sábado, 5 de dezembro de 2015

Crítica: "A TRAVESSIA" (2015) - ★★★★


Desde que fui introduzido ao cinema de Robert Zemeckis, sempre olhava para o cineasta como se o mesmo fosse cópia/influenciado de/por Steven Spielberg. E, se formos ver de perto, não são poucas as semelhanças entre Zemeckis e Spielberg. Ambos trabalham com o visual de forma delicada e sempre muito atenciosa, tramas marcadas pela restauração narrativa e que sempre buscam encontrar o equilíbrio etário, sem falar que os dois são os que mais trabalham com o Tom Hanks, e por aí vai, contando com a especialidade principal presente em suas filmografias: o uso inaudito dos efeitos visuais, marca registrada em determinados filmes deles, com especial ressalva a Robert, que é praticamente um mestre nas mais variadas técnicas que englobam esse meio, do CGI ao 3D. Porém, levem em conta que na época em que afirmei que Zemeckis era um plágio do estilo do Spielberg eu havia visto pouquíssimos títulos de sua carreira. O primeiro foi O Voo, a exemplo dessa minha desinformação. Nunca fui muito chegado a Robert. Com o passar do tempo, essa minha teoria foi se desfazendo. E, muito embora eles sejam parecidíssimos, há determinadas características que os diferenciam.

"...Uma história real", começa A Travessia. Posicionado no topo da Estátua da Liberdade, Phillipe Petit (aqui interpretado por Joseph Gordon-Levitt, na possível melhor atuação de sua carreira, ainda que não seja uma performance tão grande quanto aparenta) narra a sua incrível - no mais literal sentido da definição - história de vida, desde a sua infância, quando ficou fascinado, numa visita ao circo, pela apresentação de um equilibrista, e a partir daquele episódio passou a treinar sozinho seus próprios passos baseados no choque sentimental daquele momento único, e ponto de partida para o começo de um sonho que apenas começava. Aos poucos, esse sonho adquire proporções que despontam em um estado de ambição e singeleza: Petit formula seu equilibrismo como arte, ele mesmo se auto-intitulando artista ao invés de ser apenas um personagem circense. Inspirado nesse conceito, e rejeitado pelo pai, ele se muda para Paris onde começa a realizar apresentações tipicamente circenses, mas revertidas por ele em arte, ilegais pelos bulevares e pontos turísticos da cidade.

Certo dia, após uma apresentação, Phillipe se dirigiu a um consultório dentista, queixando-se de dor de dente. Na recepção do local, enquanto lia a uma revista à espera de atendimento, ele logo foi de súbito tomado de deslumbramento por uma manchete sobre a construção das Torres Gêmeas (World Trade Center) em Nova York, que se tornariam, quando concluídas, as maiores do mundo inteiro. Naquele mesmo instante, com a dor de dente misticamente extraviada, Petit impôs a si mesmo uma arriscadíssima missão - porém ao seu ver a realização artística do século: caminhar entre aquelas dois edifícios num cabo de aço. A meta de Petit lhe custeou dedicação e trabalho incessantes, que só findaram no dia da apresentação pública, em 7 de agosto de 1974, iniciada no exato momento em que sua imaginação foi frisada por essa concepção maluca (e suicida, convenhamos) na minúscula clínica dentista.

Até lá, Petit passou por grandes desafios, não só físicos como psicológicos. Seu sonho sem limites foi questionado, repensado, negado e até mesmo esnobado por quem ficava à par de sua dimensão. Apenas pouquíssimas pessoas foram capazes de se disporem à esse arbítrio, e que apoiaram Phillipe veemente. Entre elas, Annie Alix (sua namorada na época), Jean-Louis, Papa Rudy (proprietário do circo onde Petit passava o tempo treinando e apreendendo sobre equilibrismo), Jean-Pierre e Jeff, fiéis contribuintes do sonho (muitas vezes contestado como inalcançável pelo próprio Petit).

