2016 mal começou e uma porrada de filmes excelentes entraram em cartaz só neste mês de janeiro. O ano será cheio, camaradas. Filme vai, filme vem, aparece Anomalisa, esse trabalho divino, o mais novo projeto do Charlie Kaufman, aventurando-se pela segunda vez à frente da direção de um filme (já se passaram oito anos desde Sinédoque, Nova York). Porém, como é de costume o forte do gênio, que aqui compartilha o crédito de diretor com Duke Johnson, é o roteiro fabuloso, adaptação de uma peça teatral do próprio Kaufman. O fato de que Anomalisa é um filme de animação já despertava no público cinéfilo e fãs interesse e estranhamento desde que o filme fora anunciado ano passado, justamente quando ele ingressou na lista de filmes em competição da mais recente edição do Festival de Veneza.
E, vista a maravilha que o filme é, pode-se afirmar que toda a atenção a ele concedida durante o período do festival, onde ele até conquistou um prêmio, e também nesta temporada de premiações, foi recompensada. Anomalisa é imperdível. Uma especial anomalia dentro de seu gênero, anomalia que pode ser interpretada tanto como uma amável surpresa ou como uma espécie de reforma. O certo é que o filme é inusualmente prazeroso de se ver, constituído de momentos simplesmente únicos, sem falar que é em si maximamente bem-feito, um estouro cinematográfico de primeira ordem.
Em Anomalisa, um escritor britânico, Michael Stone (voz de David Thewlis) desembarca em Cincinnati para divulgar seu novo trabalho, um livro de auto-ajuda motivacional. Ele se hospeda em um grande hotel da cidade e logo lá inicia um romance com uma leitora sua, Lisa (voz de Jennifer Jason Leigh).
De tão humano e profundo que é, Anomalisa deprime a gente. Chega a ser até mais melancólico do que Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, pra ser honesto. Mas por mais esquisito que soe, isso sustenta o romance entre a "Anomalisa" e o escritor. A historinha de amor entre os dois, espontânea e divertida em certos quesitos, empossa de quebra essa melancolia, e independente desse elemento funciona brilhantemente como chamariz romântico.
A estética de animação do filme, slow-motion, é minimalista e agradável de se observar. Anomalisa caminha em passos lentos, o que lhe confere naturalidade e precisão, e ainda sim nos permite analisar de perto as minúcias da técnica slow-motion, muito bem trabalhada aqui. Anomalisa, apesar das auto-referências onipresentes a Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (há uma cena onde o personagem principal, Michael, tem um pesadelo, que lembra perfeitamente de um fragmento do filme em questão), lembra mais de Encontros e Desencontros, filme que também tinha como cenário recorrente um hotel e se centrava no romance entre um ator de meia-idade (Bill Murray) e a jovem esposa de um fotógrafo (Scarlett Johansson), relação que lembra bastante a da Lisa e a do escritor aqui de Anomalisa.
Sei que ontem estava bastante emotivo, mas chorei demais na cena em que a Lisa vai até o apartamento do escritor e canta "Girls Just Want to Have Fun", onde até mesmo o personagem Michael chora. É muito bonita de se ver mesmo. Possivelmente não verei cena mais emocionante nesse ano, so far. Essa cena, embora não seja idêntica, lembra em certos aspectos a sequência final de Antes do Pôr-do-Sol (texto 1, texto 2), onde a Celine canta para o Jesse "A Waltz For a Night", também de força emocional eletrizante.
Embora não seja o melhor trabalho do Kaufman no roteiro (na direção, Anomalisa com certeza supera Sinédoque, Nova York), Anomalisa fica na frente e imortaliza como mais um estudo romântico e existencialista por sobre as relações humanas e conflitos amorosos. Anomalisa cativa porque exibe como é amor verdadeiro é e deve ser. Em Anomalisa, todos os outros personagens, à parte do principal e da Lisa, são dublados pela mesma pessoa (Tom Noonan). À procura de um amigo, Michael acaba batendo na porta errada e se encanta com uma moça recém-saída do banho, a Lisa. Ela e ele são as únicas pessoas no filme com vozes diferentes, dubladas por outros dois atores que não sejam o Tom Noonan (neste caso, Jason Leigh e Thewlis), dando a entender que é esse o visual do true love: encontrar um alguém único, diferente de todo mundo. E a gente, como o escritor entediado e desanimado de Anomalisa, vai saber quando essa pessoa vier, de uma forma ou de outra.
