domingo, 2 de agosto de 2015

Crítica: "DOGVILLE" (2003) - ★★★★★


Rever Dogville era pra mim, até o momento, uma espécie de obrigação, já que da primeira vez o tinha visto na TV e nem tive, acredito eu, um grande prazer em vê-lo. Estava muito acelerado/atarefado naquele dia e só queria que o filme acabasse, algo que cortou a minha apreciação, e complicou minha compreensão. E, embora eu possa estar sendo um tanto quanto superficial dizendo que a primeira sessão não chega aos pés desta segunda, uma vez que nem mesmo duas sessões são suficientes para você conseguir fisgar de Dogville todo o seu contexto, digo que tudo ficou muito esclarecido pra mim desta vez. Na primeira, uma pequena faísca de desinteresse, emergida logo nos primeiros momentos, resultou num catastrófico incêndio. Lembrando que eu odiei a sessão, mas não o filme (tal missão, em meu caso, é impossível de ser realizada).

Embora muita gente tenha odiado Dogville, sob acusações de incompreensão e "demais filosofia para de menos resultado", eu, muito inusualmente, gostei demais dele. Talvez, empatando com Dançando no Escuro e Ondas do Destino, seja o filme de Lars Von Trier que mais gostei. E os motivos são infinitos. Aposto muito na força do caráter provocante e incisivo de Dogville, sua mensagem inteligente e medonha, que reserva múltiplas interpretações ao espectador. E se isso é problema? De modo algum. Tais quesitos só tendem a reforçar o pensamento e criar mais perguntas em nossa cabeça, sobre o assunto que nos é entendido aqui. Além de tudo isso, Dogville, um primor cinematográfico excelente, é uma baita obra, com um baita elenco e com mais uma condução competente de Von Trier, esse homem que sempre nos deu do bom e do melhor, disponível a provocar em nós os mais inquietantes sentimentos, em prol de um cinema melhor, e uma contribuição válida e muito bela, e com certeza não é aqui em Dogville que tal caracterização é rompida.

O prólogo, parte inicial deste longa, nos introduz Dogville, uma pequena cidadezinha escondida entre montanhas, aparentemente deserta, que leva à uma estrada seu fim, e seus habitantes, segundo o narrador pessoas honestas, de bom coração, mas que possuem um terrível problema de aceitação. Já no primeiro capítulo, um jovem escritor chamado Thomas Edison acaba encontrando Grace, uma bela e suntuosa mulher que, aparentando estar fugindo do nada, busca abrigo e esconderijo na pequena cidade. No começo, é bem tratada pelos moradores, recebida com muito carinho e amor por todos, aos poucos. Até que não vai demorando para a má fama de Grace se espalhar entre os cidadãos, e uma nuvem negra instala-se por cima dela, forçando-a a fazer escolhas perigosas, e até mesmo se submeter à fúria, à satisfação e à insensibilidade dos moradores de lá, o que faz com que Dogville transforme-se num inferno para ela. 

Afinal, o que é tão bom em Dogville? O que mais nos encanta nessa intrigante e exímia história? Há uma mensagem escondida por trás da enigmática jornada de Grace? Ela representa algo ou alguém, e a história possui contrapontos que indicam relatos históricos? Exemplos de algumas das questões mais frequentes na mente do espectador, antes de ver Dogville, e ciente da espécie e da seriedade do filme que verá à frente. Depois de visto o filme, algumas das questões vistas são não muito desvairadamente respondidas, com êxito. O certo é que Dogville é um filme que tende a exigir mais. É preciso focar, prestar atenção em detalhes, recolher informações. Talvez o que eu tenha reconhecido em Dogville não seja a mesma coisa que você viu no filme. Acontece. Essa parte de dividir opiniões e acentuar o auto-questionamento soa muito como um propósito de Lars. Afinal, o que no começo parece muito simples ganha dimensões redentoras e com diferentes portas, diferentes chaves e diferentes caminhos por trás delas. Basta o espectador, em sua noção, ir cavando mais fundo para buscar aquilo que o filme mais parece estar centralizado.

