"...você costuma se esquecer facilmente das coisas que mais ama."
Um dos meus maiores desgostos em 2015 foi ter de fechar o ano com débito na lista de lançamentos do circuito comercial. Estava doido pra ver 45 Anos, mas fui impedido pelo aperto financeiro, assim como não tive a chance de ver outros muitos lançamentos, principalmente estes de fim de ano, como Macbeth - Ambição e Guerra e O Despertar da Força, dois dos mais esperados. De qualquer forma, isso não atrapalha em nada a validade de 45 Anos, trabalho mais que primoroso e excepcional, (de fato) atemporal. É claro, quem sai na frente é o casal que protagoniza o longa, Charlotte Rampling e Tom Courtenay, premiadíssimos e aclamadíssimos por onde passaram, desde Berlim até (quem sabe?) o Oscar, e que leva como possível (pra falar a verdade, quase que uma principal) concorrente a Rampling.
O filme tem um andamento arrastado e calmo no primeiro tempo, mas meia hora depois do começo, as coisas começam a ficar tensas, mesmo que seu ritmo continue planado na lentidão. 45 Anos é a história de um casal atormentado por um fantasma do passado. E o medo. O medo de ter desperdiçado 45 anos ao lado da pessoa errada enquanto deveria estar com outra. E o medo de ter passado 45 anos amando um alguém que nunca o amou de verdade. Andrew Haigh constrói um filme muito belo, que consegue captar com perfeição e intensidade as energias, as preocupações, o cotidiano e, principalmente, os medos que surgem como uma avalanche na velhice. Ele consegue provar que os anseios da idade tomam conta do nosso imaginário mais do que podemos pensar.
Kate e Geoff Mercer estão às vésperas da celebração de 45 anos de casamento. Eles vivem numa cidadezinha do interior. Ela foi professora no passado (uma das cenas do começo, com ela conversando com um ex-aluno, é uma das melhores cenas de introdução de personagem que eu vi nos últimos tempos), e agora passa seus dias refletindo sobre o tempo, e cultivando pensamentos sobre o diário. É depois da notícia de que as autoridades encontraram o corpo da ex-namorada de seu marido na Suíça (a moça ficou por anos soterrada no gelo) que ela passa a preencher sua mente com neuroses sobre o caso. É diante da comemoração dos quase cinquenta anos de casamento que o passado vem à tona, e o casal passa a enfrentar o dilema da idade e o desafio da memória.
O corpo congelado da Katya nos Alpes Suíços é um caminho encontrado pelo diretor/roteirista (Haigh) para metaforizar um casal da terceira idade atormentado pelo passado, lamentando o passar do tempo, a fadiga e a falta de vigor. O cadáver da antiga amada do homem é a representação das lembranças da juventude, com toda a sua altividade e disposição. Essa metáfora também pode traduzir as fantasias dos homens, as mulheres desejadas no passado, voltando à memória com a degradação do tempo. A "sra. Mercer" se sente traída pelo desejo do marido, o sonho da eterna juventude, e vê nessa aspiração o fim do romance que ela sempre acreditou estar ali. O fim do amor que pra ela era inacabável.
Ela não aceita servir como alternativa pro marido (Kate e Katya são nomes muito parecidos, não?), como se ela fosse apenas uma outra, uma última opção, para o marido. O corpo da alemã enterrado por mais de quarenta anos se põe à vista com o derretimento das geleiras. Tradução: a velhice como motor da memória (bem irônico) e do redescobrimento de uma paixão perdida. É muito interessante notar como a trama de 45 Anos consegue metaforizar a velhice como um todo: as memórias, a solidão, os sonhos, as frustrações e os medos.
Outra coisa notável é que o longa funciona tanto no modo sem interpretação como no modo metáfora. E do modo metáfora nascem ainda mais interpretações, o que dá rigidez nos contrastes e na premissa do filme, certeiramente adorável, e proporciona reflexão ao espectador. O filme vai fermentando um suspense especial, do início ao fim, como se algo estivesse a todo tempo prestes a explodir. Isso cativa o público, mantém o interesse pela história, e vai causando curiosidade na gente.