E, muito embora o desenrolar do filme pro final ganhe uma perspectiva diferente dessa apresentação, uma perspectiva até pessimista, porém realista, não há problema em identificar o que ele quis dizer com a representação do amor verdadeira e como isso define o que há de mais intenso e relevante em Anomalisa. Há quem se desaponte com o desabrochar da história, mas é algo infelizmente compreensível, e não dá pra negar que esse contraste é o que, de fato, movimenta a trama. Triste, porém crível. O clima monocromático da história justifica-se. É de partir o coração. Ninguém é perfeito. Todos temos defeitos.
É interessante ver como certos fragmentos do filme se comportam de maneira romanticamente densa e marcante pra gente. Gosto de pensar dessa maneira daquele segmento do pesadelo, onde o personagem do Michael começa a correr doido pelo hotel temendo perder a amada: "Eu sempre perco todo mundo. Não quero te perder". É uma das falas mais românticas do filme. [spoiler de mínimo efeito à frente] A cena que encerra o filme também é bastante emocionante e cruelmente romântica. A Lisa escreve uma carta para o amado, dizendo ter achado num dicionário de japonês a palavra "anomarisa", que significa "deusa celeste". Logo a seguir ela termina: "Não estou supondo que eu seja uma, mas é interessante... Espero que nós voltemos a nos encontrar sob melhores circunstâncias...". Essa sequência sim possui a melhor fala de todo o filme, e mais romântica.
Acho fofo o grande "quê" do título "Anomalisa", que na verdade é o apelido que Michael dá a Lisa depois que eles se conhecem. A moça, que trabalha como telefonista num setor de vendas, e se hospedou no hotel mirando nessa visita uma espécie de férias, já que ela alegava não ter nem mesmo dinheiro para pagar a hospedagem junto à amiga, tem uma cicatriz no rosto, que sempre costuma cobrir com uma mecha do cabelo. Ela, já no quarto do Michael, diz que a todo momento lia o livro agarrada a um dicionário, já que desconhecia a existência de certas palavras ali colocadas. Numa parte, ela menciona o Brasil, mencionando um fato sobre o nosso país, dele ser o único país do continente americano a falar português, muito desconhecido pelos americanos. Ela diz isso depois de mencionar o português como uma de suas línguas favoritas, afirmando gostar de alguns cantores nacionais. É aí que, após mencionar essa curiosidade sobre a nossa língua, ela define essa "preciosidade" como "anomalia". O escritor, romanticamente, a apelida de "Anomalisa". É muito lindo. Também gostei muito da parte onde ele pede a ela permissão para beijar a cicatriz que ela tem na testa.
Sensibilidade e delicadeza romântica é o que não falta em Anomalisa. Eu gostei pra caramba. Só sei disso. Me emocionou profundamente, lá no fundo. Digo isso com toda a certeza do mundo. Belíssimo. Belíssimo. E mais belo ainda do que isso. Tocante como nenhum outro. Enfim, folks, isso é Anomalisa. A ótica Kaufmaniana tarda (como dito, são quase dez anos desde o último trabalho do roteirista) mas nunca falha. Nesta animação adulta (até cena de sexo explícito e nu frontal tem; pais, essa animação não é para os pequeninos, mas para vocês), Charlie redesenha seu complexo universo lotado de simbolismos filosóficos e paradigmais numa história simples e emotiva, um romance energético e fabuloso. Anomalisa é tudo isso, um amor de filme!
Anomalisa
dir. Charlie Kaufman, Duke Johnson - ★★★★★
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