O longa de Robert Zemeckis, talvez até bem mais bem-sucedido do que o documentário vencedor do Oscar O Equilibrista, que dispunha de um diversificado acervo de fotos, gravações e depoimentos, consiste numa elementar abstração que bate com as intenções do documentário em questão, mas, pela presença de um realismo fantástico e absoluto, imperdível, se sobressai. A Travessia é simples e despretensioso na sua avantajada ambição, e por isso fascina. Retrata o que há de mais grande na pequenez e simplicidade do tocável. Seu próprio protagonista leva essa contextualização no nome: Phillipe Petit (em francês pequeno). Eu costumo me maravilhar facilmente com a destreza e excentricidade com os caminhos que as ironias da vida beiram, e nessa situação o peso da ironia serviria até como título do filme, caso nomeado Petit, na minha opinião um título brilhante, e que foi até sugerido pelo co-roteirista Christopher Browne (editor de A Lenda de Beowulf, e que trabalhou com Zemeckis em duas animações de sua autoria, O Expresso Polar e Os Fantasmas de Scrooge).

Gosto da ideia de interpretar A Travessia, a história de Phillipe Petit num só conjunto, como uma metaforização para os sonhos e a transformação dos nossos desejos em realidade, etapa por etapa. É algo que respeita a história do cinema de Robert Zemeckis, com ele tendo começado com trabalhos ambiciosíssimos no cinema, sempre vistos de uma maneira contrária à qual ele costumeiramente protestava, isso desde De Volta para o Futuro passando por Náufrago e até mesmo Uma Cilada Para Roger Rabbit, visto que são filmes revolucionários na questão de serem visualmente potentes, e que desempenhavam um importante laço do cinema com o tecnicismo computadorizado. A arte de sua filmografia é reverenciada como comercial, mas a verdade se opõe em muito a essa fixação. Mas ele não tem culpa. Afinal, superproduções tem essa tendência a serem acusadas, injustamente, de inferioridade e de serem comerciais logo de relance.

Com A Travessia, surge para Robert a chance de suas intenções serem compreendidas num espectro mais amplo aos mais diversos públicos, e que também serve de rechaço às acusações da crítica. O que importa é a esperança. Seja você Zemeckis, Petit, quem for, dos Estados Unidos, do Brasil, da França, da África, do Japão, do buraco que seja, seus sonhos um dia se realizarão. Ainda que esse sonho tenha um preço alto demais para ser pago. Mas, fazer o quê? Antes do mel, é preciso primeiro provar o fel. Regras da vida. Logicamente, se você não se doar e dedicar ao máximo para atingir esse sonho muito provavelmente correrá mais risco de não abraçá-lo. E isso para qualquer situação.

Do cineasta mal-compreendido que almeja ter seu trabalho menosprezado enaltecido como arte até o artista de rua que quer que quer performar num vão de quarenta metros entre as duas construções mais altas do planeta. E, para esse sonho, não há nada para impedir. Essa ideia é bem posta pelo Zemeckis, que se esforça para não impor limites às exigências da realização dessa ambição - por exemplo - na concepção de que um artista de rua pode conseguir dinheiro suficiente para financiar duas viagens de avião para Nova York, uma no intuito de conhecer a torre e na outra, acompanhado de seus cúmplices vanguardistas, de imortalizar seu feito.

Isso sem falar que A Travessia é bastante emocionante não só pela história, inacreditável, que mesmo já sendo conhecida por nós, não deixa de nos impactar (acho que teria ficado ainda mais estonteado com A Travessia se não tivesse visto o documentário), mas também pela sua arquitetação visual, que proporciona ao público um dos visuais mais lindos já feitos nos últimos tempos, provindo do espetacular uso dos efeitos visuais, e da fotografia impecável do Dariusz Wolski. A Travessia é uma poesia cinematográfica mágica. Os nossos sonhos, ambições de anjos e demônios, não tem limites. Mas é essencial sonhar. Senão, a vida não tem graça. Muito menos sentido e utilidade.

A Travessia (The Walk)
dir. Robert Zemeckis - 

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