Gaspar Noé é um sujeito muito interessante. Com apenas quatro longas no currículo, incluindo Love, o diretor ganhou rapidamente a fama de um dos cineastas mais polêmicos da atualidade graças ao pesado teor presente em cada uma dessas produções. É essa característica de seu cinema, a presença da violência brutal, do sangue, de cores vivas, do estranho, de um mix de surrealidade e inovação, que une esses quatro filmes de longe distintos, e é símbolo do seu controverso estilo.
Aventurando-se pela primeira vez no 3D (oficialmente, já que a contextualização gráfica do 3D era bastante visível no anterior Enter the Void), Noé fabrica uma autêntica obra, divertida e emocionante, monumental, única. O já considerado filme mais escandaloso do ano foi gentilmente apelidado pela imprensa de "pornô cult", muito embora as pretensões de Love, na alcunha voltadas apenas para o entretenimento do espectador, vão bem além da sua pegada pornográfica. É certamente voltado para o prazer, e tem como objetivo satisfazer nossos pecaminosos desejos sexuais, intimidar-nos com um desafio que rompe limites, vai bem além daquilo do que estamos acostumados. Love é um daqueles filmes que surge apenas uma vez. E perdê-lo seria uma baita vergonha.
Love conta a história de Murphy (suposto alter-ego de Gaspar, com diversas auto-referências à carreira e à vida pessoal do diretor), estudante americano de cinema na França, que se apaixona perdidamente (e carnalmente) por uma pintora, mantendo um relacionamento fervoroso e turbulento com ela por vários anos. Na intenção de variar a situação e realizar um velho desejo, a artista, Electra, decide participar de um ménage à trois junto do amado, que também sonha com a mesma coisa, com a vizinha, Omi. Após um jantar, os três, aloucados, embarcam nessa experiência, que toma um inesperado rumo, quando Murphy, durante a ausência de Electra tempo depois, faz sexo com Omi e, sem querer, acaba a engravidando.
Devoto à Electra, mesmo com tantas brigas e frequentes conflitos, ele não vê saída senão assumir a criança e abandonar a vida que levava com seu velho amor. Numa manhã de ano novo, Murphy desperta ao som do toque do celular. A mãe de Electra acabara de o ligar, comunicando do sumiço da filha e de sua tendência suicida que se manifestou pouco antes desse desaparecimento. Em choque, assustado pela possibilidade, Murphy revê, em flashbacks, a relação inteira que teve com a estonteante moça, memórias que só mais o pressionam contra a invencível e tortuosa realidade. É aí que ele percebe o quão valioso eram aqueles tempos, onde podia desfrutar da liberdade que hoje lhe é revogada.
Love fez filas em Cannes, mas não foi bem recebido quanto à distribuição nem aqui no Brasil nem em qualquer outra parte do mundo, tendo sido fracamente apoiado pelas produtoras internacionais, todas sob o mesmo veredicto: "é um filme pornô". Uma grande pena. É a prova imutável de que o gênero ainda sofre com o preconceito, e que ainda não foi aceito pelas camadas mainstream. Até porque o filme não é 100% um pornô, como eu disse. É também drama e romance. Todo esse rebuliço é justamente por conta das cenas de sexo, que mostram os atores realmente transando, o que não muda muito das insinuações de várias outras produções de hoje. A diferença presente é que dá pra você ver a ação dos órgãos genitais e uma vigorosa energia, mas o fato é que até eu, na minha completa admiração por Love, acho que não é aquele filmaço erótico que tanto prometia ser quando foi exibido em maio na Croisette. Para quem é afeminado aos trabalhos de Gaspar Noé, achará este filme mais leve do que os outros três que o antecedem, o que é inevitavelmente verdade.
Em Love, o diretor opta por um caminho repleto de sensibilidade e apelos dramáticos, que não refletem em fracasso muito menos sucesso, mas que definem o caráter da película, que deixa de ser um simples pornô como seria visto e passa a se enraizar numa trama intensa e viva. E mesmo que fosse um pornô, que problema teria? É um padrão pouco explorado ultimamente e que veio perdendo popularidade, com uma decaída astronômica, ainda mais quando estamos vivendo em tempos virtuais, onde você acha o melhor do erotismo em qualquer site de pornografia por aí. Por isso que faz bem ver Love. É uma grande experiência, sim.
Difícil não ficar atraído. Confesso que certos segmentos são irresistíveis. E eles são incontáveis. Mas ressalto a importância da sequência exímia do ménage, a abertura, cena de masturbação onde o vermelho é bem tonalizado, o sexo solo entre a Omi e o Murphy, a boate, e vários cortes (quentíssimos), bem perto do final, de transas do Murphy e da Electra, muito bem filmadas. Gaspar Noé confronta, segundo a própria abordagem do filme, o medo, talvez, ainda existente em retratar a pornografia no cinema. Muito obviamente o padrão não será aceito de primeira, ainda mais com tanto tradicionalismo, mas o filme merece ser apreciado pelo menos por quem entende e idolatra.
Voltando à discussão, acho que os atores foram mal escolhidos. As protagonistas, Aomi Muyock (Electra - juro que confundi com a Vanessa Paradis no início) e Klara Kristin (Omi) são bem sexys, e não tenho nada do que reclamar quanto à presença delas, mas creio que não custaria a seleção de um elenco mais conhecido, isso porque estamos falando do cara que trabalhou com beldades como Monica Bellucci, em Irreversível, e Paz de la Huerta (essa daí ficou bem feia depois da cirurgia plástica) em Enter the Void. Mas o problema é: quem aceitaria filmar sexo real? Penetração, oral? É até compreensível a escolha de atores em ascensão, bem desconhecidos. Escolha que não deixa de ser excitante e maravilhosa.
A fotografia do filme (Benoît Debie) é excepcional em todos os sentidos. O caliente vermelho, o parado cinza, resolução perfeita e contrastes discretos. Brilhante. A edição, que lembra em aspectos Irreversível, misturada entre flashbacks e cortes de várias cenas paralelamente conectadas, um jogo de montagem apreciável e especial. A trilha sonora, delicada e marcante. Love, no profundo poder de sua imagem, na sensualidade carnal de seus segmentos, na perversidade da trama, adentro questionamentos filosóficos que teorizam a razão da vida, bem como a morte e nossa própria existência colocada em risco pela possibilidade de não haver absolutamente nada entre esse intervalo chamado vida, apenas um escuro e silencioso vazio repleto de nada, a ideia que mais me assusta e desnorteia nesse mundo.
Love discute o amor carnal como combustível da atração, da firmação pela possessão, da busca por proteção, enfim, amor. Gaspar, numa versão sua bem menos agressiva, apesar do conteúdo explícito, e mais sensível, retrata as muitas faces do amor, seu misterioso universo e seus insolúveis enigmas. Tudo à risca de um filtro tórrido de sexualidade e um suspense tenso. Love é belíssimo. Pura e verdadeira beleza. E, por favor, só peço encarecidamente que cessem com essas comparações infladas a Ninfomaníaca, na minha sincera opinião projeto superior a Love, ainda que ambos sejam prazerosamente impactantes.
Love
dir. Gaspar Noé - ★★★★
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