Eu mesmo não vejo esse objetivo de Dogville como uma notável ambição, se bem que há um quê pretensioso nisso. Acredito que desafiador, ou quem sabe inovador, seja a palavra certa para definir o que Dogville, em seu completo conceito, reúne. Chega de produções com intenções óbvias e fracas demais para nossa surpresa e igual contento. Que venham mais filmes como Dogville, pérolas da reflexão, que colocam à prova nossa própria opinião e posição moral. Com outros olhos, e em novas lentes, um mundo distinto nos é apresentado. E, até então, era bem desconhecido, ou pouco usual, mas que, depois de visto o filme, não sai da nossa cabeça. É esse mundo real? O retrato de Dogville é o retrato do nosso mundo, e a decadência que estamos beirando? Moralismo cheira mal ou cheira bem? Será que tudo está certo quando tudo aparenta estar em seu respectivo lugar? Se Grace é Jesus ou não, se Dogville e sua cidade-título representam, em uma maneira bem reduzida, o mundo, e os E.U.A. ou não, e se bem mesmo (spoiler) há uma ligação apocalíptica no final desta película, Dogville, de tão impaciente e incontrolavelmente provocador (no bom sentido), acaba nos levando ao delírio e ao deleite. E aí é que me pego em um pensamento bem doido, porém possível: como seria um debate meu com Lars Von Trier, especificamente em relação à Dogville, e o tempo que esse negócio valeria? Puxa, a ideia me assombra e ao mesmo tempo é divertidíssima.

A conclusão que chego, depois de tanto coçar a cabeça, é a seguinte (mais spoilers a seguir): Dogville representa os Estados Unidos, e Grace, recém-chegada no lugar, é uma imigrante, forasteira. Maltratada e desdenhada pelos moradores do local, ela é abusada sexualmente, acusada de diversas coisas, feita de palhaça, enganada e crucificada. Inicialmente fugindo de seu pai, mafioso, ela agora só tem a ele como recurso para fugir dessa desgraça de vida que é em Dogville. É aí que entra um sublinhamento do 11 de setembro: no fim, a família de Grace chega ao local e realiza uma enorme carnificina, assassinando toda a população da vila. A América não é tudo isso, minha gente. "Terra dos pesadelos", na aguçada percepção do Lars Von Trier.

É incrível como tudo conspira ao favor de Dogville. Ainda com um valor textual e interpretativo impagável e absolutamente genial, temos em campo um elenco pra lá de fera e uma equipe técnica liderada pela bravura. A única frase que me vem à mente é: "como não amar Dogville?". Mesmo que tenha uma atmosfera teatral muito firme, Dogville, salvo algumas contribuições técnicas, digamos "raspando", é cinematográfico. Por exemplo, acredito que nenhuma peça poderia ter a grande contribuição do norueguês Anthony Dod Mantle, cuja fotografia é maravilhosa. Não que eu diga que é impossível, logicamente, mas os efeitos da fotografia de Dod Mantle certamente não teriam a mesma reação numa produção teatral (muito obviamente, tá na cara).

A edição, a direção de arte, e enfim... Talvez os cenários, do ofício da direção de arte, bem lembrem um teatro, e talvez por isso é que tanto se saiam bem. O elenco de Dogville, que vai da premiada e famosa Nicole Kidman à uma das musas de Bergman, Harriet Andersson, é brilhante em todos os ângulos possíveis. Começo falando de Kidman, cuja performance me impactou por todo o filme e, em certos momentos, me emocionou bastante. Paul Bettany engana muito pouco, mas não deixa de ser um bom ator, e sua performance permanece intacta. Patricia Clarkson se sai muito bem apesar de estrelar tão poucas cenas, sendo ainda uma coadjuvante. Chloë Sevigny e Stellan Skarsgard estão também ótimos.

Dogville, de suas três horas, rende cada segundo. Lars Von Trier, mais polêmico, triunfal e imperdível do que nunca. Muito fiel à condução dos elementos, e aos traços que vão automaticamente construindo o roteiro do filme. Como era de se esperar, Von Trier conclui mais outra obra marcante, um drama que possibilita uma porção de indagações, dignas de barulhentos aplausos. Dogville resume-se em uma experiência delicada, tocante e muito, ferozmente excepcional.

P.S.: Muito em breve tentarei procurar o documentário Dogville Confessions, sobre o filme, que relata as filmagens do longa e as reações do diretor e do elenco. Vi um trecho faz tempo, mas infelizmente perdi a talvez única oportunidade de vê-lo. Aguardarei indicações nos comentários.

Dogville
dir. Lars Von Trier - 

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