Mesmo com o roteiro do longa pirateado, caso que gerou uma enorme polêmica no mundo do cinema, Tarantino não desistiu da sua definitiva homenagem ao gênero western, voltando atrás, depois que ele supostamente teria oficializado o cancelamento da produção, e reiniciando as filmagens. O resultado não poderia ser outro. O filme é uma delícia. Simplesmente sensacional. Quentin Tarantino faz de Os Oito Odiados uma ode ao western, gênero que cresceu acompanhando e também serviu de plano de fundo para seu longa anterior, Django Livre. É uma homenagem bastante minuciosa, de uma perspectiva perfeccionista. Nem de longe é o melhor filme do Quentin, mas coisa boa é o que não falta em Os Oito Odiados.
Do que Os Oito Odiados tem de referências ao western e à época na qual o filme se passa, poucos anos depois da Guerra Civil, ele também tem de auto-referências, que o interligam a diversas outras peças da filmografia de Quentin. Chega a superar À Prova de Morte, filme dele com mais auto-referências até a data. A abordagem política no filme traz à mente Bastardos Inglórios, e não apenas por isso é possível se lembrar da obra-prima, uma vez que, como no filme de 2009 (só como prévia) aqui rola um "diga adeus a suas bolas" e também temos um porão na jogada.
Nem preciso comentar que o filme é coladinho com Django Livre, tendo muita gente até cogitado Os Oito Odiados ser uma continuação deste. É impossível não se lembrar de Cães de Aluguel, outro trabalho marcante do diretor, seu filme de estreia, por conta da trama e da reunião de personagens, espetacularmente construídos pelo diretor. Como eu sempre costumo discutir sobre os filmes aqui criticados em seus completos interiores, hoje vou começar abordando a estrutura técnica do longa, e o que o torna tão digno de um rótulo "western", começando daí.
O longa dá partida com uma sequência de créditos duradoura. A trilha de fundo abraça a nostalgia de todo um iconismo "bang-bang" que até os menos familiarizados (como eu, que lá na infância tinha uma conexão nem tão grandiosa com o estilo através de programas e até alguns clássicos) conseguem sentir o gosto. O dono desse trabalho musical, fantástico por todo o filme, e que recorda tão bem o clima do bom e velho faroeste, é o Ennio Morricone (quem não conhece ele, o cara, que recebeu um Oscar Honorário não faz muito tempo, tem mais de quinhentas produções no currículo onde é compositor, e compôs a trilha de vários filmes do Sergio Leone, outro "o cara" considerado pai do western, entre esses Por Um Punhado de Dólares e sequência, Por uns Dólares e Mais, Três Homens em Conflito, Era Uma Vez no Oeste, e por aí segue). Fica explicado o porque da qualidade.
A fotografia de peso, mais uma vez nas mãos do exímio Robert Richardson, não desaponta em nada. Ainda mais quando é bem difícil reconstruir o cenário dos antigos faroestes, enquadrá-los numa janela autenticamente cinemascope, criar o cenário, o movimento, e, além de todo esse esforço, obter sucesso na missão e conseguir ser aclamado. Se essa era a preocupação do sr. Richardson, ele já pode tranquilamente riscar essa tarefa da sua lista, porque Os Oito Odiados é um filme visualmente potente como nenhum outro, e até mesmo se sobressai na frente de alguns títulos do próprio currículo de Quentin.
Uma pena a cópia 70mm não ter vindo para o Brasil. Se no padrão digital o filme já é uma beleza, imagine 70mm? Dá vontade de comprar uma passagem pros E.U.A. antes que a versão saia dos cinemas, já que poucas cidades no país, as well, receberam a cópia, e tem um prazo limitado para a exibição. Há uma reportagem no Indiewire sobre o trabalho que essa cópia deu, assim como o peso absurdo dela e as demandas para seu mantimento. Sem falar a nota que a filmagem em 70mm custeou aos Weinstein.
Agora sim, falemos sobre o filme. Pegando uma carona com um caçador de recompensas e sua prisioneira "pimentinha", o Major Marquis Warren, carregando três corpos no teto da carruagem privada do brutal John Ruth, se dirige rumo à cidadezinha de Red Rock na intenção de obter uma porção de dinheiro pelos três corpos, de diferentes valores, que ele conseguiu abocanhar. Devido à braba nevasca, eles fazem uma parada numa pequena cabana, a Minnie's Haberdashery (Mercearia da Minnie). É nessa cabana onde a história de Os Oito Odiados se desenrola.
Temos em cena, partindo da entrada dos homens no bazar, além do Major Marquis, da sapeca Daisy Domergue (Quentin conseguiu enfeiar de maneira repugnante uma beldade de primeira, e ainda sim conservada na casa dos 50), do condutor O.B., do arisco John Ruth e do suposto novo xerife de Red Rock Chris Mannix, um educado carrasco, que se assemelha fielmente ao personagem do King Schultz (até mesmo a escalação e a performance do Tim Roth e o nome não-americano do personagem, Oswaldo Mobray), um empregado mexicano, Bob, que está "encarregado" da casa enquanto Minnie e Sweet Dave, os patrões, foram "visitar a mãe no alto da montanha para passar o Natal" ("meu cachorro comeu a lição de casa" nos dias de hoje, por exemplo), Joe Gage, que está apenas de passagem no local, e também usa como destino a mesma desculpa de Bob, e o general Sandy Smithers (Bruce Dern, que tinha feito uma ponta em Django Livre).
