segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Crítica: "CÓDIGO DESCONHECIDO" (2000) - ★★★★


Como qualquer outro filme do austríaco Michael Haneke, Código Desconhecido requer de uma predisposição especial por parte do espectador. Até mais do que certos exemplares da filmografia de Haneke, pra ser mais específico. E essa predisposição não é nem por conta do filme ser complicado em certos aspectos, mas sim porque há muito o que digerir. Se por um lado Código Desconhecido é um dos trabalhos mais inteligentes e interessantes do diretor, por outro trata-se de seu filme menos conhecido e popular. Uma teoria provável para esse esquecimento é a vinda de A Pianista no ano seguinte à estreia de Código Desconhecido, um eclipse. O que conta, no entanto, é que Michael Haneke mantém a pose num de seus longas mais enigmáticos e desconcertantes, uma análise minimalista dos preconceitos invisíveis a uma sociedade moderna. 

Código Desconhecido abre com uma cena particularmente estranha. Uma garotinha surda faz mímica, e seus colegas tentam codificar a atividade. A cena se dissolve rapidamente. O subtítulo de Código Desconhecido é também um achado: "História incompleta de diversas viagens". E, apesar de não ser um filme perturbador (do jeito Haneke de ser, quero dizer) as cenas de Código Desconhecido trazem ao espectador aflição e peculiaridade, mas não são perturbadoras. Pode-se afirmar que esse é o filme menos perturbador do Michael. Em contrapartida, é um filme de muitos questionamentos e morais, uma real denúncia, mas que raramente é vista dessa forma, até mesmo pelo acusado.

Assim como Caché, Código Desconhecido é focado num dos problemas sociais mais graves e ocultados do continente europeu nos últimos tempos: a xenofobia. Utilizando como arma em sua denúncia afiada uma inventiva crônica recheada de emblemas e simbolismos, Haneke é fabuloso na construção de uma trama que reflete bem nesse complexo trânsito e ainda sim desponta para situações semelhantes no resto do mundo, de forma com que a universal história seja facilmente identificável para o público que não vive na Europa e não é tão intensamente familiarizado com a xenofobia como o longa de Haneke esteticiza no desencontro de personagens estrangeiros, imigrantes e de diferentes classes sociais.

Ano passado, eu adquiri duas cópias de Haneke, a de Código Desconhecido e a de O Tempo do Lobo, dois filmes pouco conhecidos dele e atuais (2000 e 2003, respectivamente). Escolhendo Código Desconhecido, creio que fiz o melhor. E isso não é nem por conta da qualidade do filme, mas é incrível ver que o mesmo faz-se atual e muito essencial por mexer num assunto bastante comentado e debatido nos dias de hoje: a imigração. Vira e mexe, notícias dos refugiados sírios entrando na Europa em busca de abrigo e proteção são manchete e capa de jornal. Código Desconhecido não é auto-explicativo, mas é por si só um retrato pleno do preconceito esquadrando imigrantes e estrangeiros no continente europeu inteiro. Afinal, não é só na França que este caso se faz presente, e próximo.

Ainda que não seja seu filme mais cruel e perturbador, Código Desconhecido é lotado de provocações, desafios que nos instigam e só vão nos deixando mais curiosos, tudo à la Michael Haneke. Quem codifica essa mensagem que o Haneke deixa à mostra é o espectador ele mesmo. O enigma está nas nossas mãos. Dependendo da nossa exposição, admiração e intimidamento pelo filme, a interpretação nascerá conforme formos o adequando às nossas premissas particulares da presença da xenofobia nos dias atuais na sociedade e do racismo.

A Juliette Binoche, aqui na pele da atriz Anne Laurent (engraçado como o Michael Haneke sempre usa o mesmo nome para seus personagens em todos os filmes que faz; ex.: Georges, Anne...), pediu para o assessor do Haneke uma fita de Violência Gratuita na época em que o filme saiu. A atriz, encantada com o longa, logo telefonou ao diretor lhe indagando uma possibilidade de trabalho. Haneke não pensou duas vezes e escalou a atriz como protagonista de Código Desconhecido, onde ela faz o papel de uma intérprete namorada de um fotógrafo de guerra. O desempenho da atriz aqui a a rendeu espaço num longa adiante do cineasta, o já mencionado Caché (onde ela interpreta, novamente, a tal da Anne Laurent).

A sequência que segue os créditos iniciais é sufocante (a justa cena onde os três núcleos principais da trama, o núcleo da imigrante, da família negra e do casal high society, se interconectam). Um rapaz (Jean), recém-saído da fazenda do pai, procura a namorada do irmão para se estabelecer em Paris na fuga. A namorada o oferece lugar no apartamento, mas não garante tempo nem espaço suficiente no cafofo. Com as chaves da casa na mão, ele segue pelas ruas de Paris, até que se depara com uma senhora mendigando num pequeno beco. Ele retira uma nota do bolso e a lança contra o colo da mulher. Em seguida, um jovem negro vem tirar satisfações com o moleque por ter humilhado a senhora (uma imigrante armênia) daquela forma, insinuando que ela fosse repugnante. Inicia-se uma briga, e Anne surge para apartar a discussão. O rapaz negro vai preso, e seu pai, um taxista, é informado. Nessa cena, o taxista começa a acelerar a velocidade do veículo, e nisso começa uma briga com o passageiro, que passa a reclamar do taxista e da atitude dele. O homem termina por deixá-lo num ponto de táxi, e segue para a delegacia, onde pretende buscar o filho.

Numa outra cena, bastante chocante, esse mesmo taxista, que vive com a família numa pequena quitinete nos subúrbios, trava uma discussão com o neto, uma criança. O menino teria sido acusado pela professora na escola de estar usando maconha durante a aula. O garoto contraria a palavra da professora, e diz que foi ameaçado por um outro menino da sala, que teria lhe pedido uma determinada quantia de dinheiro para não acusá-lo falsamente de portar maconha. Código Desconhecido levanta muitas questões e intriga o espectador com a injustiça e os paradigmas de um mundo moderno dominado pelo caos, pela desonestidade e pelo preconceito. Cabe ao espectador ir reimaginando o que lhe foi apresentado em tela tempo após o filme visto, já que, como eu bem lhes expliquei, há muito o que refletir sobre Código Desconhecido. É um prato cheio, um trabalho de arte idealista e necessário, pérola da carreira de um diretor importante, visionário e único, sempre genial nas películas que traz.

Código Desconhecido (Code Inconnu: Récit incomplet de divers voyages)
dir. Michael Haneke - 

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