Parece que o único jeito vai ser fechar 2015 sem ver todos os títulos ainda pendentes na minha lista de desejos (só pra vocês terem a noção, ainda falta ver o primeiro volume de As Mil e Uma Noites, Straight Outta Compton, Macbeth, e uma porrada de longas). Estes últimos dias foram corridos, rapaz. Mas, enfim, um dos filmes mais importantes dessa lista, e um dos mais obrigatórios, diria, era esse maravilhoso Norte, o fim da História, que chegou do nada no nosso circuito nesse mês, depois de dois anos na espera, e já veio chegando pra ficar. Trata-se do primeiro filme do cineasta filipino Lav Diaz a ser distribuído comercialmente no Brasil.
O nome do diretor fez sucesso ano passado durante a Mostra de Cinema de Sampa, onde o mesmo abocanhou o prêmio maior do evento com seu comentadíssimo Do Que Vem Antes. Dá até água na boca falar dessa produção, que dura quase seis horas, se eu não me engano, e tem uma sinopse bastante interessante. Enquanto este último não chegou no nosso circuito (ainda, com esperança), dá pra satisfazer a curiosidade em Norte, o fim da História. E, é claro, não dá pra esquecer a primeira vez. Fantástica. Sublime. Lav Diaz é promissor. Logo na estréia, apresenta uma obra-prima extraordinária, riquíssima em todos os sentidos, tocante por dentro e por fora.
A filmografia de Lav Diaz tem uma marca registrada: as durações, sempre longas. Norte, o fim da História, num todo, e em relação à duração, é um desafio ao espectador. Não é todo dia que a gente encontra um trabalhão desses, de 250 minutos, mais de quatro horas de filme. É bastante admirável. Mas também diminui um pouco as expectativas. Tanto na questão de imaginar o que o filme poderia reunir, visto a sua longa duração, e o surgimento da dúvida desse longa ser ou não bom. Duração é um perigo, meus caros. Lav Diaz sabe bem o que faz em Norte, não deixa rastro algum de imperfeição e constrói uma obra extraordinária, que abraça um universo de filosofias, pensamentos acerca a sociedade contemporânea, histórias entrecruzadas, personagens fortes e um elenco mais que versátil.
A história gira em torno de três personagens, que são focalizados de maneiras distintas durante as quatro horas de filme, e o andamento vagaroso da narrativa. Fabian é um estudante de direito que deu uma pausa na universidade, homem de opinião firme e consistente, que passa um terço do longa discutindo ética, sociedade e história ao lado de professores, colegas da faculdade e amigos diversos. Esconde, por trás do seu rosto de intelectual, façanhas de gênio e a boa lábia para conversar e discutir assuntos politico-sociais, um passado turbulento e irresolvido.
Centralizados na segunda hora do longa, os personagens Eliza e Joaquin são casados, vivem numa área pobre do país, e levam a vida humildemente, com seus dois filhos. É seguindo um ato de vingança e justiça por parte do personagem de Fabian à uma agiota suja do local que Joaquin vai preso, sentenciado à prisão perpétua, e tem de deixar sozinha a família pobre.
Eliza segue os anos trabalhando numa barraquinha de vegetais, e sustenta pesarosamente os filhos e a irmã mais nova, chegando até, numa cena, cogitar a possibilidade de matar as crianças em fim de minimizar o sufoco da vida que leva. Ela é uma pessoa fraca, mas que segue adiante sem se lamentar ou reclamar da vida, educando os filhos da forma certa e lhes norteando a verdade e a não terem vergonha do pai, preso.
Enquanto isso, na prisão, Joaquin, enfermeiro, cria amizade com um dos presos, e mais tarde tem de enfrentar com ele a ira de um chefão da prisão, Wakwak, que castiga até mesmo a quem o olha errado. Joaquin não escapa da punição dele, mas, mais tarde, é o único a permanecer a seu lado, quando ele se fere, oferecendo ajuda médica. É aí que notamos a humildade e a bondade no homem, de bom coração, e que reserva seu tempo na prisão a ajudar os presos doentes e seguir com as memórias da família, e a saudade. O tal chefão, Wakwak, se revela o oposto do que nos era conhecido. O cara vem se desculpar com Joaquin pelas atrocidades que fez a ele. Um sinal de redenção, e de quem ele realmente é fora dali.
O caminhar monótono de Norte também implica na quantidade de elementos que há para absorver dentro da obra, os muitos contrastes. Nem tudo pode ser captado de uma só vez. É bom ver o filme repetidamente (se possível). Ou, de repente, pensar mais nele. Ele só tende a crescer com o tempo. Afinal, o que mais esperar de 250 minutos? Obviamente teríamos bastante para digerir.
Às vezes natural e às vezes surreal. Após cometer um crime sangrento, Fabian entra num estado de choque profundo, atribulado, em constante perturbação. Tudo só intensifica quando ele retorna à cena, depois de algum tempo longe, com uma visita à irmã religiosa, um dos mais profundos capítulos de Norte. É aí que é revelado seu passado, a sua infância e o porquê do afastamento da família. É esse capítulo que contém uma das cenas mais intensas que eu já tive a chance de ver, em tempos, pelo menos para causar em mim um arrebatamento inevitável: a do estupro. Os gritos são atordoantes. E, mesmo que a tal cena não seja completamente exibida, é totalmente amedrontador.
O que fascina em Norte é essa sua autoridade, em ser tão ambíguo e despontar em repletos sentidos, o que faz dele uma peça mística e adorável. A vingança é uma faca de dois gumes. Nem sempre fazendo o bem se recebe o bem. Nem sempre fazendo o mal se recebe o mal. Nem sempre perdoando seremos perdoados. A cultura e o estado da Filipinas, aqui visado superficialmente pelo Lav Diaz, mas no ponto certo a fim de causar influência na história, mostra-se, em aspectos, semelhante à do Brasil. Uma cultura excessivamente religiosa, que vê em Deus a figura maior, "o pacificador e redentor, aquele que filtra os erros e tem o poder de purificar". Todos colocam tudo nas mãos desse Deus, onde buscam a realização de seus sonhos, de suas ambições em geral. Veem nessa figura um justiceiro fiel.
Norte também é um trabalho de beleza visual irreparável e memorável. Certamente, não é o mais belo filme que vi em 2015, mas destaca-se. Lav Diaz ainda tem muito o que nos mostrar. O cara é show. Se em Norte ele já faz maravilhas, imagine daqui em diante? Mas, enfim, louvemos o presente. Norte, o fim da História é um filme inesquecível. Divaga nas profundezas da alma humana, cativa com sua simplicidade, complexa ao mesmo tempo, encontra nas suas muitas reflexões sobre a participação da reviravolta em prol da justiça o sublime. Não dá pra reclamar. Em nada. Singular. Espetacularmente singular. Nunca visto. Lav Diaz é o cara.
Norte, o fim da História (Norte, Hangganan ng Kasaysayan)
dir. Lav Diaz - ★★★★★
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