O primeiro tempo do filme é um pouco parado, pra alguém do escalão de Quentin Tarantino, e só rolam algumas cenas de pancadaria, a grande parte dessas envolvendo John Ruth esbofeteando a Daisy, e os rapazes caindo na gargalhada. John, que diz nunca matar suas presas antes do enforcamento, se mantém acorrentado à assassina, proporcionando muita porrada à indefesa mulher. Fora isso, os três primeiros capítulos tem como base a difusão do verbal, diálogo, os personagens contando histórias, debatendo, se agredindo verbalmente, dando asas à imaginação do público. Mas sempre com aquela estima do estilo Tarantino, deixando o espectador à espera, fermentando. Por ali enquanto, as coisas vão caminhando vagarosamente. No forno, a grande reviravolta, que começa a vertiginar ali mesmo, no finalzinho do terceiro capítulo, trancada numa cabana no meio do nada, perdida na nevasca.
Dali em diante, nos restantes seis episódios, só resta intriga. Tarantino faz de seu western um suspense à moda antiga, inventivo e exagerado, charmoso e elétrico, no seu ritmo. Depois da saída de alguns personagens, entra a narrativa flashback no seu melhor, já testemunhada no finzinho do terceiro capítulo, bombástico. Um café envenenado, a única testemunha, as divergências que vão surgindo, a suspeita, e a solução do major para evitar deslizes drásticos. Sangue é jorrado. Apenas uma garoa, nada comparado ao temporal vermelho que se segue adiante com o conflitar da situação.
O cineasta reinventa seu gênero predileto em moldes originais seus, sem deixar de fazer consideração ao velho estilo. Não é uma cópia, remake, mas sim uma testificação, uma celebração do adorado gênero, uma prova de que ele não está morto. A aglomeração dos odiados dentro da lojinha simboliza ao mesmo tempo desvanecimento e enaltecimento. Afinal, na neve, quase nenhuma gota de sangue respinga do fogarel de turbulências. É no espaço fechado da cabana que a ação ganha puramente camadas maiores. Chega a ser um pouquinho estranho, confesso, acompanhar esse caminhar comportadinho do filme, falando de Quentin Tarantino, que trabalha bastante com tramas fora da ordem cronológica, o que não acontece em Oito Odiados.
Mas nem tudo é tiro, porrada, bomba e sangue em Os Oito Odiados. Tarantino contextualiza, na versificada variedade de classes reunidas entre os personagens da trama, preconceitos, admissões, restrições, advertências e os muitos embates em torno de posições e gêneros sociais. O estrangeiro, a mulher, o negro, o idoso, o fora da lei, o homossexual. Mas Tarantino não deixa rastros de heroísmo, ou de preferência por determinado personagem, de forma a gravar benevolência.
Ninguém ali é inocente. É um ringue altivo de injustos e bárbaros, um atropelando o outro em busca da salvação. O diretor combina western a tabus presentes na sociedade de hoje ainda invisíveis na sociedade do século 19, encobertos, motor de provocação, tudo isso falando dos Estados Unidos recém-saído da escravidão, o que justifica o espanto e o desgosto dos personagens em torno do personagem do L. Jackson, um major. E para isso há um envolvimento histórico. A aceitação, o tradicionalismo, a hierarquia, a divisão da sociedade. Tudo compõe os problemas atuais quanto ao preconceito, a liberdade da mulher, o respeito com os estrangeiros, de culturas e hábitos diferentes. É a autópsia histórica de Tarantino.
Ninguém ali é inocente. É um ringue altivo de injustos e bárbaros, um atropelando o outro em busca da salvação. O diretor combina western a tabus presentes na sociedade de hoje ainda invisíveis na sociedade do século 19, encobertos, motor de provocação, tudo isso falando dos Estados Unidos recém-saído da escravidão, o que justifica o espanto e o desgosto dos personagens em torno do personagem do L. Jackson, um major. E para isso há um envolvimento histórico. A aceitação, o tradicionalismo, a hierarquia, a divisão da sociedade. Tudo compõe os problemas atuais quanto ao preconceito, a liberdade da mulher, o respeito com os estrangeiros, de culturas e hábitos diferentes. É a autópsia histórica de Tarantino.