Ninguém quer ver os sonhos destruídos, ou pelo menos o sonho que virou realidade atropelado pelas assombrações do passado, de dias melhores. A personagem da Rampling caracteriza bem o medo do abandono que a idade tanto transpira. O personagem do Courtenay, por sua vez, é a caracterização do arrependimento e da concretização da filosofia "e se?" na velhice. Ainda que brevemente, a Kate Mercer também experiencia esse arrependimento, mascarado como ciúmes, justamente quando ela descobre [aí vem spoiler] que a Katya estava grávida.
A ausência de uma família pode sinalizar um antigo sonho que morreu, e que não pode ser desfeito. Ela passa a se torturar com a ideia, novamente ressurgida, de que não pôde corresponder ao desejo do marido de ter um filho, de possuir uma família, e como isso inferioriza a relação que ele manteve com a Kate por 40 anos à relação com uma amante passageira, que se foi cedo demais, apagando então esse sonho. A estética dessa metáfora pode parecer bastante recíproca e baseada na devoção, como se a Kate estivesse ao dispor dos sonhos e de todos os desejos do marido, como se ela só existisse para satisfazê-lo, mas na verdade há algo de egoísta nesse pensamento. Afinal, o desejo (muito possivelmente incorrespondido) dela era de ter a vida dos sonhos.
O caso do marido com uma mulher mais bonita, jovial e estrangeira, antes mesmo dele a conhecer, a atormenta e aborrece, porque simboliza tanto o desvanecimento dessa vida dos sonhos tão almejada, quanto o relacionamento que ele manteve com a outra maior, por que foi, de fato, a vida dos sonhos. Temporariamente, mas foi. E isso já é o suficiente pra gerar uma crise sufocante, e que vai aos poucos a deixando magoada.
45 Anos funciona como um pesadelo. É a história de um casal tentando enfrentar demônios do passado e da própria idade, cada um à sua maneira. A dificuldade em aceitar o rumo, em encontrar uma saída pros defeitos. A idade, e os problemas que vem com ela, são inevitáveis. A forma como os atores entram com tudo na pele de seus personagens é assustadora e brilhante, firme e inteiramente espetacular. O Tom Courtenay, que faz o papel do amargurado Geoff Mercer, é pau pra toda obra. Ele está fantástico.
Mas quem toma conta da tela, quem nos emociona de verdade, é a Charlotte Rampling, numa das melhores performances da sua carreira. Ever. A atriz se supera numa performance de cunho dramático elevado e maturo, numa personagem forte e exigente, interpretada com simplicidade e talento. Charlotte se doa com tanto esmero a sua personagem que não é exagero dizer que temos uma lenda viva em tela, em ótima forma, ainda por cima. O cineasta independente Andrew Haigh revela-se na adaptação do pouco falado romance In Another Country (David Constantine), com direção e roteiro excelentíssimos, regados a naturalidade e bravura. Está consolidado um dos registros mais tocantes da idade avançada realizados nos últimos tempos. Um trabalho excepcionalmente potente e magistral.
45 Anos (45 Years)
dir. Andrew Haigh - ★★★★
Kate e Geoff Mercer estão às vésperas da celebração de 45 anos de casamento. Eles vivem numa cidadezinha do interior. Ela foi professora no passado (uma das cenas do começo, com ela conversando com um ex-aluno, é uma das melhores cenas de introdução de personagem que eu vi nos últimos tempos), e agora passa seus dias refletindo sobre o tempo, e cultivando pensamentos sobre o diário. É depois da notícia de que as autoridades encontraram o corpo da ex-namorada de seu marido na Suíça (a moça ficou por anos soterrada no gelo) que ela passa a preencher sua mente com neuroses sobre o caso. É diante da comemoração dos quase cinquenta anos de casamento que o passado vem à tona, e o casal passa a enfrentar o dilema da idade e o desafio da memória.
O corpo congelado da Katya nos Alpes Suíços é um caminho encontrado pelo diretor/roteirista (Haigh) para metaforizar um casal da terceira idade atormentado pelo passado, lamentando o passar do tempo, a fadiga e a falta de vigor. O cadáver da antiga amada do homem é a representação das lembranças da juventude, com toda a sua altividade e disposição. Essa metáfora também pode traduzir as fantasias dos homens, as mulheres desejadas no passado, voltando à memória com a degradação do tempo. A "sra. Mercer" se sente traída pelo desejo do marido, o sonho da eterna juventude, e vê nessa aspiração o fim do romance que ela sempre acreditou estar ali. O fim do amor que pra ela era inacabável.
