

Silenciar um cachorro vizinho que late incessantemente botando partículas de comprimido num pedaço de carne no meio da madruga, e lançando para ele. Reagir com horror a uma coroa de flores na varanda do apartamento de uma moça que dali se jogou, como se tal situação manifestasse um mal pressentimento, o que até pode ser levado como impulso de insegurança. Jogar a bola por cima de um muro só para chamar a atenção de uma menina que se encontra atrás ele. Dormir no serviço. Situações comuns (talvez nem tão rotineiras, mas que são com certeza críveis) e cabíveis a qualquer um em qualquer lugar, mas que, pela inclusão de artifícios sonoros especialmente do contra, do nivelar suspenso, acabam nos direcionando para uma diferente leitura. Engana. E isso é genial. Como consequência, dá essa impressão de novidade. É, mas também não é. 

A chegada de um grupo de vigia particular nas ruas de um bairro no Recife que resulta em desastrosos contrastes e a polarização da apreensão entre os muitos habitantes dali é o que move a trama de O Som ao Redor, um espelho nosso, que averígua a existência de embates e preceitos na sociedade, de maneira crua e nua, na permissão de uma naturalidade absoluta. É na dona de casa solitária que vive reclamando do cachorro que não a deixa ter paz, mas que necessita da presença desse cachorro como forma de encobertar a ausência de sua família, já que ela demonstra preocupação quando o animal fica desacordado após ingerir os benditos calmantes, ainda que até bomba ela use para minguar seus latidos, que vemos a precisão dos conflitos, do querer e não querer, das, enfim, mil e uma diferenças, não só no sistema social, mas também no crime, na vida, no trabalho, como agente do movimento. É nesse cenário de desigualdade que também observamos o aflorar das relações entre patrão e empregado, distintas e multiplicadas. 

É na moradora enraivecida que acusa o zelador de incompetência usando como desculpa receber sua "revista Veja fora do plástico" que então é explicitado o peso do preconceito e suas remotas parcialidades que tanto incitam a propagação de conceitos atestadores da marginalidade, mas também pode ser visto como índice dessa paranoia, espírito de instabilidade e incertas deduções. Ou no próprio personagem do João, que tanto se diz contra a demissão desse mesmo empregado, mas que na mesma cena deixa a reunião de condomínio testificando ter que presenciar compromissos maiores, na forma de exemplificar que, diante de um problema, apenas agenciamos sua existência, mas permanecemos de braços cruzados, sem fazer nossa parte. A hereditariedade do poder de possessão que fixa uma relação avô-neto, e que propaga a estratégia da vingança. A revolta dentro e em cima da revolta. O Som ao Redor é um filme revolucionário, em todos os sentidos dentro do seu abrigo de várias metaforizações para um universo cada vez mais consumido por insegurança e suspeita.

Simples e funciona. Poucos exerceram com tanta leveza imenso estrondo. Certamente o que escrevi sobre O Som ao Redor não passam de desesperadas tentativas de declarar minha paixão e interesse por ele, mas nem de longe é a mais completa ou coerente revisão. Afinal, é um filme que vai se transformando com o passar do tempo, e não facilmente larga nossa mente, por isso não posso ter captado tudo apenas nessa primeira vez (sempre inesquecível). E isso faz bem. Pela força do elenco extraordinário, pela sutileza e impressionante robustez do roteiro, pela talentosa direção, O Som ao Redor é digno de todos os elogios feitos, de todas as estrelas que auferiu, da ótima recepção (obviamente), da candidatura ao Oscar (obrigatória, mas que não conseguiu conquistar os membros da Academia para a semi-final, muito infelizmente). De tudo de bom que obteve. Pra resumir, é um retrato visionário bem feito de uma proeza avassaladora. Registro belo, simples e cativante. Celebra e representa o cinema nacional, numa fase de muitos acertos, esporadicamente reconhecida desse ângulo.

O Som ao Redor
dir. Kleber Mendonça Filho - 

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