De forma indireta, o diretor, na manipulação de uma crítica social sofisticadamente épica, também protesta contra a glorificação da política de seu país, emancipando elogios e cultos à organização política da época, à Guerra Civil, e a relação do povo com os governantes. Os Oito Odiados, abandonando um pouco sua estrutura western, remete às principiações do terror e da comédia. O filme termina com um look de embriaguez humorística, mas seu segundo tempo é coroado por sangue, estilhaços e perfurações de toda a espécie. Cabeças explodem, corpos triturados a pistola, bem do jeito Tarantinesco de ser. Isso cativa o público, e ao mesmo tempo dá ideia de tortura, porque não temos ninguém para torcer, não há um herói, apesar da simpatia que cultivamos por certos personagens, como a Daisy Domergue, mas nenhum desses se safam do culturismo vilanesco. Riscos à parte, estão todos se perseguindo, caça e caçador, mentindo, atirando, julgando, e é delicioso.
É interessante ver como o Tarantino consegue fazer um equilíbrio perfeito entre o cinema clássico e o seu cinema, mistura que raramente consegue ser efetuada com sucesso, ou com a devida manejação, por outros exemplos de outros autores. E isso agrada tanto a quem vai ao cinema ver o filme como fã do diretor, como fã do western ou como fã de ação (no meu caso, cabe às três validações, em especial a primeira, minha atração), de diferentes maneiras. O efeito conclusivo pode desapontar a quem esperava algo mais explosivo, como é típico, mas Tarantino dá o seu melhor para garantir risadas, maravilhamento e banho de sangue desproporcionalmente interminável. Ou seja, é impossível reclamar.
Na vértice de uma narrativa colossal, os atores caem no embalo fenomenalmente, na presença de um elenco de viagem já costumeiro de seu estilo e trabalho, como Tim Roth, Michael Madsen, Kurt Russell, Samuel L. Jackson e Zoë Bell, e de outros, iniciantes, que souberam embarcar bem na brincadeira, como Jennifer Jason Leigh, Walton Goggins, Demián Bichir, James Parks e Channing Tatum. Um elenco grandioso. Não é o mais grandioso, mas certamente fica entre os. Apeser de não fazer nenhuma ponta aqui, o Quentin trabalha como narrador em certos capítulos, surgindo aleatoriamente de surpresa, como naquela sequência das fitas de Bastardos Inglórios.
É claro, a salvo algumas performances merecem ressalto: Kurt Russell, incrivelmente excepcional, numa atuação digníssima e estonteante, e seu par, a Jennifer Jason Leigh, que entrou no páreo da temporada de premiações mirando o Oscar. E, pelo visto, o prêmio a ela merecido é. A garota está realmente de parabéns. Na pele da Daisy, minha personagem predileta dentre os odiados, ela está incomparavelmente talentosa.
A estética subversiva da trama, o elenco empenhado e seus respectivos personagens otimamente construídos, a inspiração clássica, a exótica comicidade que por cenas funciona como epicentro da trama, o olhar histórico, o mar de sangue que nos afoga, a tensa tenebrosidade que se instala por sobre a obra, a diversão como escape da seriedade de certas temáticas, o ligeirismo das sequências... Tarantino continua forte como nunca, ótimo na sua premissa de encantar o espectador com um trama afiada, sanguinária e deliciosamente prazerosa, em todos os sentidos.
É certo que há imperfeições na montagem e na estrutura de sua trama, que não é aquela trama que se esperaria do Quentin, já que há determinadas insolências e algumas insatisfações quanto à mesma, mas nada que possa derrubar o efeito avassalador do filme sobre nós, efeito que apaga qualquer imperfeição, e torna o filme conteúdo cadente e espetacular, digno de bis. O impacto, de qualquer maneira, mantém-se presente. Não do jeito de sempre, mas ele continua aqui. Que filmão, Tarantino! Que filmão! Trabalho de mestre. Indubitavelmente primoroso e magnífico. Impressionante e impactante na sua dedicação, nas suas minúcias.
De dentro de um bazarzinho by the road, uma trama fabulosamente rica em criatividade e emoção, sangue pra tudo que é canto. Sangue! O motor da nossa adoração. Personagens de tamanha complexidade e ambiciosidade, à la Tarantino. Tudo bom demais. Tudo caprichado demais. Que presente e sorte, hein? Já começar o ano com um trabalhão desses. É uma experiência sublime. Permanece a autoridade do Quentin em ser um cineasta de primeira grandeza, único.
Os Oito Odiados (The Hateful Eight)
dir. Quentin Tarantino - ★★★★★
Desde que vi o trailer, fiquei empolgado! Uma história muito bem executada (um filme que tem que assisitr da HBO MAX ONLINE ) , interessante! A premissa do filme é simples, mas a execução é impecável. Temos algumas tomadas memoráveis e trilha sonora de primeiríssima, mas seu ponto mais forte está nos diálogos, que retratam bem o período no qual a película é situada sendo ao mesmo tempo modernos e ainda relevantes. Também há uma certa sensação claustrofóbica por não se ter para onde fugir e o fato da gravação ter boa parte sido feita em locação (ao invés de estúdio) ajuda nisso, pois percebe-se que estamos definitivamente diante de um ambiente gelado e que isso não é mera obra de computação gráfica. O elenco também está afiadíssimo, com destaque especial para Samuel L. Jackson, que pode muito bem estar diante de uma possível indicação ao Oscar, ainda que não se possa descartar nenhum dos atores para a honraria.
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