Ela não aceita servir como alternativa pro marido (Kate e Katya são nomes muito parecidos, não?), como se ela fosse apenas uma outra, uma última opção, para o marido. O corpo da alemã enterrado por mais de quarenta anos se põe à vista com o derretimento das geleiras. Tradução: a velhice como motor da memória (bem irônico) e do redescobrimento de uma paixão perdida. É muito interessante notar como a trama de 45 Anos consegue metaforizar a velhice como um todo: as memórias, a solidão, os sonhos, as frustrações e os medos.
Outra coisa notável é que o longa funciona tanto no modo sem interpretação como no modo metáfora. E do modo metáfora nascem ainda mais interpretações, o que dá rigidez nos contrastes e na premissa do filme, certeiramente adorável, e proporciona reflexão ao espectador. O filme vai fermentando um suspense especial, do início ao fim, como se algo estivesse a todo tempo prestes a explodir. Isso cativa o público, mantém o interesse pela história, e vai causando curiosidade na gente.
Ninguém quer ver os sonhos destruídos, ou pelo menos o sonho que virou realidade atropelado pelas assombrações do passado, de dias melhores. A personagem da Rampling caracteriza bem o medo do abandono que a idade tanto transpira. O personagem do Courtenay, por sua vez, é a caracterização do arrependimento e da concretização da filosofia "e se?" na velhice. Ainda que brevemente, a Kate Mercer também experiencia esse arrependimento, mascarado como ciúmes, justamente quando ela descobre [aí vem spoiler] que a Katya estava grávida.
A ausência de uma família pode sinalizar um antigo sonho que morreu, e que não pode ser desfeito. Ela passa a se torturar com a ideia, novamente ressurgida, de que não pôde corresponder ao desejo do marido de ter um filho, de possuir uma família, e como isso inferioriza a relação que ele manteve com a Kate por 40 anos à relação com uma amante passageira, que se foi cedo demais, apagando então esse sonho. A estética dessa metáfora pode parecer bastante recíproca e baseada na devoção, como se a Kate estivesse ao dispor dos sonhos e de todos os desejos do marido, como se ela só existisse para satisfazê-lo, mas na verdade há algo de egoísta nesse pensamento. Afinal, o desejo (muito possivelmente incorrespondido) dela era de ter a vida dos sonhos.
O caso do marido com uma mulher mais bonita, jovial e estrangeira, antes mesmo dele a conhecer, a atormenta e aborrece, porque simboliza tanto o desvanecimento dessa vida dos sonhos tão almejada, quanto o relacionamento que ele manteve com a outra maior, por que foi, de fato, a vida dos sonhos. Temporariamente, mas foi. E isso já é o suficiente pra gerar uma crise sufocante, e que vai aos poucos a deixando magoada.
45 Anos funciona como um pesadelo. É a história de um casal tentando enfrentar demônios do passado e da própria idade, cada um à sua maneira. A dificuldade em aceitar o rumo, em encontrar uma saída pros defeitos. A idade, e os problemas que vem com ela, são inevitáveis. A forma como os atores entram com tudo na pele de seus personagens é assustadora e brilhante, firme e inteiramente espetacular. O Tom Courtenay, que faz o papel do amargurado Geoff Mercer, é pau pra toda obra. Ele está fantástico.
Mas quem toma conta da tela, quem nos emociona de verdade, é a Charlotte Rampling, numa das melhores performances da sua carreira. Ever. A atriz se supera numa performance de cunho dramático elevado e maturo, numa personagem forte e exigente, interpretada com simplicidade e talento. Charlotte se doa com tanto esmero a sua personagem que não é exagero dizer que temos uma lenda viva em tela, em ótima forma, ainda por cima. O cineasta independente Andrew Haigh revela-se na adaptação do pouco falado romance In Another Country (David Constantine), com direção e roteiro excelentíssimos, regados a naturalidade e bravura. Está consolidado um dos registros mais tocantes da idade avançada realizados nos últimos tempos. Um trabalho excepcionalmente potente e magistral.
45 Anos (45 Years)
dir. Andrew Haigh - ★★★★
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